11 Outubro 2018
"Um aspecto da fé dos pequeninos consiste em acontecer nas periferias de todos os tipos. As muitas periferias – sociais, econômicas, políticas, étnicas, de gênero, culturais, religiosas – são o lugar privilegiado para desabrochar a fé, por ser onde não imperam o deus dinheiro, a violência e a ideologia."
O comentário é do padre jesuíta Jaldemir Vitório, em artigo que trata da figura de Maria de Nazaré no Evangelho Segundo São Lucas, publicado na revista Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v. 50, n. 2, Maio/Agosto 2018, p. 289-306.
O artigo foi reproduzido, com autorização do autor, por CPAL Social, 09-10-2018.
A figura de Maria, no início da catequese lucana, tem uma importante função narrativa: apresentá-la como modelo dos discípulos de Jesus de Nazaré. Maria encarna aquilo que os discípulos são chamados a ser, ao se deixarem conduzir pelo Mestre, ao longo do evangelho. Lc 1,26-56 descreve a dinâmica da fé de uma “pequenina”, que se reconhece “humilde serva”, sem qualquer importância sociorreligiosa, em quem o Senhor “fez grandes coisas”. Este artigo explicita as grandes linhas da fé da “pequenina” Maria de Nazaré, enquanto serva do Senhor e servidora do próximo, em cuja vida contemplação e ação se entrecruzam e cuja fé é proclamada no Magnificat. A narração do diálogo com a prima Isabel descreve duas “pequeninas” expressando sua fé no Deus de Israel, atento aos empobrecidos e marginalizados da história. A perícope lucana estudada fala das periferias como lugar privilegiado da fé e os pobres como os mais aptos para compreender a ação de Deus em favor da humanidade carente de salvação.
A fé dos pequeninos de todos os tempos norteia a caminhada dos discípulos do Reino, em busca de fidelidade a Deus e de honestidade no trato com o semelhante. O evangelho de Lucas contém uma declaração lapidar de Jesus, suficiente para desmontar certas estruturas religiosas, com o verniz cristão, porém, carregadas de arrogância e de desprezo pelos marginalizados social e religiosamente: “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondestes essas coisas aos sábios (sophói) e entendidos (synetói) e as revelastes aos pequeninos (nepiói)” (Lc 10,21)[1]. Portanto, o testemunho de fé dos pequeninos torna-se referência segura de fé autêntica, ao mesmo tempo em que desmerece a pretensão dos arrogantes, cuja religiosidade é vazia, muito distante da verdadeira fé.
A catequese lucana apresenta Maria de Nazaré como paradigma da fé de um pequenino. O díptico formado pela anunciação (Lc 1,26-38) e pela visitação a Isabel (Lc 1,39-56) permite perceber a raiz e a dinâmica da fé, que vai de Deus ao próximo, da contemplação à ação, da escuta à prática da Palavra. As entrelinhas da perícope evangélica são perpassadas de dinamismo espiritual, exemplar para o leitor da catequese lucana de todos os tempos e lugares, mormente, quem deseja fazer a experiência de fé como a “humilde serva” de Nazaré.
Este texto tem o objetivo de fazer a análise narrativa de Lc 1,26-56 para verificar como foi construído o personagem Maria de Nazaré e sua função na catequese do evangelista Lucas[2]. A identidade de Maria de Nazaré delineia-se em suas falas e em seus gestos. No que faz e no que diz, mostra-se quem é![3]
O evangelista propõe aos leitores e às leitoras, no início de sua catequese, um modelo de discipulado cristão, calcado no testemunho de Maria de Nazaré. Quem se der ao trabalho de lê-la, assimilá-la e transformá-la em projeto de vida, terá a mesma grandeza humana e espiritual da mãe do Messias Jesus, a discípula exemplar.
O paradoxo da narrativa evangélica corresponde ao modo divino de agir[4]. Ao longo da história, as mediações divinas foram pessoas simples do povo, sem qualquer destaque social (Ex 4,10; Jz 11,1; Jr 1,6). Eis porque Deus envia o anjo Gabriel, “a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré” (Lc 1,26). Os galileus eram vítimas dos preconceitos dos habitantes da Judeia, que os consideravam “povo da terra”, judeus de categoria inferior, pela contaminação religiosa e cultural, de longa data (Jo 7,49). Aliás, chamavam aquela região de “Galileia dos pagãos” (Is 8,23b). Para completar, o anjo Gabriel dirige-se a Nazaré, cidade perdida nas montanhas, fora das grandes rotas de comércio e de trânsito. Um sinal de sua absoluta falta de importância pode-se deduzir de a Bíblia fazer alusão a milhares de cidades, exceto Nazaré. Nenhum fato bíblico, importante ou não, é reportado como tendo acontecido nessa cidadezinha ignorada. Jo 1,46 reporta a admiração de Natanael, quando Filipe refere-se a Jesus, na condição de Messias: “De Nazaré pode sair algo de bom?” O preconceito que recaiu sobre Jesus, igualmente, recaía sobre Maria. Entretanto, ela não se deixou bloquear por esse peso malévolo, antes, assumiu com grandeza de alma o que Deus lhe propunha. A disponibilidade para Deus, no episódio da anunciação, revela um modo de proceder da Mãe de Jesus. O sim dito a Deus, naquele momento preciso, fluiu na sequência de muitos outros “sins”, com os quais sua vida era tecida. As palavras de disponibilidade ao projeto divino brotavam de uma vida toda centrada no querer de Deus, embora o cotidiano de Maria, em nada, se diferenciasse do dia a dia das demais mulheres de Nazaré (BOFF, 2003).
Outro paradoxo diz respeito ao ser Maria, ao mesmo tempo, virgem (parthénos) e desposada (emnesteuméne) com José, “da casa de Davi” (Lc 1,27). Deus se afeiçoará de tal mulher e, com ela, fará uma espécie de aliança, confiando-lhe a enorme tarefa de ser a mãe do “filho do Altíssimo”, a quem seria dado “o trono de Davi, seu pai” (Lc 1,32).
