26 Abril 2025
"Talvez Francisco seja lembrado como um meteoro na história da Igreja. Mas iluminou o mundo por doze anos com um brilho irrepetível", escreve Marco Politi, em artigo publicado por Il Fatto Quotidiano, 22-04-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Agora, rebobinando a fita, vemos como Francisco preparou cuidadosamente sua etapa final. No Domingo de Ramos, antes de aparecer na Praça de São Pedro, ele havia se confessado. Na Sexta-feira Santa, ele confiou suas meditações à Via Sacra. No Domingo de Páscoa - depois da bênção urbi et orbi dada com uma voz alquebrada - ele quis que o passeio no papamóvel pela praça fosse prolongado por um trecho da Via della Conciliazione como se representasse, para seu corpo enrijecido em busca de ar, uma última viagem para ir ao encontro do mundo.
O testamento espiritual do pontificado de Francisco está todo nas palavras compostas para a Via Sacra. A preocupação pelos últimos, os “sem voz” e os invisíveis, os descartados. A condenação de uma economia desumana que se torna um canteiro de obras do inferno, impulsionada por lógicas frias e por interesses implacáveis. O apelo ao senso de responsabilidade do cristão, que não se vira para o outro lado, ignorando aqueles que caíram. A atenção com cada irmã e irmão, que estão “expostos a julgamentos e preconceitos”. A advertência de não procurar desculpas para se esquivar da responsabilidade por aqueles que sofrem. A convicção de que a Igreja é chamada a difundir a mensagem de Cristo, que salva a todos, todos, todos. A advertência de que vivemos em um mundo onde a convivência está prejudicada, um “mundo em pedaços” que precisa de lágrimas sinceras para se erguer, porque - como Bergoglio disse profeticamente enquanto a praga da Covid grassava - ou somos todos irmãos ou tudo desmorona.
Em seu testamento no Dia do Calvário, Jorge Mario Bergoglio não se esqueceu da Igreja. Com consciência lúcida, reconheceu que a “Igreja hoje parece como uma roupa rasgada”, precisando que a fraternidade seja tecida novamente entre seus membros. Porque os “discípulos (estão) divididos”. Daí o último grito do pontífice, que já havia enfrentado a morte duas vezes no hospital Gemelli: “Doe à sua Igreja paz e unidade”. Afinal de contas, Jesus, Jehoshua, não significa em hebraico “Deus salva”? Um Deus que se deixou crucificar, cujo tronco da desonra e do desespero (era assim que os romanos consideravam a cruz) interpela tanto os crentes quanto os não crentes.
Poucos perceberam, na lenta procissão de sexta-feira à sombra do Coliseu, que Francisco, por meio de um jogo de citações de Francisco de Assis e do Apóstolo Paulo, devolveu aos fiéis suas três encíclicas: Fratelli tutti, Laudato si', Dilexit nos (“Deus nos amou”). Karol Wojtyla, quando o fim se aproximava, citava - com um senso de história e uma autoconsciência imperial - o poeta latino Horácio: “Non omnis moriar, não morrerei completamente... grande parte de mim escapará do esquecimento da morte”.
Jorge Mario Bergoglio, o papa “próximo das pessoas”, como foi lembrado por vários fiéis nas laterais da Praça de São Pedro no dia de sua morte, preferia uma metáfora mais humilde e cotidiana: “Somos pessoas idosas que ainda querem sonhar”.
O testamento geopolítico do pontífice argentino, seu último vislumbre do cenário internacional, está contido na mensagem urbi et orbi que ele não pôde ler pessoalmente no domingo de Páscoa por falta de voz. É necessário se opor à “vontade de morte” que está disseminada em muitas partes do mundo. Não devemos ceder à lógica do medo que leva a se fechar. Com uma advertência precisa, que soa contracorrente na época atual em que ressoa a retórica do rearmamento: “Nenhuma paz é possível sem o verdadeiro desarmamento! A exigência que cada povo tem de prover sua própria defesa não pode se transformar em uma corrida armamentista geral”.
Nas últimas horas, o lamento das carpideiras já começou. Nos tempos antigos, eram as mulheres que acompanhavam o caixão, arranhando o rosto, rasgando as vestes e lançando lamentos agudos. No clima de guerra civil que caracterizou os últimos dez anos dentro da estrutura eclesial, agitada pela agressividade dos ultraconservadores armados de implacáveis redes sociais, as novas carpideiras estão arranhando a memória de Bergoglio, encontrando contradições, erros, pecados, obras deixadas pela metade. Tudo bem, nenhum papa é um santarrão.
Mas parece miserável a tentativa de não entender que, em seus anos de reinado, Bergoglio levou a sério a advertência expressa pelo cardeal Martini antes de sua morte, quando denunciava a poeira que havia se acumulado nas estruturas clericais: “A Igreja”, dizia o grande cardeal de Milão, “ficou 200 anos para trás”.
Francisco deu uma sacudida em uma Igreja imobilizada pelos vetos de um tradicionalismo obsessivo.
Ele foi o primeiro a reconhecer o direito de cidadania na Igreja para as pessoas homossexuais, o primeiro a receber uma pessoa trans com seu parceiro e seu bispo no Vaticano, o primeiro a autorizar a bênção de casais do mesmo sexo. O primeiro a permitir que a questão do diaconato feminino fosse debatida, o primeiro a dar às mulheres o direito de voto em um sínodo mundial depois de 1.700 anos de exclusão, o primeiro a nomear mulheres para cargos de topo na cúria romana. O primeiro a permitir que um sínodo de bispos amazônicos pudesse se expressar livremente a favor de um clero casado. O primeiro a afastar dois cardeais do Colégio cardinalício por abusos e relações inapropriadas, o primeiro a ter um arcebispo embaixador do Vaticano e um cardeal (Mc Carrick) expulsos da ordem clerical. Ele afastou muitos bispos por acobertamento, decretou que a documentação sobre os abusos nos arquivos diocesanos poderia ser disponibilizada para a justiça civil.
Cometeu erros? Sim. Ele fez escolhas individuais inexplicáveis? Sim. Os casos Zanchedda e Rupnik (abusadores não punidos) estão aí para provar isso. É singular, no entanto, que estejam levantando seus dedinhos aqueles que não disseram uma palavra quando Bento XVI perdoou Marcial Maciel, fundador dos Legionários de Cristo e abusador em série (até mesmo de seu próprio filho), evitando seu processo e propiciando-lhe uma “vida retirada”. Ou aqueles que se calaram quando o Monsenhor Marcinkus jogou centenas de milhões de dólares do Vaticano (doações para obras de bem) ao vento para apoiar o falido Roberto Calvi. Francisco foi um quebra-gelo que abriu novos caminhos para a Igreja e a tornou mais humana, mais próxima dos anseios e da necessidade de esperança dos seres humanos. Reconhecendo - o primeiro papa de todos os tempos - que as diferentes religiões também fazem parte do plano de Deus.
Muitos nos círculos clericais, na cúria e no mundo, desejaram durante anos que Bergoglio morresse. Chegou a hora. Talvez Francisco seja lembrado como um meteoro na história da Igreja. Mas iluminou o mundo por doze anos com um brilho irrepetível.