24 Abril 2025
"O Papa Francisco deu enorme contribuição, portanto, no sentido de quebrar ou no mínimo atenuar resistências que ainda eram verificadas no mundo católico, sobre a urgência de pensar e em especial agir em questões como a crise climática que afeta a vida de todos, mas em particular dos mais vulneráveis", escreve José Pedro S. Martins, sociólogo, em artigo publicado por Hora Campinas e reproduzido por Agência Social de Notícias (ASN), 23-04-2025.
Se muitos esperavam mais do Papa em termos de posição da mulher na vida da Igreja e outros temas, por outro lado é inegável que Francisco deu uma contribuição enorme ao mover o Vaticano para a realidade da emergência climática global e outros dramas socioambientais. Uma realidade que vinha sendo negada pela cúpula da Igreja Católica, embora em muitas partes do mundo, e sobretudo no Brasil, já estivesse sendo há tempos motivo de reflexão e muita ação, inclusive com o custo de vidas humanas.
Como se sabe, desde a década de 1960 houve uma grande reviravolta na vida da Igreja Católica, com reflexos intensos na América Latina, onde o espírito de renovação foi alimentado pela Teologia da Libertação, um jeito completamente diferente de viver a mensagem de Jesus Cristo. A Teologia da Libertação passou a inspirar os cristãos a vivenciarem os grandes dilemas da realidade concreta das pessoas, à luz dos Evangelhos.
No cenário da América Latina, a realidade era de ditaduras militares, como no Brasil, de forma conjunta com muita miséria e violência contra as populações, o que exigia um posicionamento firme dos cristãos. No caso brasileiro, cada vez mais a Igreja, que no primeiro momento tinha apoiado o golpe militar, foi se posicionando na defesa dos perseguidos pela ditadura e oprimidos em geral.
Pois a violência também se manifestava, no contexto brasileiro e de outros países, no formato de agressões à natureza, como fruto de um modelo de desenvolvimento predatório e destruidor. Era o caso das grandes obras como a Amazônia e as Usinas Nucleares, que resultaram em destruição e medo.
Todas essas situações eram motivo de mobilizações de comunidades cristãs, inclusive católicas, o que procurei mostrar no meu primeiro livro, “Ecologia ou Morte – Os cristãos e o meio ambiente”, de 1987. O livro foi publicado pela FTD, uma editora católica, e apresentava casos de incisiva atuação de grupos cristãos em geral, e católicos em particular, em situações de violência contra a vida humana e a vida em geral.
O livro apresentava em particular a luta do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) na defesa dos povos indígenas e da Comissão Pastoral da Terra (CPT) ao lado dos trabalhadores rurais que já defendiam uma reforma agrária ecológica. Cimi e CPT são organizações oficiais da Igreja Católica no país, ligadas à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). “Ecologia ou Morte” também destacava o envolvimento de grupos cristãos em situações como a da poluição extrema em Cubatão, por muito tempo conhecida como “Vale da Morte”, e na luta contra a energia nuclear, que de limpa não tem nada, pela enorme quantidade de resíduos que produz, entre outros impactos ambientais.
Em síntese, o meu livro buscava documentar situações em que claramente grupos e comunidades cristãs já associavam, no cenário brasileiro, a luta pelos direitos humanos à luta ambiental, ecológica. Tanto que já em 1979 a CNBB já havia promovido uma Campanha da Fraternidade com tema ambiental: “Por um mundo mais humano. Preserve o que é de todos”.
Já o Vaticano, entretanto, continuava em sua postura negacionista em termos de impactos profundos, na vida humana e no meio ambiente, do modelo econômico vigente em escala planetária. Tanto que a cúpula católica não esteve presente oficialmente no maior encontro de Igrejas cristãs já realizado sobre a temática socioambiental da história, a Consulta Justiça, Paz e Integridade da Criação (JPIC), realizada em Seul, Coreia do Sul, entre os dias 5 e 13 de março.
A Consulta JPIC foi organizada pelo Conselho Mundial de Igrejas (CMI), uma organização sediada em Genebra, na Suíça, e que reúne grande parte das Igrejas cristãs, em particular aquelas chamadas históricas, diretamente derivadas da reforma protestante. Desde 1983, em sua assembleia de Vancouver, no Canadá, o CMI discutia a necessidade de reflexão sobre questões da justiça, paz e ecologia em uma perspectiva ampla e interligada.