Só os simples estão aptos para enfrentar experiências de fé dessa magnitude. Os sábios e poderosos estão incapacitados, por serem cheios de si mesmos e seus projetos, a ponto de não haver espaço em seus corações para acolher, com total abertura, o que vem de Deus. “O fato de Maria, menina pobre de Nazaré, conceber Jesus Messias, o Filho de Deus, indica que o Deus da vida inverte a ordem social: os pobres e oprimidos se tornam sujeitos da história com o projeto de solidariedade e fraternidade” (NAKANOSE, 2012, p. 14)[5].
A simplicidade de Maria impede-a de compreender a saudação angélica, que a chama de “cheia de graça” (kecharitoméne[6]), agraciada, “eleita pelo favor de Deus”[7], e declara: “O Senhor está contigo!” (Lc 1,28)[8]. “Não é de se admirar que Maria, pessoa humilde e pobre, tenha ficado confusa e impressionada diante da saudação do anjo” (MESTERS, 1978, p. 57). Daí a perturbação e a incerteza do significado de tudo aquilo (Lc 1,29). A condição humilde (tapeínosis – Lc 1,48) não a permitia tomar as palavras do anjo Gabriel como evidentes [9]. Pareciam não se enquadrar em sua realidade! Sua autoconsciência era a de uma mulher simples do povo, sem qualquer predicado especial para justificar o que ouvia o anjo comunicar-lhe. Teria havido um engano? Gabriel se equivocara e se dirigira à pessoa errada? A “intervenção da força assombradora e assombrosa de Deus”, em sua vida, extrapolava todos os limites do imaginável (OLIVEIRA, 2000, p. 57).
Maria “confessa que foi sua situação de pequenez que atraiu o olhar misericordioso de Deus” (BOFF, 2009, p. 342). Deus volveu o olhar “sobre a humildade (tapeínosis) de sua serva” (Lc 1,48) e percebeu estar à altura de se tornar colaboradora na obra salvífica, em favor da humanidade[10]. A decisão divina, portanto, teve uma motivação específica. Por isso, Maria foi destinada “a fazer coisas grandes”, em nome do Deus Santo e Poderoso (Lc 1,49).
A observação do narrador, em Lc 1,56, para fechar a cena da visitação, corresponde a Lc 1,38, declaração conclusiva da cena da anunciação. A radicalidade de Maria, ao se colocar inteiramente nas mãos de Deus, equipara-se à sua radicalidade no serviço à prima Isabel. A informação – “Maria permaneceu com ela cerca de três meses” – deve ser interpretada para além da conotação cronológica. De fato, o leitor é informado que Maria serviu Isabel, durante todo o tempo em que necessitou. E só voltou para Nazaré, quando percebeu não ser mais necessária sua ajuda. Enquanto a prima careceu de cuidados, esteve junto dela para servir, com total gratuidade, pensando, apenas, na atenção a lhe ser dispensada. Só se sentiu liberada ao perceber que a prima estava em condições de retomar, por si só, a rotina doméstica[11]. A fé de Maria e o seu sim a Deus expressaram-se como dedicação integral à prima fragilizada pela gravidez na velhice, da mesma forma como se entregara, totalmente, ao projeto de Deus. “Maria é, assim, apresentada como uma mulher pobre da periferia, consciente e comprometida com a causa dos pobres” e com a causa de Deus (NAKANOSE, 2013, p. 15; cf. MESTERS, 1978, p. 32-33.41-44).
A perícope lucana da anunciação começa com uma observação temporal enigmática: “no sexto mês” (Lc 1,26). O leitor pergunta-se a que se refere. A resposta só ocorrerá no v. 36, quando a expressão “sexto mês” reaparece. Isabel e sua necessidade de cuidados estão no pano de fundo da cena. O anjo Gabriel confronta Maria em duas vertentes: por um lado, apresenta-lhe o projeto divino, referente à geração de um “Filho de Deus”, pela “força do Altíssimo”, cujo Espírito Santo a cobriria com sua sombra (Lc 1,35); por outro lado, confronta-a com a gravidez da velha prima estéril, já em estado avançado de gestação (Lc 1,36).
Na perspectiva do anjo Gabriel, a alusão à concepção da estéril Isabel, em paralelo com a concepção virginal de Maria, tinha como objetivo mostrar como “para Deus nada é impossível” (Lc 1,37). Entretanto, pode-se dar um passo além e entender a referência a Isabel como um desafio para a fé de Maria. Que haveria de fazer, sabendo da gravidez de alto risco da prima, certamente, carente de ajuda? Como reagiria, após a surpreendente experiência de ser declarada “agraciada”, e gozar a especial proteção divina (Lc 1,28)? Qual será a sequência dos fatos?
A cena da visita a Isabel ilumina a cena da anunciação, ao revelar a profundidade da misericórdia de Maria que, “naqueles dias, levanta-se e vai apressada à montanha, a uma cidade de Judá” (Lc 1,39). O narrador lança mão de um recurso literário, chamado elipse, para falar, em um único versículo, de Maria saindo de Nazaré e chegando à Judeia[12]. Cabe ao leitor imaginar as agruras de uma viagem de quase cento e cinquenta quilômetros, a pé, por uma estrada infestada de ladrões, devendo ser percorrida em uma semana, com a necessidade de pernoitar em hospedarias coletivas. O versículo sintético permite supor ter Maria empreendido sozinha a viagem, sem medo, consciente da responsabilidade de servir a prima carente de cuidados. E, mais, despreocupada com as tarefas domésticas, deixadas para trás, como se não lhe dissessem mais respeito. A missão, agora, consistia em se colocar toda a serviço da prima, à ponto de dar à luz.
Maria, na cena da anunciação, é desafiada a abrir o coração, simultaneamente, a Deus, cujo enviado lhe comunicava algo de importância transcendente, e à prima, que habitava muito distante, porém, carecia de seus cuidados. “A palavra de Deus fez com que ela saísse de si mesma e se esquecesse dos seus problemas, para poder pensar nos problemas dos outros” (MESTERS, 1978, p. 30). A vida de Maria passa a girar entre dois polos: a missão de gerar Jesus, “o santo filho de Deus” (Lc 1,35) e a de levar conforto para a prima necessitada.
O diálogo com o anjo Gabriel produz uma dinâmica espiritual que une, em Maria, a total abertura para Deus e para o próximo carente[13]. Assim, a cena da visitação decorre espontânea da cena da anunciação, como dois momentos mútuo relacionados de um só movimento. A serva de Deus, de maneira natural, transforma-se em serva da prima carente, sem qualquer sinal de coação. O gesto de servir ao próximo decorre, espontaneamente, do serviço a Deus.
