17 Setembro 2025
Há um genocídio em andamento em Gaza? A Associação Internacional que reúne estudiosos sobre o tema respondeu que sim em uma declaração em 31 de agosto. O mesmo termo foi usado por intelectuais israelenses como o escritor David Grossman e o historiador Omer Bartov. Uma discussão complexa sobre o uso desse conceito está contida no livro Genocídio, do historiador Paolo Fonzi, publicado recentemente pela Laterza.
A reportagem é de Antonio Carioti, publicada por la Lettura, 14-09-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Convidamos o autor para discutir o assunto com Marcello Flores, autor de vários ensaios sobre crimes de massa, e Anna Foa, vencedora do Prêmio Strega de não ficção com seu livro Il suicida di Israele (O Suicídio de Israel, publicado pela Laterza).
Eis a conversa.
Marcello Flores — Sou membro da Associação dos Estudiosos do Genocídio há vinte anos e participei da consulta sobre Gaza. Apenas 25% do total de membros expressaram sua opinião. No passado, declarações semelhantes sobre o Iraque, a Síria, a perseguição ao povo uigur na China e Nagorno-Karabakh foram completamente ignoradas pela opinião pública, enquanto agora se elevou um grande clamor. Entre os estudiosos israelenses, gostaria de mencionar a posição do historiador Benny Morris, que se recusou a definir as ações em curso de genocídio, mas alertou sobre a possibilidade de que se chegue a isso.
A Convenção Internacional contra o Genocídio de 1948 não fornece orientação suficiente?
Marcello Flores — Essas normas visam principalmente prevenir o genocídio. O Tribunal Internacional de Justiça também se manifestou nesses termos, pedindo a Israel para que evite cometer atos genocidas. Acredito que se possa falar de crimes de guerra e crimes contra a humanidade do governo do Estado judeu, como fez o Tribunal Penal Internacional, ao emitir um mandado de prisão contra o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu. O objetivo é pressionar Israel a pôr fim a um comportamento que cada vez mais beira os atos de genocídio. É preciso dizer, no entanto, que a acusação data de muito antes de 7 de outubro de 2023. Toda vez que havia operações militares em Gaza, meus alunos do mestrado em Direitos Humanos me perguntavam se Israel estava cometendo genocídio. Existe um uso instrumental e ideológico desse conceito que tem pouco a ver com a análise histórico-jurídica dos fatos. Devemos denunciar os crimes em curso e trabalhar para pôr fim ao conflito. Estou menos interessado na diatribe, quase de torcida futebolística, sobre o uso do termo genocídio.
Qual foi a sua opinião sobre o documento da Associação dos estudiosos?
Marcello Flores — Não aprovei a declaração. Parece-me que em Gaza falta a intenção de destruir o grupo palestino "como tal", como estabelece a convenção. Isso, ao contrário, era evidente em Ruanda para os tutsis, em Srebrenica para os muçulmanos e no Camboja para as minorias vietnamita e cham.
Anna Foa — A prevenção é fundamental: se há risco de genocídio, devemos agir para impedi-lo, como exige a convenção de 1948. Portanto, relatar os sintomas de um genocídio pode ajudar a pressionar por uma intervenção externa. Certamente, o uso político dessa palavra deve ser distinguido das rigorosas definições jurídicas. No entanto, gostaria de enfatizar que desde março passado, quando a fome induzida começou em Gaza, houve uma mudança significativa, especialmente em Israel. A oposição ao governo de Netanyahu agora fala em genocídio, enquanto antes isso não acontecia.
Isso é um sinal de uma virada?
Anna Foa — Espero que essas forças cresçam e consigam modificar a situação em Israel. A Suprema Corte do Estado judeu denunciou a prática de submeter prisioneiros palestinos à fome nas prisões. A associação de chefs declarou que o alimento não pode ser usado como arma de guerra. Essa pressão se intensificou desde o fim da trégua e também se vale do uso da palavra genocídio, independentemente da decisão final do Tribunal Internacional de Justiça.
E a questão da intencionalidade do massacre?
Anna Foa — Há indícios de um desejo de atingir os civis. Estou pensando nas diretrizes dadas ao exército israelense após 7 de outubro. Foi aumentado o número de vítimas inocentes que é lícito envolver nos ataques, mesmo a fim de eliminar membros Hamas, até de nível médio, não apenas os líderes. Assim, o assassinato de civis não é mais um dano involuntário, mas um resultado computado das ações militares. Além disso, membros do governo israelense equiparam continuamente todos os palestinos ao Hamas, o que significa considerá-los e tratá-los como terroristas: toda a população se torna um alvo.