Foi então convocada a Consulta JPIC para Seul, que não teve a participação oficial da Santa Sé, embora em 1989 o Vaticano tenha sediado um encontro de teólogos reunidos pelo Conselho Pontifício de Justiça e Paz sobre o tema proposto pelo CMI. É necessário lembrar que o CMI já vinha atuando em conjunto com organizações católicas em muitas situações. O Conselho Mundial de Igrejas foi muito ativo, por exemplo, na proteção de perseguidos pela ditadura brasileira, ao lado de líderes católicos da estatura de D.Helder Câmara e D.Paulo Evaristo Arns.
O documento-base da consulta mundial de Seul recebeu o nome de “Entre o Dilúvio e o Arco-Íris”. O documento trata de três temas principais, que seriam detalhados no evento na Coreia do Sul: o endividamento externo que sufocava a economia e a vida dos povos dos países em desenvolvimento como o Brasil, a corrida armamentista que consumia enormes recursos no cenário da Guerra Fria e a destruição ambiental que se manifestava em particular pela crise climática, que já chamava a atenção de muitas comunidades cristãs.
Para cada um desses temas seria assinado uma espécie de pacto durante a Conferência JPIC, implicando no engajamento dos grupos cristãos em seu equacionamento. Tive a grande oportunidade de participar pessoalmente do evento em Seul, como jornalista da Agência Ecumênica de Notícias, e pude perceber a seriedade com que grandes questões socioambientais estava sendo tratada pelo conjunto das comunidades cristãs em todo planeta. Reafirmando o sentimento, então, que eu tinha procurado apresentar no meu livro de estreia, de 1987.
Pois em Seul não foram assinados três, mas quatro pactos. O quarto, motivado por grupos e organizações da África que, sob o impacto das injustiças provocadas pelo apartheid, clamavam por respeito aos direitos dos povos de origem afro de forma geral. Entre outros brasileiros, participaram da Consulta JPIC o pastor luterano Werner Fuchs, o ecologista gaúcho José Lutzenberger (que depois viria a ser ministro do Meio Ambiente) e a deputada Benedita da Silva.
A Consulta JPIC teve e continua tendo impactos profundos no pensamento e ação de comunidades cristãs. Na prática, Seul antecipava, no conjunto dessas comunidades, a discussão que seria aprofundada na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Rio-92, em junho de 1992, no Rio de Janeiro – mais importante evento socioambiental já realizado.
Pois, de novo, o Vaticano continuava se negando a enfrentar de modo concreto a urgência socioambiental planetária, até que apareceu Francisco, o Papa argentino, latinoamericano, o Jorge Mario Bergoglio torcedor do San Lorenzo. Adotando o nome do santo padroeiro do meio ambiente, autor do Cântico das Criaturas, Francisco aprofundou a discussão socioambiental em alto nível, o que foi ratificado pela revolucionária Encíclica Laudato Sí, de 2015.
Em síntese, a encíclica reconhece a gravidade da situação socioambiental ambiental planetária, em particular no caso da emergência climática, e pede ações mais determinadas dos católicos a respeito. O documento teve um profundo efeito no mundo católico e na agenda política global como um todo.
O Papa Francisco deu enorme contribuição, portanto, no sentido de quebrar ou no mínimo atenuar resistências que ainda eram verificadas no mundo católico, sobre a urgência de pensar e em especial agir em questões como a crise climática que afeta a vida de todos, mas em particular dos mais vulneráveis.
Francisco nos deixou no dia 21 de abril, um dia depois da Páscoa, que no Brasil encerra a Campanha da Fraternidade promovida pela CNBB. Pois esta foi a nona Campanha com um tema ambiental. No caso, a CF de 2025 recebeu o tema Fraternidade e Ecologia Integral, inspirado por uma feliz coincidência de comemorações: os oito séculos do citado Cântico das Criaturas de São Francisco e os dez anos da também lembrada Laudato Sí. E isso no ano da COP-30, a COP da Amazônia, que será realizada em novembro em Belém. Não deixa de ser mais uma pressão para que a Conferência do Clima resulte de fato em ações concretas pelo povo e da natureza da Amazônia, em defesa da qual já viveram e morreram cristãos como o líder seringueiro Chico Mendes e a missionária Dorothy Stang.