Uma tentação recorrente consiste em pensar a fé em termos dualistas, de modo a desconectar elementos que, por natureza, estão unidos. Este é o caso da contemplação e da ação ou, em outras palavras, da oração e da vida. A fé dos pequeninos tende a não cair nessa armadilha, ao superar os impulsos de uma fé racionalista pela experiência de fé existencial, histórica, em conformidade com a tradição cristã original.
A catequese lucana narrou Maria de Nazaré como a serva do Senhor que soube coligar, com perfeição, os dois polos da espiritualidade cristã. A cena da anunciação apresenta-a, inteiramente, contemplativa, num diálogo aberto e franco com o “anjo Gabriel enviado por Deus” (Lc 1,26). Trata-se de uma oração em que o diálogo entre Deus e a orante está enraizado na história. Maria recebe, da parte de Deus, a revelação de estar envolvida pela graça divina e ter sempre consigo o Senhor. Cabe ao leitor intuir a ação divina no agir cotidiano de Maria, desdobrando-se em gestos de bondade. A condição de kecharitoméne, jamais, poderia dar espaço ao egoísmo, tampouco à insensibilidade em face ao sofrimento alheio. Antes, a riqueza da graça recebida mostra-se verdadeira numa vida virtuosa, feita de serviço ao próximo.
A sequência da conversa entre Maria e o anjo Gabriel toca um tema de extrema sensibilidade na sociedade da época: a eventualidade de se gerar um filho sem a participação masculina. O diálogo é feito de discernimento, com pedido de esclarecimentos e esforço de compreensão por parte de Maria. Como argumento, o anjo Gabriel apresenta o caso de Isabel, prima de Maria, a ponto de entrar em trabalho de parto, embora sendo idosa e tida na conta de estéril. Uma premissa põe fim à resistência de Maria: “Para Deus nada é impossível” (Lc 1,37). Só, então, Maria dá um “sim” resoluto: “Eis aqui a serva do Senhor, realize-se em mim conforme a tua palavra” (Lc 1,38).
A disposição de, em tudo, obedecer ao querer divino é característico dos pequeninos[14]. De modo especial, nas situações em que a pura razão se torna incapaz de compreender o sentido dos fatos e só resta buscar outra forma de racionalidade, às vezes, perceptível de leve, à luz da fé. Esse foi o caso de Maria!
O diálogo-contemplação dá, então, lugar para o agir misericordioso, desdobrando-se num gesto de total entrega ao cuidado da prima Isabel. Sem contemporizar, Maria parte, às pressas (spoudés), para uma terra distante onde está alguém que dela necessita. A narrativa parca do evangelho abre espaço para a imaginação do leitor, que contempla a alegria de Maria em poder servir; a entrega generosa a quem dela necessita, sem qualquer exigência ou condição; a liberdade em relação a tudo quanto lhe era caro em Nazaré, onde estavam suas responsabilidades familiares e, sobretudo, a certeza de estar correspondendo ao querer de seu Deus. Enfim, é “a alegria pelo dom de uma vida” (CALDIROLA, 2013, p. 13).
A presença de Maria, junto à prima grávida, é portadora de alegria especial, oriunda do Espírito de Deus! Por isso, a criancinha dá pulos de alegria no ventre de Isabel, que “repleta (eplésthe) do Espírito Santo” (Lc 1,41), participa da graça (cháris) concedida a Maria. Maria, agraciada pelo Espírito Santo (Lc 1,35) vindo do alto, torna-se irradiadora do Espírito, numa comunicação natural de algo que lhe fora concedido. O misterioso transbordar do Espírito Santo foge-lhe do controle, fazendo a alegria reinar ao seu redor.
O tema da alegria diz respeito, também, a Maria, quando declara se alegrar, profundamente, pela salvação recebida de seu Deus: “Alegra-se meu espírito por causa do meu Deus salvador” (Lc 1,47). O Espírito que, nela, é fonte de alegria converte-a em missionária da alegria e da esperança, característica de quem abre o coração para servir o próximo, sem interpor dificuldades. Ela é a imagem dos pequeninos transformando a contemplação em ação, como alegre doação de si mesmos aos irmãos carentes.
Maria toma uma decisão que comprometerá toda sua vida com inteira liberdade, sem a preocupação de ter a autorização de José, a quem fora prometida em casamento (Lc 1,27). Sua “maternidade é uma opção livre. [...] não consulta José, ela toma sua própria ‘decisão’” (MENA LÓPEZ, 2006, p. 140). Trata-se de atitude inusitada, considerando a condição das mulheres na época, dependentes dos pais e, posteriormente, dos maridos. “A atuação autônoma de Maria é contrária ao costume do mundo patriarcal do seu tempo” (NAKANOSE, 2013, p. 14). A fé exigiu dela romper com o machismo imperante, na sociedade e na religião, e abrir espaço para uma relação de igualdade e respeito entre homem e mulher, esposo e esposa, como se verá nas cenas seguintes, nas quais Maria e José são descritos em total comunhão (Lc 2,4.16.33.48).
O Magnificat (Lc 1,46-55) apresenta um elemento importante na fé dos pequeninos: a proclamação da fé vivida[15]. Proclamar a fé consiste em anunciar o Deus em quem se crê e sob cuja guia se caminha. É a tarefa de revelar sua identidade, reconhecida em seus feitos em favor da humanidade, deixando de lado as falas teóricas.
A “teologia” confessada por Maria transparece nas entrelinhas de seu hino de louvor. Trata-se de um Deus desconcertante, a lançar seu olhar sobre (epiblépo) uma humilde mulher das montanhas da Galileia, habitante de uma cidade desconhecida e mal afamada. O Deus de infinita majestade se dá ao trabalho de se debruçar sobre um ser humano extremamente humilde (tapeinós), “uma vida destituída de qualquer importância social, como a da imensa maioria do povo humilde e pobre. Era isso que fazia dela uma autêntica tapeiné, uma Maria como tantas outras que existem no mundo” (BOFF, 2009, p. 341; Lc 1,48). Por ser irrelevante social e religiosamente, Deus lhe confia uma tarefa de extrema importância. E Maria reconhece as coisas grandiosas (megála) feitas pelo Santo em seu favor (Lc 1,49), como fizera ao longo da história de Israel. “É a memória dos pobres, dos que não esqueceram, como os sacerdotes no templo, quem é o nosso Deus, de que lado ele está e o que é que ele quer” (GALLAZZI, 2006, p. 130).