Então, a acusação de genocídio é fundamentada?
Anna Foa — Falta uma organização sistemática de extermínio, como ocorreu no Holocausto, nos massacres dos armênios e talvez no Holodomor ucraniano. Mas há sinais evidentes que apontam para um genocídio.
Marcello Flores — Costuma-se dizer que falar em genocídio pode facilitar uma intervenção para deter os massacres. Do ponto de vista do direito internacional, não é assim, pois genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade são considerados equivalentes, segundo o Capítulo 7 da Carta das Nações Unidas, que permite medidas de prevenção, que podem inclusive chegar à intervenção armada.
Anna Foa — No entanto, a referência ao genocídio tem um peso diferente do ponto de vista da criação de uma opinião pública favorável.
Paolo Fonzi — Além disso, não existe uma convenção internacional para crimes contra a humanidade como a que trata do genocídio. Há também uma especificidade inclusive jurídica que explica o debate em curso. No entanto, é verdade que, na nossa cultura política, o termo genocídio, ou mesmo apartheid (outra acusação contra Israel), tem um peso muito particular.
Mas voltemos ao caso específico de Gaza.
Paolo Fonzi — As vozes crescentes de historiadores, juristas e organizações como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch sugerem que o que está acontecendo na Faixa de Gaza está em conformidade com o que prevê a Convenção sobre o Genocídio, especialmente devido ao aumento da violência na Cisjordânia. O povo palestino como um todo está sendo alvo de ataques, mesmo onde não há bases do Hamas.
Em seu livro, você menciona estudiosos que questionam a utilidade do termo genocídio.
Paolo Fonzi — O caso mais importante é o do historiador alemão Christian Gerlach, que questiona não tanto o conceito jurídico, quanto sua capacidade de nos ajudar a compreender o próprio Holocausto. Em sua opinião, não funciona a ideia de um plano preordenado, de violência imposta de cima para destruir um povo. Estudos sobre o Holocausto mostram que não apenas atores estatais, mas sociedades inteiras participaram do extermínio. E é muito difícil precisar o momento em que se teria decidido a aniquilação física de um povo em sua totalidade.
A Convenção de 1948 não ajuda?
Paolo Fonzi — Seu ponto mais fraco é que é muito difícil provar a intenção de aniquilar um grupo humano "como tal". Essa expressão se presta a debates intermináveis. Além disso, embora seja relativamente fácil julgar eventos passados para os quais dispomos de ampla documentação, o mesmo não pode ser dito para os casos contemporâneos. Devemos nos basear em declarações públicas, nas quais é difícil encontrar um planejamento.
Falando de Gaza, como o ataque de 7 de outubro deve ser visto? A conduta do Hamas pode ser vista como evidência de intenção genocida?
Marcello Flores — Crimes de guerra e crimes contra a humanidade também foram cometidos nesse caso. A acusação de genocídio, ainda que em escala reduzida, dirigida ao Hamas decorre do fato de os judeus terem sido atingidos como tais. Sobre isso é possível discutir. Mas ainda assim se trata de crimes que não podem ser justificados, como alguns infelizmente fizeram, como resposta à ocupação israelense dos territórios palestinos.
Anna Foa — A duração muito curta do massacre e o fato de civis não judeus também terem sido atingidos levantam dúvidas sobre a natureza genocida do 7 de outubro.
Paolo Fonzi — Com base nas disposições da convenção de 1948, é difícil considerar o ataque do Hamas um caso de violência genocida. Foi um evento breve e desorganizado, embora hediondo e baseado no ódio étnico. Talvez houvesse a intenção de continuar a ofensiva, mas era um plano impossível: portanto, faltou uma ação genocida efetiva.
Por que há uma ênfase tão forte no conceito de genocídio nas ações de Israel, um conceito do qual não se falou na guerra civil síria ou na repressão à revolta de Tigré pelo governo etíope, com o qual a Itália mantém excelentes relações?
