31 Agosto 2023
Não apenas guerras “ignoradas”. Mas também genocídios “esquecidos”. Como o que está em curso, no silêncio da comunidade internacional e dos meios de comunicação, contra a população armênia em Nagorno-Karabakh.
A entrevista é de Umberto De Giovannangeli, publicada por l'Unità, 29-08-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
L’Unità discute o tema com um dos historiadores italianos mais respeitados: Marcello Flores. O Professor Flores lecionou História Comparada e História dos Direitos Humanos na Universidade de Siena, onde também dirigiu o Mestrado Europeu em Direitos Humanos e Estudos sobre Genocídio. Entre seus livros, lembramos: Il secolo del tradimento. Da Mata Hari a Snowden 1914-2014 (il Mulino, 2017), Il genocidio degli armeni (il Mulino, nuova ed. 2015), Traditori. Una storia politica e culturale (il Mulino, 2015), Storia dei diritti umani (il Mulino, nuova ed. 2012), Il genocidio (Il Mulino, 2021). O Genocídio dos Armênios voltou a ser de grandíssima atualidade. O livro começa com o declínio do Império Otomano no século XIX, para mostrar como já no final do século o governo implementa um plano demográfico-social que, diante do problema de recolocação dos cidadãos turcos expulsos das regiões europeias do império que se tornaram independentes, prevê a completa turquização da Anatólia, implementada às custas dos armênios. Estes últimos sofrerão perseguições crescentes até à decisão, tomada durante a Grande Guerra, de os deportar e exterminar. Entre abril de 1915 e setembro de 1916, centenas de milhares de armênios foram mortos.
Além de reconstruir analiticamente o processo, Flores também apresenta a longa batalha de memória que ainda hoje está sendo travada sobre um genocídio que a Turquia continua a negar.
Em Karabakh, os armênios estão morrendo de fome. Há mais de oito meses o país não recebe mais fornecimentos de alimentos, medicamentos e itens de primeira necessidade. Estão interrompidos os fornecimentos de gás, água potável e eletricidade. Começou uma gravíssima crise humanitária para 120.000 habitantes. Um genocídio "esquecido". Professor Flores, como enquadrar o que está acontecendo?
É um dos conflitos mais duradouros desde a queda da União Soviética. É de 1988, antes do início da crise final da URSS, que se inicia o conflito em Nagorno-Karabakh.
É um conflito que tem bases objetivas, porque há um território que era, pelo menos até 2020, habitado praticamente apenas por armênios, mas que se encontrava no território do Azerbaijão.
O Nagorno-Karabakh, o Artsakh, como o chamam os Armênios, pedia a sua própria independência e uma reunificação com a Armênia, mas o Azerbaijão, com base num princípio igualmente válido do direito internacional, aquele da intangibilidade das fronteiras do território nacional, se opunha.
Uma das situações clássicas em que as complicações da história deveriam ser resolvidas com o diálogo, com o compromisso.
Mapa de Armênia e Azerbaijão. Em destaque, a região de Nagarno-Karabakh. (Imagem: Wikipédia)
Deveriam. Mas o que realmente aconteceu e tragicamente continua acontecendo?
Dentro dessa situação de conflito do final da União Soviética, tem havido contínuos conflitos, uma situação de paz que de fato durou mais de vinte anos, que em setembro de 2020 foi duramente interrompida pelo Azerbaijão, que levou a cabo uma agressão militar em Nagorno-Karabakh, conquistou algumas partes, expulsou mais de 100.000 armênios que foram obrigados a fugir e criou aquela nova situação que ainda hoje persiste, cujo último ato é o fechamento do Corredor de Lachin, que é a faixa de território que liga o Nagorno-Karabakh com a Armênia, fazendo com que os armênios em Karabakh ficassem presos durante 8 meses, sem receber alimentos, medicamentos, com a interrupção de luz, gás e água.
Dado que foi a Rússia quem efetivamente havia se candidatado a proteger e servir de garantia para o acordo que fora alcançado no final do conflito em novembro de 2020, presumir-se-ia que a Rússia venha a fazer alguma coisa, mas sabemos muito bem que a Rússia está envolvida há um ano e meio essencialmente na guerra na Ucrânia e não tem intenção de entrar numa situação que só viria prejudicá-la, pois o Azerbaijão está intimamente ligado atualmente com a Turquia que defende o ponto de vista do governo do Azerbaijão.
Então, professor Flores, estamos num trágico e insolúvel beco sem saída?
Estamos numa situação clássica de drama humanitário onde só a comunidade internacional pode intervir, pressionando todas as potências, obrigando o Conselho de Segurança das Nações Unidas a tomar uma posição e, especialmente, a Rússia a agir.
Esta é a situação dramática que infelizmente não recebe particular atenção precisamente porque há a guerra na Ucrânia que é um elemento mais relevante de crise internacional. Mas do ponto de vista humanitário, aquela de Nagorno-Karabakh é extremamente pesada, complicada, sobretudo porque deixa claro que será difícil encontrar uma solução rápida e justa para o problema.