A preocupação e o interesse do Santo de Israel por ela têm dimensões mais vastas e vêm de longa data. “A correlação entre santidade e misericórdia, que foi uma constante na experiência histórica da fé israelita, aparece também aqui” (CALERO DE LOS RIOS; ÁLVAREZ PAULINO, 1999, p. 351). A misericórdia (éleos) divina estende-se a toda humanidade, passando de geração em geração, para aqueles que lhe abrem o coração e vivem no temor do Senhor (Lc 1,50). Excluem-se os que têm seus corações enclausurados no egoísmo, incapazes de reconhecer o quanto são amados pelo Deus Salvador (theós sotér – Lc 1,47). Portanto, o Deus dos pequenos, longe de ser faccioso e excludente, é o Deus da misericórdia universal, confrontado com a liberdade humana, a quem compete acolher ou não sua oferta de amor. Enquanto os pequeninos e os pecadores acolhem o dom divino, os grandes e poderosos o rejeitam.
Os v. 51-53 descrevem a visão de sociedade, na leitura teológica dos pequeninos. “A voz que se expressa em Miriam é a voz dos marginalizados e humildes, ela anuncia precisamente a felicidade para estes grupos” (NAVIA VELASCO, 2003, p. 17). Os soberbos e arrogantes (hyperéphanoi), bem como os poderosos (dynástai) e os ricos (ploutoúntes) são contrapostos aos humildes (tapeinói) e aos famintos (peinóntes). Enquanto os primeiros são confundidos em seus raciocínios, destronados e reduzidos à indigência, os segundos são elevados e repletos de bens. “O cântico de Maria proclama, de forma profética, a ação transformadora de Deus nas relações sociais. Embora use termos em contraposição, não defende mera troca de papéis: quem está em cima passaria para baixo e vice-versa. [...] Maria alimenta a esperança de que vale a pena sonhar e criar alternativas em vista de uma nova sociedade” (MURAD, 2017, p. 78). Por conseguinte, o modo como a pobre nazarena lê a realidade, nada tem de alienado, tampouco ingênuo. Antes, atinge a raiz das injustiças, geradoras de exclusão, opressão e morte. Essa teologia engajada sublinha um elemento importante na fé dos pequeninos: a capacidade de pensar Deus contrário à injustiça e, ao mesmo tempo, disposto a fazer uma autêntica revolução, de modo a superar as estruturas socioeconômicas, geradoras de desequilíbrios sociais, a penalizar, sempre mais, os pobres e a gerar marginalização social.
Os v. 54-55 ilustram o agir divino com o exemplo de Israel. O pano de fundo é a teologia do êxodo, quando Deus ouve o clamor de um povo massacrado pela prepotência do faraó, a ponto de ser eliminado, sente-se afetado e lhe envia um libertador. A ação em favor de Israel resulta da misericórdia entranhada no coração de Deus, que não o permite assistir impassível ao sofrimento dos pequenos. Outro elemento diz respeito à fidelidade divina. A promessa de outrora – “como falou a nossos pais” – permanece de pé e vale para sempre (eís tón aióna), englobando Abraão e toda sua descendência (tó spérmati autoú), inclusive Maria.
Maria assume essa teologia, que fala de um Deus afetado pelos pequeninos, a quem acompanha e protege com sua misericórdia, impedindo que os soberbos e poderosos prevaleçam, transformando-os em vítimas[16]. Esse é o Deus da fé de Maria, proclamado no Magnificat, numa teologia militante, inteiramente, aderente à sua história pessoal e à história de seu povo. E, mais, “todo o canto inscreve-se no mesmo sopro libertador//, típico do evangelho de Lucas, evangelho dos pobres, e da dimensão profética de Jesus” (RUIZ, 1980, p. 783 – grifo do autor).
A dupla anunciação-visitação apresenta Maria dialogando em dois níveis inter-relacionados. Embora pareçam justapostos, na verdade, fluem em perfeita continuidade. O diálogo com o anjo do Senhor tem sequência no diálogo com a prima Isabel. É a dinâmica da oração dos pequeninos que vai de Deus ao próximo e do próximo a Deus, numa circularidade ascendente e descendente, cuja plenificação é o diálogo eterno com a Trindade.
O colóquio com o anjo Gabriel gira em torno da missão que Deus quer confiar a Maria. A proposta divina deixou-a perturbada, por lhe abrir horizontes jamais imaginados. A consciência da pequenez a impedia de se colocar diante de Deus, pensando ter alguma importância. Por isso, quando o anjo a declara “repleta de graça” e objeto da predileção divina, a ponto de Deus estar com ela, de maneira especial, só lhe cabe ficar perturbada e confusa (dietaráchte). O sentido das palavras do anjo não era claro. Daí a necessidade de pensar profundamente (dielogízeto) o que, afinal, significavam. Como alguém sem importância poderia gozar de tal estima divina? Que sentido tem Deus se preocupar com uma criatura que vive na periferia da periferia do mundo? Que Deus é esse que “perde seu tempo” com alguém sem qualquer peso social e religioso? A fé de Maria é questionada nas bases, na medida em que se vê obrigada a repensar a imagem de Deus, para pensá-lo às voltas com os pequenos desse mundo.
Na sequência do diálogo, Maria é confrontada com uma missão de suma importância, por “ter achado graça diante de Deus” (Lc 1,30): a de ser a mãe do Messias, cujo nome será Jesus (Lc 1,31). Deus tem confiança em Maria, porque a vida de sua serva lhe é toda confiada. O olhar divino volta-se para os pequeninos, com quem Deus conta para realizar “grandes coisas”.
A resposta de Maria ao anjo Gabriel, interpondo a dificuldade de “não conhecer homem” (ándra ou ginósko), aponta para a consciência das implicações do que lhe está sendo proposto. Mesmo diante de Deus, Maria sabe agir com prudência e reflexão, de modo a evitar compromissos precipitados, impossíveis de serem postos em prática.