Marcello Flores — O problema existe. Há uma atenção ampla e compartilhada dada à tragédia de Gaza, enquanto há muito menos atenção dada à Ucrânia e foi completamente inexistente no caso da Síria, um conflito que durou muitos anos e resultou em um enorme número de vítimas. O mesmo vale para o Sudão, Mianmar, Chechênia e Tigré. Por quê? Talvez porque Israel seja considerado uma democracia, parte do Ocidente, que não deveria cometer crimes desse tipo. Também pode haver uma reação, consciente ou não, à proeminência da memória do Holocausto. Não posso dar uma resposta certeira. Para o nosso governo, o problema não é apenas a nossa amizade com a Etiópia, mas também o esquecimento sobre os crimes do fascismo italiano na África. Por exemplo, a repressão ao movimento guerrilheiro na Cirenaica, a parte oriental da Líbia, é considerada por muitos estudiosos como um exemplo de genocídio.
Anna Foa — O silêncio sobre a Síria foi ensurdecedor, com exceção de artigos ocasionais na imprensa. A Ucrânia também tem menos visibilidade do que Gaza. Mas isso sempre aconteceu: no passado a solidariedade internacional com o Vietnã teve uma prevalência evidente sobre outras situações.
Alguns casos se tornam um símbolo.
Israel está pagando por seus laços com o Ocidente?
Anna Foa — A pertença europeia do Estado judeu se reduziu bastante. Sua natureza democrática é questionada por muitos estudiosos, também israelenses, devido à forma como seus cidadãos de etnia palestina são tratados, especialmente após a lei de 2018 que sancionou uma espécie de suprematismo judaico. Sem dúvida também conta a preeminência da memória do Holocausto, que inclusive foi uma espécie de baluarte, agora quase extinto, contra o racismo. Mas, acima de tudo, vejo a reação à imunidade de que Israel desfrutou em relação às suas violências e à ocupação de territórios palestinos, quase esquecida por muitos anos.
O privilégio foi perdido?
Anna Foa — Ninguém no mundo reconhece mais a Israel uma condição de excepcionalidade. Está cada vez mais isolado. Digo isso com dor, por causa de meu vínculo com o Estado judeu, na esperança de uma oposição crescente a Netanyahu. A preeminência simbólica de Israel está se perdendo, mas ainda ressoa também nas vozes antissionistas.
Paolo Fonzi — Não é apenas a questão de Gaza, é o conflito israelense-palestino como um todo que sempre atraiu muito mais atenção do que situações semelhantes. A acusação de genocídio contra o Estado judeu não é nova: em 1982, constava em uma resolução da Assembleia Geral da ONU condenando o massacre realizado por cristãos maronitas libaneses, com aprovação israelense, nos campos palestinos de Sabra e Chatila.
Existe alguma especificidade da crise do Oriente Médio?
Paolo Fonzi — É um conflito antigo, entrelaçado com todas as fases recentes da história mundial desde o início do século XX. Outro fator é o forte apoio a Israel pelos Estados Unidos, que usaram seu poder de veto nada menos que 49 vezes no Conselho de Segurança da ONU em favor do Estado judeu. Outro fator importante é a presença de uma diáspora numerosa e ativa em ambos os lados.
Em vários casos, como o armênio e o ucraniano, os emigrantes no exterior desempenharam um papel central na reivindicação do reconhecimento de genocídios. E, desde a década de 1970, a causa palestina tem sido considerada o caso mais emblemático de luta contra o neocolonialismo.
O fato de certos crimes ocorrerem no contexto de um conflito militar, como em Gaza, influencia a avaliação sobre a ocorrência de um genocídio?
Marcello Flores — Um contexto de guerra caracteriza todos os genocídios, aqueles sancionados pelos tribunais e aqueles sobre os quais se discute. Existe uma ligação inextricável com os conflitos armados, mesmo que, por vezes, os crimes contra a humanidade sejam cometidos por atores não estatais, cujas ações não são estritamente de guerra. É a emergência bélica que permite o salto qualitativo de uma fase de discriminação para a escolha de destruir um grupo humano. Isso aconteceu em abril de 1915 contra os armênios no Império Otomano, em 1941 contra os judeus nas áreas ocupadas pelo Terceiro Reich, em 1994 contra os tutsis em Ruanda. A invocação de um perigo iminente serve para justificar a passagem da marginalização para a eliminação.
Anna Foa — No Holocausto, a escolha dos nazistas pelo extermínio manifestou-se pela guerra. Inicialmente, o objetivo era expulsar os judeus do Reich, mas após a invasão da Polônia, a população judaica sob controle alemão tornou-se numerosa demais e foi tomada a decisão de aniquilá-la. Em relação ao que Fonzi dizia, acredito que, no caso da "Solução Final", podemos identificar uma decisão formal vinda de cima. Penso na ordem de massacrar os judeus nas zonas soviéticas ocupadas, com fuzilamentos em massa e imensas valas comuns, e depois na construção de campos de extermínio com as câmaras de gás. Houve também uma participação de baixo no genocídio, mas o impulso decisivo veio dos mais altos escalões do poder.