Isso é o pior. Não há vislumbre de uma solução pacífica que poderia ter havido muito tempos atrás, com uma espécie de troca territorial para reunificar de forma homogênea os territórios da Armênia e do Azerbaijão. Uma espécie de troca similar, mas mais bem organizada, daquela que aconteceu na década de 1920 entre a Grécia e a Turquia.
Porque no mundo ainda existe tanto ostracismo, ou pelo menos hesitação, em vincular a palavra genocídio à tragédia dos armênios?
Francamente, acredito que não seja assim. Há bem poucos países, a Turquia e o Azerbaijão, que se recusam a falar de genocídio dos Armênios, e essa é uma das razões que torna a situação em Nagorno-Karabakh e na região do Cáucaso particularmente dramática. Desse ponto de vista, a Armênia está bastante isolada. Não devemos esquecer que na última década houve aquele que poderíamos chamar de um genocídio cultural, uma destruição programada e contínua de igrejas, prédios, lugares e símbolos da vida cultural armênia em territórios do Azerbaijão e da própria Turquia no passado.
A negação do genocídio está ligada a uma área restrita de países com os quais, no entanto, - o Azerbaijão pelo gás, a Turquia para os imigrantes e muitas outras questões econômicas e geopolíticas - nós como Europa, e não apenas a Itália, não queremos entrar em conflito, e isso contribui não pouco à subestimação do legado do genocídio que faz parte de um procedimento de discriminação, de ódio, de tipo étnico que está presente na região.
Os Armênios, os Curdos, só para citar duas populações. Parece que no mundo existem povos "amaldiçoados".
O problema não são os povos “amaldiçoados”. Seria, no máximo, historicamente mais correto falar de povos "traídos". No sentido de que se trata de povos que tiveram a promessa, no final da Primeira Guerra Mundial, de poder obter um território próprio autônomo e independente. Isso infelizmente não aconteceu em virtude das modalidades com que se deu a paz de Paris, com a retirada do presidente estadunidense Wilson e dos Estados Unidos da Organização da Liga das Nações, com os erros do colonialismo anglo-francês que permitiram ao Atatürk retomar parte do território e, portanto, forçar o Tratado de Lausanne, que favoreceu a reconstrução da Turquia prejudicando justamente a possibilidade da Armênia; da mesma forma como em outras áreas sempre sujeitas ao controle colonial anglo-francês, Iraque, Síria e outras, não houve possibilidade para os curdos obter aquele Curdistão que esperavam ter após o fim da guerra. É daí que tudo nasce. A história muitas vezes acumula erros. Para o Curdistão sabemos que houve muitos acontecimentos, tentativas insurreccionais, a intervenção nas duas guerras do Golfo, que criaram a República Autônoma do Curdistão iraquiano. Uma situação extremamente complicada, em que a falta daquela base territorial que deveria nascer no final da Primeira Guerra Mundial tornou extremamente difícil, no campo do direito internacional, o reconhecimento da soberania nacional e da autodeterminação desses povos no âmbito de uma geopolítica extremamente complicada ao longo do tempo.
Não existe também um problema não resolvido de justiça internacional que possa ressarcir os povos como aqueles que citamos, armênios e curdos, e outros ainda, os palestinos, por exemplo?
A justiça internacional não pode retroceder tanto. Em primeiro lugar, porque não se sabe exatamente qual poderá ser o limite. O limite é quando foram tomadas certas decisões da justiça internacional, pensemos em Nuremberg e nos processos que se seguiram, ligados a um determinado momento e fato histórico, de forma que ainda hoje sabemos que está aberto um contencioso entre Itália e Alemanha sobre os ressarcimentos relativos à conquista alemã da Itália. Para questões tão distantes, não existe uma possibilidade de contar com os instrumentos da justiça internacional. Entre outras coisas, convém recordar que o primeiro tribunal que reconheceu o massacre dos Armênios de 1915-1916 não foi um tribunal público, foi na verdade um tribunal "privado", o tribunal Russell que teve a força e a coragem, nos anos 1960, de poder dizer com base naquela que é a Convenção sobre o Genocídio de 1948 que hoje podemos dizer que aquele que foi o massacre dos Armênios constitui um genocídio com base em tal Convenção.
Genocídios, soluções finais, limpezas étnicas alimentam-se de estereótipos, preconceitos e obsessões que a propaganda do regime transforma numa narrativa de ódio e morte. Professor Flores, o que é o estereótipo de demonização usado contra os armênios. O que assustava naquele povo?
No momento daqueles massacres, o povo armênio assustava por várias coisas que devem ser vistas em conjunto. Um importante papel econômico que os Armênios tiveram dentro do Império Otomano; um papel religioso, porque eram a minoria cristã, não islâmica, mais forte. E acima de tudo a presença demográfica muito forte em alguns distritos, eyalet como eram chamados, do Império Otomano na Anatólia oriental, onde os armênios eram a maioria ou cerca de metade da população, e isso representava uma ferida, sobretudo para o futuro, em relação àquela nova identidade étnica fundada na homogeneidade étnica da Anatólia que os “Jovens Turcos” levavam adiante, aproveitando a oportunidade da Primeira Guerra Mundial para impô-la.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Armênios sem alimentos e remédios, mas ninguém fala sobre eles”. Entrevista com Marcello Flores - Instituto Humanitas Unisinos - IHU