As palavras do anjo, realmente, são enigmáticas (Lc 1,35). Embora a tradição bíblica conhecesse a concepção por parte de mulheres estéreis, como aconteceu com as matriarcas de Israel (Gn 11,30; 16,1-2; 25,21; 29,31; 30,1-2), bem como com Isabel, conforme a revelação do anjo a Maria, no versículo seguinte, a concepção sem a participação masculina era algo impensável. A referência a Isabel serve para ilustrar a onipotência divina. Entretanto, para o caso específico de Maria, de fato, não serve de modelo.
A resposta de Maria é resoluta: “Eis aqui a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38). Mesmo sem compreender, totalmente, o que Deus esperava dela, colocou-se como serva (doulé) e se mostrou disposta a abraçar o que se lhe pedia. A pequenina de Nazaré torna-se modelo de fé ao não condicionar a obediência a Deus à compreensão racionalizante de seu santo querer. A razão da fé dos pequenos é de natureza distinta da dos racionalistas e dos teóricos, por não condicionar a obediência à compreensão racional exaustiva do querer divino e de sua efetivação. Maria deixa de lados tais dúvidas e se abre, inteiramente, à proposta de Deus, com total convicção de tê-lo consigo, como dissera o anjo Gabriel.
A fala com a prima Isabel vem na sequência do diálogo com o anjo, pois o evangelista não se deu ao trabalho de narrar detalhes da viagem de Nazaré até as montanhas da Judeia, tudo acontecendo no espaço de um versículo (Lc 1,39). Ela é “uma jovem decidida, dotada de iniciativa própria e radical autonomia, que atravessa um extenso território sozinha, para levar a cabo seu propósito” (NAVIA VELASCO, 2003, p. 11). O v. 40 chama a atenção pelo fato de Maria ter entrado na casa de Zacarias e saudado Isabel, como se tivesse passado por ele sem vê-lo. Zacarias é desprovido de importância, pois o objetivo da viagem de Maria consiste em servir a prima Isabel. É possível entender que a casa seja de Zacarias. Porém, quando Maria chegou, ele não estava aí. Assim, Maria não tinha como saudá-lo! Se estivesse presente, a tradição a obrigava cumprimentá-lo, em primeiro lugar. Assim, os personagens da cena são, apenas, duas pequeninas, expressando a fé das mulheres marginalizadas!
Isabel, de certo modo, retoma os elogios que o anjo Gabriel tecera para Maria (Lc 1,28), ao declará-la: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre” (Lc 1,42). Ser agraciada (kecharitoméne) e bendita (eulogoméne[17]) parecem uma realidade única. Com isso, Isabel ratifica as palavras do anjo.
Fica a impressão de Isabel ter presenciado o diálogo de Maria com o anjo Gabriel, ao se declarar honrada de receber a visita da “mãe do meu Senhor” (hé méter toú kyríou mou) (Lc 1,43), como se conhecesse o conteúdo da cena anterior. O “santo filho de Deus” (Lc 1,35) é reconhecido como “senhor”, com toda carga de messianidade contida no termo. De certa forma, Isabel é a primeira a reconhecer e confessar o messianismo de Jesus.
O sinal da messianidade do filho que Maria traz no ventre tornou-se patente na alegria que a criança manifestou, dando saltos (eskírtesen) no ventre de Isabel, que se torna repleta do Espírito Santo (Lc 1,41).
A fala de Isabel corresponde ao reconhecimento do que o anjo Gabriel dissera a Maria, como forma de respaldar a declaração divina, tornando-a ainda mais veraz. Isabel dá mostras de estar unida a Deus, como é o caso de Maria. Por isso, o diálogo entre elas transita entre o humano e o divino, entre o céu e a terra, entre a transcendência e a história, como dois polos inter-relacionados. A pequenina de Nazaré encontrou a pequenina da Judeia e ambas são capazes de se compreender, como se fossem almas gêmeas. “As duas mulheres pobres acreditam na ação salvífica de Deus na história, manifestada na tradição dos pobres do Antigo Testamento: ele está a favor dos pobres, está no meio deles” (NAKANOSE, 2013, p. 15).
As palavras finais de Maria, no Magnificat (Lc 1,46-55), à primeira vista, podem dar a impressão de quebrar o diálogo com Isabel. Entretanto, na perspectiva narrativa do texto, fecham com chave de ouro o conjunto dos diálogos – com o anjo Gabriel e com a prima Isabel –, ao descrever a misericórdia de Deus em ação na história humana, sempre se colocando ao lado dos pequeninos e dos marginalizados, como se pode ver no díptico da anunciação-visitação. O Deus que encheu de graça a mãe de Jesus, a pequenina de Nazaré, é o mesmo que toma a defesa dos humildes e sem peso social. O Deus que deixou de lado as mulheres da capital, tão importantes e louvadas, por valorizar uma mulher simples das montanhas da Galileia, é o mesmo Deus que destrona os poderosos e priva os ricos de seus motivos de orgulho, ou seja, a posse de bens. O Deus que voltou seu olhar complacente para a virgem de Nazaré é o mesmo que, ao longo dos tempos, revela-se cheio de misericórdia para com os desprezados desse mundo. Por conseguinte, processa-se uma clara conexão entre a teologia da anunciação e a teologia do Magnificat, proclamada no diálogo entre Maria e Isabel.
Os lugares privilegiados da fé dos pequeninos são as periferias humanas de todos os tipos. Aí a experiência de Deus tende a adquirir maior consistência, na medida em que a idolatria do ter e do poder têm menos chance de se imporem. Uma tentação a ser superada, em vista de se chegar à fé autêntica, é o fideísmo, onde o pobre tudo espera de Deus, numa fé passiva e acomodada, contando com intervenções miraculosas, para resolver-lhe os problemas. Pelo contrário, pensa-se, aqui, a fé como engajamento dos pequenos na transformação da realidade, a partir de gestos singelos de misericórdia e de luta pela justiça, tendo como horizonte o mundo querido por Deus, onde a dignidade humana é respeitada e a condição de filhos e filhas de Deus resplandece em cada ser humano.
O duo lucano da anunciação-visitação, em cujo pano de fundo está a experiência de fé de Maria e de Isabel, situa-se, geograficamente, nas periferias. A anunciação acontece num ambiente de dupla marginalização. A Galileia era uma região secularmente marcada pelo desprezo dos judaítas (os habitantes da Judeia), que, por motivos históricos, consideravam os galileus como judeus de nível inferior, muito distintos de quem morava nas proximidades do Templo, especialmente, na capital Jerusalém, lugar da habitação de Deus, no meio do seu povo.