Paolo Fonzi — É inegável a existência de um claro desejo de extermínio nos líderes nazistas, mas nós não temos certeza sobre o momento exato em que a decisão de implementar o Holocausto foi tomada. A crítica de Gerlach ao conceito de genocídio decorre do fato de que ele tende a ocultar o fato de que a violência antissemita não teria sido possível naquela escala sem a participação de baixo da população, não apenas alemã, mas europeia. Além disso, concentrar a atenção no genocídio dos judeus leva a subestimar outras formas de violência, como o extermínio de prisioneiros de guerra soviéticos. O ensaio de Alex Kay, "L’impero della distruzione" (Einaudi), é muito interessante nesse sentido, contendo uma investigação abrangente de todos os crimes nazistas e suas relativas interações.
E quanto à relação entre guerra e extermínio?
Paolo Fonzi — Os conflitos contemporâneos tendem cada vez mais a envolver os civis. Nesse sentido, o estudioso britânico Martin Shaw critica a distinção entre a violência da guerra e o genocídio. Em sua opinião, nossa cultura cria uma hierarquia de gravidade que considera, em última análise, a guerra aceitável enquanto classifica o massacre indiscriminado dos civis como barbárie. Na realidade, categorias rígidas não podem ser estabelecidas; de fato, a tarefa dos historiadores é precisamente ver como uma forma de violência pode passar para outra. Em todos os casos de extermínio, há uma transição para práticas cada vez mais hediondas, sem que seja possível identificar uma distinção clara, por exemplo, entre limpeza étnica e genocídio. Às vezes, a violência de massa também pode recuar.
Quando isso aconteceu?
Paolo Fonzi — Um caso diz respeito à tentativa de secessão do Biafra da Nigéria no final da década de 1960. O governo central sistematicamente expôs à fome a população da região rebelde e foi acusado de genocídio. Mas, após a rendição dos insurgentes, não houve uma campanha de extermínio, mas sim um retorno às discriminações anteriores. Em suma, muitas vezes não é clara a distinção entre as várias formas de violência de massa que, em vez disso, se tende a isolar uma da outra.
Anna Foa — Não me parece irrelevante, no entanto, distinguir o confronto entre forças militares e ataques deliberadamente dirigidos contra os civis. E, de qualquer forma, acredito que, independentemente das diferentes interpretações historiográficas, a prioridade agora é enfrentar o descrédito que está caindo sobre o direito internacional. O estão aviltando Netanyahu e o presidente dos EUA, Donald Trump, assim como certas reações pós-coloniais à ordem estabelecida após o fim da Segunda Guerra Mundial. Acredito que defender a ONU e os tribunais internacionais é uma batalha de civilização. E a Europa deveria assumir a responsabilidade.
Paolo Fonzi — A fragilidade do direito internacional advém da dificuldade ou da falta de vontade de aplicá-lo. No caso de Gaza, o Ocidente demonstrou a existência uma dupla moral. Mas isso também se aplica aos crimes perpetrados pelo regime etíope, que exterminou enormes massas de civis em Tigré. Se faltam imparcialidade e justiça, todo o edifício do direito penal e humanitário internacional vacila. Basta pensar na forma como as decisões do Tribunal Penal Internacional são ignoradas.
Mas quando foi que o direito internacional foi aplicado? A duplo moral — indulgente com os aliados e severa com os inimigos — já valia durante a Guerra Fria.
Marcello Flores — Não há dúvida. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 1948, permaneceu na geladeira por cerca de trinta anos. Foi retomada na Conferência de Helsinque de 1975, o direito internacional humanitário só se tornou operacional após o fim da Guerra Fria, na década de 1990. Inovações substanciais também ocorreram na época, como a criação de tribunais para os crimes na ex-Iugoslávia e em Ruanda e a criação do Tribunal Penal Internacional. Mas aquele impulso agora parece ter se esgotado, em parte por culpa daqueles que o fomentaram, principalmente os Estados Unidos.
Anna Foa — O fato de o direito internacional ter permanecido sem aplicação por tanto tempo, devido ao conflito entre as grandes potências, não justifica o ataque que sofre hoje. Após a Guerra Fria, houve uma tentativa de construir uma ordem diferente, baseada em princípios de justiça. Hoje, estamos no caminho da destruição de todas as regras.
