A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho da Solenidade da Imaculada Conceição de Maria, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Lucas 1,26-38.
“O Espírito virá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra” (Lc 1,35)
O que estamos celebrando nesta festa de Maria Imaculada nos indica o ponto de partida de nossa trajetória que, ao mesmo tempo, é também o ponto de chegada. Se descobrimos em cada um de nós o que estamos celebrando em Maria, nos despertamos para o sentido profundo desta festa.
Em Maria descobrimos a verdadeira vocação de todo ser humano. Ser como Maria não é só a meta da vida cristã, senão que partimos da mesma realidade da qual ela partiu.
O que dizemos de Maria é o que também devemos descobrir em cada um de nós
S. Paulo nos diz: “Deus nos elegeu antes da criação do mundo, em Cristo Jesus para que fôssemos santos e imaculados, diante d’Ele no amor” (Ef 1,4). Nada parecido se diz de Maria em todo o NT e, no entanto, a chamamos “Imaculada”.
O decisivo é que em Maria e em todo ser humano, há um núcleo intocável que nada nem ninguém poderá manchar. O que há de divino em nós será sempre imaculado. Tomar consciência desta realidade é o começo de uma nova maneira de compreender a nós mesmos e de compreender os outros.
Podemos dizer que Maria é Imaculada porque viveu essa realidade de Deus nela. Não devemos nos conformar em contemplar Maria para permanecermos extasiados diante de tanta beleza. Se descobrimos nela toda essa sublime beleza, é porque podemos imaginá-la graças à revelação do que Deus “é” em nós.
Maria não é a exceção, mas a norma. O dogma da Imaculada Conceição nos motiva a fazer outra leitura, carregada de conteúdo e de sentido: em Maria se afirma o que é válido para todos nós. Na nossa essência somos inocência, porque somos Vida. Mesmo na fragilidade, naquilo que nos fere, naquilo que sabemos e não sabemos, somos chamados a deixar que a vida passe, que a vida entre, que a vida nos fale.
Tudo o que temos de Deus, já o temos desde sempre. Nossa plenitude em Deus é de nascimento, é nossa denominação de origem, não uma elaboração acrescentada através de nossa existência. O que há em nós de divino, não é consequência de um esforço pessoal, mas a causa de tudo o que podemos chegar a ser. Daí que, quando um cristão celebra a Maria Imaculada, nela se vê refletido, junto com todos os seres.
Por isso, dizemos que Maria é Imaculada por nós, para nosso próprio bem e salvação, a fim de que possamos superar o que em nós é “maculado” (ego inflado e prepotente) e deixemos de manifestar esta “mácula” no conflito e no ódio frente aos outros. Assim, ela nos revela, com sua própria abertura ao divino, que é possível viver em liberdade, na transparência e pureza, acolhendo os outros, a serviço da comunhão e da vida.
No relato da Anunciação, mistério indicado para a festa deste dia, a primeira coisa que Maria nos ensina é a hospitalidade para com a Vida. Maria é Imaculada por ser sinal de amor.
Uma mulher “imaculada” fechada em seu isolamento, em meio aos dramas da humanidade, que vive só para si, centrada em um Deus intimista, enquanto o mundo continua padecendo, não seria o que o dogma católico confessa ao chamar Maria de “Imaculada”, ou seja, cheia de Deus, amiga de Deus, fazendo-se amiga de todas as pessoas.
Ela expressou sua vida a serviço de todos; é pessoa para a liberdade e redenção de todos.
Maria vive numa “porosidade”, ou seja, deixa-se visitar, é hospitaleira, acolhe o “novo”. Mantém no coração e na vida as portas abertas. Um anjo só nos visita quando temos o coração desarmado, quando estamos disponíveis para acolher o inesperado, para receber a fantástica e inédita ação direta de Deus.
Deus continua suscitando pessoas parecidas a Maria através das quais seu Projeto continua entrando em nosso mundo, sobretudo nas situações mais desfavorecidas de nossa humanidade. Podemos fazer memória de nomes de pessoas conhecidas em muitos casos; mas, por que não pensar que também nós poderíamos ser o prolongamento da generosidade de Maria?
A doutrina cristã afirma que na Encarnação de Jesus Cristo a natureza humana foi assumida, não aniquilada, não violentada e nem usada como roupagem para sua visibilidade. Se a natureza humana, na sua integridade, foi assumida pelo Verbo da Vida, é porque ela, em sua naturalidade, é marcada pela bondade.