À marginalização regional, somava-se a marginalização local, da qual Nazaré era vítima. Situada nas montanhas da Galileia, não tinha qualquer importância comercial, religiosa ou política. Não havia, aí, famílias importantes. Nada em Nazaré se destacava. Para completar, pesava sobre ela o estigma da má-fama, que recaía sobre todos quantos provinham daí.
Exatamente a essa periferia, vítima da marginalização e do desprezo, Deus envia o anjo Gabriel, com a tarefa de comunicar a Maria sua condição de “agraciada” (Lc 1,28) e lhe propor a imensa tarefa de ser a mãe de Jesus, destinado a reinar, eternamente, sobre a casa de Jacó (Lc 1,31-33). Afinal, na periferia da periferia, se realizaria a esperança acalentada ao longo de tantos séculos do surgimento do Messias, restaurador da realeza davídica, na condição de “filho do Altíssimo” (Lc 1,32).
A cena segue os padrões da teologia de Israel, que se refere a Deus contando com a colaboração dos fracos e dos pequeninos para fazer acontecer grandes coisas. Inesperado e surpreendente é o convite divino ser dirigido a uma jovem fora do circuito sociorreligioso da época, de modo especial, de Jerusalém, onde, com certeza, havia muitas pretendentes à função de mãe do Messias esperado. A Galileia e Nazaré, sem dúvida, estavam fora de qualquer expectativa messiânica plausível.
A cena da visitação, por sua vez, situa-se, também, na periferia. Agora, na região montanhosa da Judeia, numa cidade, cujo nome é omitido. Em todo caso, não é a capital, Jerusalém, cuja centralidade na religião judaica vinha de longe, desde sua fundação pelo rei Davi (2Sm 5,6-9) e a construção do Templo, pelo rei Salomão (1Rs 6–8). Se Nazaré era a periferia da periferia, a cidade onde habitava Isabel pode ser considerada a periferia do centro.
Na periferia, Maria proclama sua fé com o Magnificat e a vive como serviço à prima Isabel. Vive a espiritualidade como doação e cuidado com o semelhante. Pratica o culto da solidariedade e da gratuidade, sem interpor objeções, nem medir sacrifícios. Em suma, uma vez mais, na periferia, faz uma experiência radical de entrega de sua vida nas mãos de Deus, como desdobramento das palavras dirigidas ao anjo Gabriel: “Eis aqui a serva do Senhor...” (Lc 1,38). O serviço ao Senhor acontece fora do âmbito da sinagoga e do Templo, ao se tornar servidora da prima necessitada de cuidados, nas montanhas da Judeia.
Sua fé independe das estruturas religiosas, em geral, encravadas nos centros urbanos ou em locais de grande afluxo de multidões, como é o caso dos santuários e dos lugares de peregrinação. Basta haver um ser humano carente de cuidados! Onde se encontram tais seres humanos, senão nas muitas periferias de nosso mundo?[18] Aí os pequeninos têm chance de viver sua fé como serviço. Na tradição lucana, Maria é apresentada como exemplo consumado desse modelo de fé, agindo nas muitas periferias do mundo.
A dupla cena da narrativa lucana, anunciação-visitação, permite delinear a fé dos pequeninos de todos os tempos, ao descrever gestos e palavras de Maria de Nazaré. A mãe de Jesus de Nazaré torna-se paradigma exemplar de fé dos simples, “do que acontece com todos os pequenos, infelizes e amargurados deste mundo”, não apenas por sua condição sociorreligiosa e cultural, mas, de modo especial, no seu modo de se relacionar com Deus (anunciação) e com o próximo (visitação) (BOFF, 2009, p. 342). Sem qualquer distinção humana que pudesse torná-la merecedora do beneplácito divino, por pura gratuidade, torna-se agraciada por Deus – kecharitoméne –, que a faz merecedora de ser a mãe de Jesus, “o filho do Altíssimo”, a quem seria dado “o trono de Davi” (Lc 1,32). Por sua pequenez, foi engrandecida aos olhos de Deus. A dinâmica da fé da pequenina Maria permite-a passar do “serviço a Deus” ao “serviço ao próximo”. A fé dos pequeninos caracteriza-se por não se limitar à relação com Deus, pela oração, e, sim, por estabelecer relações de amor misericordioso e de cuidado com os necessitados. É o pobre que se coloca todo ao serviço dos empobrecidos, partilhando de sua pobreza, com total naturalidade, sem exigir nada em troca. O encontro com Deus desdobra-se no encontro com o próximo e a contemplação torna-se serviço, num movimento ininterrupto de abertura e de doação, como se fora um círculo a englobar todas as dimensões da existência, numa unidade bem integrada.
O Magnificat de Maria, “teodiceia dos pobres”, chama a atenção para a fé dos pequeninos, capazes de falar de Deus, sem o perigo dos dogmatismos abstratos e das doutrinas desencarnadas (BOFF, 2009, p. 372). Maria fala do Deus libertador, solidário com os pequenos e os pobres, com quem conta para realizar grandes coisas. “O Deus do Magnificat não é um Deus neutro. No conflito enfrentado com os homens, Deus se mostra decididamente partidário dos que não têm, não sabem e não podem, não para canonizar essa situação, mas para libertá-la e redimi-la” (CALERO DE LOS RIOS; ÁLVAREZ PAULINO, 1999, p. 359). A estreita vinculação com a história leva-o a tomar partido pelos deserdados desse mundo e a agir em detrimento dos ricos e poderosos, cuja soberba abate e cujo orgulho desmascara. Esse é o Deus fiel à humanidade sofredora, proclamado na oração dos pequeninos. “Desde que olhou misericordiosamente, ternamente, amorosamente, ‘a humilhação’ de sua serva, Deus não afastou seu olhar de nossa humilhação: da pobreza que fere, da ferida que sangra, da alma que se comove, da morte que nos ameaça, de tantas e tantas baixezas humilhantes” (APARICIO RODRIGUEZ, 1998, p. 363)[19].