Paolo Fonzi — Durante a Guerra Fria, o conceito de genocídio não foi congelado, mas sim usado intensivamente para fins políticos pelos dois blocos, o que dificultou o surgimento de uma cultura de direitos humanos. Posteriormente, movimentos de libertação, como os insurgentes do Biafra, usaram o conceito de genocídio para instar intervenções em favor das suas demandas por independência. Assim, o uso político do termo continuou mesmo após o fim da Guerra Fria. Mas o retorno a uma contraposição global entre grandes potências certamente está enfraquecendo as instituições supranacionais que deveriam garantir a paz e o respeito ao direito humanitário.
Como podemos avaliar a crítica pós-colonial ao direito internacional nesse contexto?
Paolo Fonzi — Estudiosos como Dirk Moses e os defensores de uma visão terceiro mundista observam que o projeto de humanização da guerra frequentemente serviu para justificar intervenções militares ocidentais dentro de uma lógica de dupla moral. Acredito, no entanto, que essas denúncias possam contribuir para o fortalecimento do direito internacional hoje, porque expõem seus limites e sugerem uma possível maneira de superá-los e conferir às suas normas uma nova legitimidade. Trata-se de uma visão alinhada com a cultura dos jovens ativistas empenhados por Gaza que também pode nos ajudar a superar a ideia de uma centralidade absoluta do Holocausto. Na Alemanha, onde vivi por muito tempo, a dicotomia é evidente entre os mais idosos, que concebem o Holocausto como mal absoluto incomparável a outros crimes, e a nova geração, mais atenta à violência colonial e pós-colonial, imune à acusação instrumental de antissemitismo que, também em nome da lembrança do Holocausto, é dirigida aos críticos de Israel.
Marcello Flores — A singularidade do Holocausto é hoje sustentada apenas por restritas minorias, influenciada por uma visão abstrata da história. É incontestável que a atenção posta nos crimes nazistas levou a uma subestimação da extensão das atrocidades coloniais. Mas o Holocausto é, sem dúvida, o protótipo do genocídio. E a visão daqueles que interpretam o domínio colonial sobre países não europeus como um genocídio contínuo e intencional contra povos indígenas é muitas vezes uma característica ideológica e anti-histórica, pois não faz distinção entre diferentes casos. Assim, um elemento central é removido do conceito de genocídio: o desejo de destruir um grupo humano como tal, não por motivos de conquista.
Então, a invasão europeia das Américas não pode ser considerada um genocídio?
Marcello Flores — O jurista Antonio Cassese me dizia que o termo genocídio pode ser usado quando o massacre não tem outra motivação além do ódio pelo grupo atingido. No plano histórico, certamente se pode falar de genocídio para as Américas, à medida que grupos humanos inteiros desapareceram. Mas, no plano jurídico, não, pois a esmagadora maioria das vítimas foi morta por epidemias, transmitidas por europeus, contra as quais não possuía imunidade.
Anna Foa — Deve-se lembrar também que houve vozes europeias que se levantaram em defesa dos habitantes do Novo Mundo, como a do bispo espanhol Bartolomé de Las Casas. Não acredito que se possa falar de genocídio intencional nas Américas, dado o papel central que doenças como a varíola desempenharam no despovoamento, mas não há dúvida de que atos de violência sem precedentes foram perpetrados. Portanto, em um sentido político, o uso do termo genocídio pode ser aceito.
Paolo Fonzi — A convenção de 1948 não permite que o período colonial como um todo seja considerado um genocídio, mas apenas casos separados de extrema gravidade, como o extermínio dos povos Herero e Nama pela Alemanha Imperial no que hoje é a Namíbia. A questão é complexa: segundo o estudioso Tony Barth, nas relações coloniais existe uma estrutura genocida que opera para além das intenções dos dominadores. Basta pensar na expropriação sistemática de terras dos nativos por colonizadores de assentamento, que tendem a apagar a sociedade local. Assim, o termo genocídio pode ser usado mesmo na ausência de um plano preconcebido. Há também aqueles, como o historiador estadunidense David Stannard, que intitulou um livro sobre a conquista do Novo Mundo de Olocausto americano (Bollati Boringhieri) para desafiar a ideia do Holocausto como um mal absoluto por meio de um paralelo que foge à necessidade de comprovar a intenção genocida em conformidade com a convenção de 1948.
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