Eis porque a Encarnação de Deus em Jesus Cristo outra coisa não é senão um caso singular do amor de Deus para com a humanidade e da inquieta busca humana pelo infinito. Como liberdades que se amam, Deus é o mais secreto íntimo do ser humano, assim como cada ser humano é transparência do Deus mesmo. Por isso, “pensar pouco do ser humano é pensar pouco de Deus”.
Maria revela o “humano” em sua própria realidade; ela é o que de mais nobre a humanidade poderia oferecer a Deus. A pessoa de Maria é a expressão máxima da humanidade; nela, a humanidade chega à sua plenitude; nela, se manifesta o excesso do humano. Por isso, em cada ser humano se revela algo de Maria, pois ela realizou todas as possibilidades da humanidade. Ela deixou “Deus ser Deus” no excesso de sua humanidade. Nela Deus se humaniza, se “mestiça”, se “mistura” com o humano.
Esta é a coluna mestra do dogma da Imaculada: se Deus se fez Homem é porque há em Deus algo de humano e se o ser homem pode ser assumido por Deus, em sua Encarnação, é porque há, no ser humano, uma capacidade para Deus.
O cristianismo, em sua essência, nos assegura que a Encarnação não é apenas a máxima revelação do Deus que se “humaniza”, mas igualmente o des-velamento do ser humano, divinizando-o.
Assim, Maria é, no mundo e sobre a terra, a resposta às nossas buscas: “dentro da condição humana, já estamos em Deus, quando somos homens e mulheres ... verdadeiramente”.
Maria, em sua maternidade “mestiçou Deus”: assim afirma o Papa Francisco; no seu ventre acontece a fusão do divino com o humano; o seu ventre “misturou” o divino e o humano.
“E o terceiro adjetivo que eu lhe diria, fitando-a, é que Ela quis ser mestiça, mestiçou-se. E não só com Juan Dieguito, mas também com o povo. Ela mestiçou-se para ser a Mãe de todos, mestiçou-se com a humanidade. Por quê? Porque ela mestiçou Deus. E este é o grande mistério: Maria, Mãe, mestiçou Deus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, no seu Filho” (Homilia sobre N. Senhora de Guadalupe)
Aquele que é a Vida, e por quem foram feitas todas as coisas, pede o consentimento da virgem de Nazaré para assumir a vida humana no seu seio virginal. Para que sejam cumpridas, para que o Salvador entre na nossa história, só falta o Sim de Maria. Deus nunca força a liberdade. Nem mesmo nos momentos em que está em jogo o futuro da humanidade.
Primeiro uma pergunta necessária e um esclarecimento rápido. E depois o “sim”.
Nada de condições, nada de garantias, nada de averiguações. Venha o que vier. Abertura total e entrega definitiva. Será dor e será alegria, será morte e será ressurreição, será esperar e será acolher.
Tudo virá a seu tempo e à sua maneira, porque a porta está aberta, o coração está entregue e os céus esperam. Essa é a resposta que Deus aprecia, é a disposição que espera para lançar seus projetos.
A Deus não agrada condições, dúvidas, demoras, regateios...
Espera um “sim” claro, definitivo e permanente. Então Ele entra em ação com toda a força de sua Graça, o poder de sua glória e os planos de sua eternidade. E consuma-se a Redenção.
O anjo permanece na presença de Maria até que ela diz a última palavra. Seu consentimento encerra o diálogo. O anjo retira-se em silêncio. É a hora da ação silenciosa de Deus.
Assim, para os antigos Padres da Igreja, Maria é o sim original. E este sim é mais profundo que todos os nossos nãos. Um “sim” claro e sonoro ao chamado que ela sentiu com força e aceitou com entusiasmo.
Um sim” que ressoa, enche a pequena casa em Nazaré e tem alcance universal.
Não houve programa maior nem empreendimento mais atrevido que o proposto em breves palavras pelo anjo e a resposta ousada da Virgem.
O Deus que nos criou sem pedir o nosso consentimento, nunca nos impõe missão alguma sem o nosso sim. Ele suscita nossos desejos, atrai, convida, mas respeita sempre nossa liberdade. Nossos “sins” serão tanto mais livres e fecundos, quanto mais unidos estivermos com Deus, quanto mais confiarmos na sua graça; mas eles têm de ser assumidos por nós.
- Fazer memória dos “sins” oblativos que deram um novo sentido à sua vida.