Um aspecto da fé dos pequeninos consiste em acontecer nas periferias de todos os tipos. As muitas periferias – sociais, econômicas, políticas, étnicas, de gênero, culturais, religiosas – são o lugar privilegiado para desabrochar a fé, por ser onde não imperam o deus dinheiro, a violência e a ideologia. Porém, o simples fato de ser periferia socioeconômica não se torna, necessariamente, o lugar do desabrochar da fé dos pequeninos, pois os despossuídos socioeconomicamente podem ter o coração apegado ao dinheiro, serem violentos e sem entranhas de misericórdia no trato com o próximo. Os pequeninos, diante de Deus e do próximo, têm a capacidade de caminhar na contramão do mundo dos grandes e dos prepotentes. Daí se verem obrigados a caminhar à margem da sociedade da exclusão, o reino dos tiranos e dos inimigos de Deus. O caminho dos pequeninos segue por trilhas diferentes, que passam por Deus e pelo próximo necessitado, num estilo de fé inteiramente existencial, sem espaço para devocionalismos vazios, que enredam o crente em práticas religiosas, que lembram as muitas “obras” do farisaísmo judaico do tempo de Jesus, sem espaço para a caridade. Ao caminhar pelas veredas da fé que se desdobra em misericórdia, o pequeno se torna grande aos olhos de Deus, sem se preocupar com a grandeza aos olhos do mundo. Por conseguinte, a fé dos pequenos, em última análise, é a fé dos verdadeiramente grandes.
Referências:
• ALETTI, J.-N. Quand Luc raconte. Paris: Cerf, 2012.
• ALTER, R. The Art of Biblical Narrative. New York: Basic Books, 1981.
• APARICIO RODRIGUEZ, A. El “Magnificat” desde la humillación. Ephemerides Mariologicae, Madrid, v. 48, p. 335-363, 1998.
• BOFF, C. M. Mariologia Social – O significado da Virgem para a sociedade. São Paulo: 2009, 2ª ed.
• BOFF, C. O cotidiano de Maria de Nazaré. São Paulo: Salesiana, 2003.
• BROWN, R. E. O nascimento do Messias – Comentário das narrativas da infância nos Evangelhos de Mateus e Lucas. São Paulo: Paulinas, 2005.
• CALDIROLA, D. Di donne e di gioia – Itinerario spirituale nel Vangelo de Luca. Milano: Ancora, 2013.
• CALERO DE LOS RIOS, A. M.; ÁLVAREZ PAULINO, M. A. El Dios del Magnificat. Isidorianum, Sevilla, v. 8, nº 15, p. 337-361, jan./jun. 1999.
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• FABRIS, R. O Evangelho de Lucas, in FABRIS, R.; MAGGIONI, B., Os Evangelhos II. São Paulo: Loyola, 2006, 4ª ed., p. 9-247.
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• MARGUERAT, D.; WÉNIN, A. Sapori del racconto biblico. Una nuova guida a testi millenari. Bologna: EDB, 2013.
• MENA LÓPEZ, M. Leitura de Lucas 1–2 a partir de uma perspectiva afro-feminista. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis, nº 53, p.136-146, 2006.
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• NAKANOSE, S. Maria pôs-se a caminho: Uma leitura de Lucas 1,39-45. Vida Pastoral, São Paulo, v. 54, nº 292, p. 11-22, set./out. 2013.
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• PAPA FRANCISCO. Exortação Apostólica Evangelii Gaudium – A alegria do Evangelho, sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. São Paulo: Paulus; Loyola, 2013.
• RUIZ, G. El Magnificat: Dios está por los que pierden. Sal Terrae, Santander, v. 68, nº 810, p. 781-790, nov. 1980.
• SKA, J.-L.; SONNET, J.-P.; WÉNIN, A. L´analyse narrative des récits de l´Ancien Testament. Paris: Cerf, 1999.
• VITÓRIO, J. Análise narrativa da Bíblia – Primeiros passos de um método. São Paulo: Paulinas, 2016.
Notas:
1. “Os pequenos são os ignorantes, desprovidos da cultura religiosa, que – num ambiente teocrático como o judaico – é também o passaporte para o reconhecimento e o papel social e religioso. Em outras palavras, os pequenos são os pobres, os excluídos da cultura salvífica da lei. [...] Jesus adota na sua atividade o estilo de Deus, que revela a sua preferência pelos pobres (cf. 4,18), que são ao mesmo tempo os simples e humildes, e a eles concede a verdadeira sabedoria” (FABRIS, 2006, p. 123). O sentido literal de népios é criança, [lat. infans] (Mt 21,16; Rm 2,20; 1Cor 13,11; Gl 4,1.3; 1Ts 2,7; Hb 5,13). Porém, pode adquirir sentido figurado, por exemplo, na expressão “como crianças em Cristo” (hós népiois en christo) (1Cor 3,1).
2. “A composição dos personagens lucanos é, com frequência, complexa. [...] Recordemos a capacidade lucana primária de construir com poucas palavras uma figura narrativa cujos traços derivam de vários registros, que conferem ao personagem espessura e credibilidade em face ao leitor. A caracterização lucana evidencia-se, em primeiro lugar, pelo frequente recurso ao componente afetivo, em segundo, pelo uso de elementos burlescos, em terceiro, pelo gosto da dimensão paradoxal” (MARGUERAT-WÉNIN, 2013, p. 167). A leitura da catequese lucana deve ter sempre em vista seu foco cristológico. Tudo, nela, aponta para a cristologia. “Talvez, a obra lucana seja, de fato, o primeiro ensaio de cristologia verdadeiramente narrativa” (ALETTI, 2012, p. 276).
3. “A identificação dos personagens bíblicos se constrói no decorrer de suas falas e de suas ações. [...] O narrador comporta-se com discrição, procurando intervir o menos possível com informações dadas fora da narração. O conhecimento do personagem resultará do esforço do leitor de estar atento a suas falas e a seus gestos” (VITÓRIO, 2016, p. 79-80).
4. Como acontece nas narrativas bíblicas, “o personagem ‘Deus’ tem um papel determinante. [...] Por trás das palavras está a imagem de Deus que (o narrador) deseja transmitir aos leitores. [...] Os personagens ‘humanos’ da Bíblia, em última análise, definem-se por sua relação com o personagem ‘Deus’. [...] Sem história vivida e interpretada não existe teologia!” (VITÓRIO, 2016, p. 80-81). Uma leitura atenta revela ser Lc 1,26-56 a história de Deus na vida de Maria de Nazaré, enquanto discípula, que “ouve (akoúo) a Palavra de Deus e a observa (phulásso)” (Lc 11,28), como se espera de todo discípulos e discípula de Jesus.
5. “Lucas não idealiza a pobreza. Mas alerta que o apego à materialidade das coisas afasta as pessoas de Deus. Há uma íntima relação da riqueza acumulada com o orgulho e a vaidade. Quem se faz poderoso, sábio e entendido não compreende a originalidade do Reino de Deus. Aquele(a) que está no grupo dos ‘pequeninos’ pode entrar no mistério do Pai e acolher sua mensagem” (MURAD, 2017, p. 72).
6. “Kecharitomene vem do verbo factitivo charitoun (‘favorecer alguém, conceder graça a alguém’), da mesma raiz de charis (‘graça, favor’)” (BROWN, 2005, p. 343). O particípio perfeito passivo do verbo, cujo agente é Deus (passivo teológico), pressupõe uma ação divina que se prolonga na vida de Maria de Nazaré.
7. Assim FABRIS (2006, p. 31-32) traduz o verbo grego. Para ele, “Maria é escolhida pelo amor benévolo de Deus, pela ‘graça’, para uma tarefa excepcional, aquela que os profetas antigos prenunciavam”. FITZMYER (1987, p. 114) traduz por “favorecida”, pois “Maria é ‘a favorecida por Deus’ [...] pois Deus faz dela a mãe do futuro descendente de Davi e verdadeiro filho do Altíssimo”.
8. “Na Sagrada Escritura, quando a pessoa tem uma missão importante e difícil, recebe de Deus a promessa de que não ficará sozinha, pois ele vai lhe dar força para realizá-la. Veja, por exemplo, na vocação de Isaac (Gn 26,3.24), de Jacó (Gn 28,15), de Moisés (Ex 3,11s e 4,12), de Gedeão (Jz 6,12) e de Jeremias (Jr 1,19). Ao dizer: ‘o Senhor está contigo’, pede-se que a pessoa não tenha medo, confie em Deus e se comprometa. Assim também acontece com Maria” (MURAD, 2017, p. 54).
9. O vocábulo humildade, aplicado a Maria, está longe de ter uma conotação moral, apontando para uma atitude interna. “E, sim, está em conexão como uma situação exterior de miséria, sofrimento, impotência, debilidade, pequenez, escravidão, falta de influência na sociedade etc. Maria pertence, sem dúvida, às classes sociais baixas de seu povo, a essa camada que não tem voz nem influência social ou política. Forma parte dos pobres de Yahvé, e comparte com seu povo todos os sofrimentos que derivam de uma situação político-social de dependência” (ESCUDERO FREIRE, 1978, p. 205 – grifos do autor).
10. Tapeínosis, vocábulo usado apenas em Lc 1,48, diz respeito à condição sociorreligiosa de Maria, moça do interior, sem nenhum predicado que a distinguisse. A forma verbal tapeinóo, com semântica idêntica, ocorre em Lc 14,11; 18,14: “Quem se exalta, será humilhado (tapeinothésetai); quem se humilha (tapeinón) será exaltado”.
11. Aqui está presente um tema importante na catequese lucana: a radicalidade da misericórdia que aparece, por exemplo, em Lc 7,36-50 (a pecadora na casa do fariseu Simão); 10,30-37 (a parábola do bom samaritano); 15,11-32 (a parábola do pai misericordioso); 23,39-43 (o crucificado que perdoa até o fim).
12. “Elipse é quando (na narração) se passa em silêncio um período, omitindo-se de narrar fatos acontecidos naquele espaço de tempo. [...] A elipse funciona como princípio de economia narrativa” (VITÓRIO, 2016, p. 116-117).
13. Na perícope estudada, os diálogos assumem uma importância preponderante, traço característico das narrativas bíblicas, onde, “em última análise, a narração é orientada para o diálogo” (ALTER, 1981, p. 66). “A representação de diálogos é a técnica mais significativa e a melhor ilustrada de opção ‘cênica’ da narração bíblica. A interação dos personagens corresponde sempre à interação de suas palavras” (SKA; SONNET; WÉNIN, 1999, p. 30 – grifo dos autores). Cada palavra dos personagens tem um peso especial na tessitura semântica do texto. Para a importância dos diálogos nas narrações bíblicas, cf. ALTER, 1981, p. 63-87.
14. “Em momentos históricos transcendentais para a constituição e libertação do povo de Israel, Deus escolhe pessoas radicalmente incapacitadas para tarefa tão árdua, porém supera tal desproporção com sua presença histórica e sua atividade salvífica” (ESCUDERO FREIRE, 1978, p. 209).
15. Para uma “leitura social do Magnificat”, cf. BOFF, 2009, p. 333-380.
16. A teologia do Magnificat corresponde à teologia da história do Antigo Testamento. Nessa, “o grande, o arrogante e o prepotente são abatidos irremediavelmente por Deus; o pequeno, o insignificante e o inseguro são exaltados pela potência divina. Esta lei se manifesta como verdadeira constante ao longo da história de Israel e é, sem dúvida, o pano de fundo que explica a atividade de Deus em favor de Maria, dada sua insignificância, sua indigência e sua confiança no Senhor” (ESCUDERO FREIRE, 1978, p. 211).
17. Como em kecharitoméne, o agente do particípio perfeito passivo de eulogéo é Deus. A ação divina no passado mantém seus efeitos no presente.
18. O Papa Francisco (EG 20.46) tem nos alertado a “sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do Evangelho” e “chegar às periferias humanas”. Em suas falas, tem chamado a atenção para as “periferias existenciais”, em que os seres humanos se encontram.
19. “‘Ver a tapeínosis//’ é expressão da compaixão divina para com o sofrimento humano. Portanto ‘ver’ ou ‘olhar’ a ‘humilhação’ é expressão da opção de Deus pelos pobres e de sua vontade de libertá-los. De fato, o ‘olhar’ de Deus simboliza muitas vezes sua solicitude em libertar os que estão aflitos” (BOFF, 2009, p. 342).
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Maria de Nazaré: modelo de discipulado cristão (Lc 1,26-56) – Narração da fé de uma pequenina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU