10 Abril 2024
O que é o legado de Alexei Navalny para a ortodoxia russa? Quanto sua vida e seu compromisso político impactaram a sociedade russa?
A reportagem é Marcello Neri publicada por Settimanna News, 06-04-2024.
Essas e outras perguntas foram buscadas em um webinário organizado pelo Centro de Estudos da Ortodoxia Cristã da Universidade Fordham, de Nova York (realizado na sexta-feira, 5 de abril). Contribuíram para reconstruir a figura de Navalny e seu ativismo Sergei Chapman, diretor de comunicações do Centro, e a Irmã Vassa Larin, uma monja ortodoxa russa de origem americana.
Dentro do quadro da ortodoxia russa, Navalny representa uma ruptura com o costume popular, também incutido pela instituição, de considerar a adesão à Igreja Ortodoxa Russa oficial mais importante do que a prática testemunhal da fé pessoal, que Navalny entendeu também como um exercício de defesa do Evangelho diante do desvio causado pela mistura da Igreja Ortodoxa Russa com o regime ditatorial de Putin. Até o ponto em que, hoje, essa igreja é um órgão do aparato estatal.
Convertido por volta dos 25 anos, após o nascimento de sua filha, Navalny viveu seu compromisso político como testemunho cristão da fé, construindo seu ativismo, voltado principalmente para as gerações mais jovens da Rússia, em torno de um conjunto de valores que tem um perfil nitidamente cristão. Sua morte é um fato político, disso não há dúvida. Mas como esse fato deve ser entendido?
No lado de sua vivência pessoal, não é possível separar atividade política e testemunho cristão; mas no lado dos assassinos, do aparato político russo que ordenou sua eliminação?
Considerando que na Rússia de hoje não há distinção entre a dimensão política e a dimensão religiosa da ortodoxia oficial, e que a Igreja Ortodoxa Russa é um dos braços do poder estatal, há algo demoníaco na decisão que levou ao assassinato de Navalny nesse quadro indiferenciado das relações internas do regime de Putin. Essa ordem partiu de uma instância que está metafisicamente do lado do mal. Por isso, ambos os palestrantes não hesitaram em colocar a morte de Navalny sob a figura do martírio.
Martirizado devido à sua constante conexão, de forma explícita, entre a ação política e a ação cristã originada pela fé na ressurreição. Uma fé tão forte que levou Navalny a afirmar que não há morte. Com emoção, Chapnin lembrou o amigo dessa forma: "agora Alex vive sua vida, aquela em que ele acreditava".
As últimas palavras de Navalny vindas da prisão mostram como ele viveu esta última, dramática, fase de sua vida lendo-a na chave do Sermão da Montanha e das Bem-Aventuranças. Da conversão até seu assassinato, Navalny empreendeu uma luta testemunhal contra a corrupção do sistema russo; corrupção que encontra sua máxima evidência na ligação inseparável construída por Kirill e Putin entre o político e o religioso.
Se por um lado temos a transparência de um testemunho da fé na ressurreição como a razão última do ativismo político, por outro, do lado do aparato estatal, encontramos uma perversão mágica da fé ortodoxa: transformada por Kirill em um culto através da manipulação dos símbolos religiosos a serviço de seu próprio poder. O patriarca realmente acredita na circulação simbólica entre o lado religioso e o político, de modo que sua fé é, em última instância, uma fé no regime de Putin. Do ponto de vista da Igreja Ortodoxa Russa oficial, Navalny nunca existiu - o patriarca nunca pronunciou seu nome, talvez nem mesmo para condená-lo.
Tão mágica quanto a fé do líder russo. Putin, enquanto Navalny estava vivo, nunca pronunciou seu nome, acreditando que desta forma poderia apagar sua existência do cenário russo. E mesmo após sua morte, esperou duas semanas antes de mencionar, pela primeira vez, o nome do opositor cuja inexistência real só poderia ser produzida através de seu assassinato.
A manifestação dessa confluência perversa entre o religioso ortodoxo e o político russo é o caso do funeral de Navalny. As fortes pressões exercidas pelo patriarca fizeram com que não houvesse uma igreja em Moscou disponível para a celebração das cerimônias fúnebres (que duraram apenas 20 minutos, impedindo que os parentes elaborassem o luto religioso).
No fim, eles recorreram à pequena igreja da paróquia de Navalny, que tinha a vantagem de estar praticamente ao lado do cemitério onde ele foi enterrado. Apenas aqueles que chegaram antes das 8 da manhã, com os funerais marcados para a tarde, conseguiram entrar na igreja, pois a partir das 9 horas a área estava sob controle policial, impedindo qualquer acesso.
Mas o funeral também foi o momento em que uma dualidade emergiu publicamente, que nem o regime político nem o patriarcado de Moscou conseguiram impedir. A acompanhar as rápidas cerimônias na igreja havia um coro, uma expressão simbólica da igreja oficial, da igreja como aparato do estado; mas nas ruas adjacentes apareceram, um após o outro, coros espontâneos que acompanhavam a celebração - pequenos germes de uma outra igreja.
Esses coros são o símbolo do tipo de fé que Navalny viveu: entre as pessoas, longe da Igreja Ortodoxa Russa oficial, muito longe. E, ao mesmo tempo, foram uma forma de protesto contra a Igreja de Kirill e o regime de Putin.
Já em vida, Navalny era venerado pelo povo, agora ele também é na morte sem qualquer aprovação formal.
Mas em termos de ativismo político, dadas as condições do regime na Rússia, o que fica de Navalny? Chapnin brevemente reconstruiu a estratégia seguida por Navalny. Entre 2009 e 2010, Navalny começa a usar as mídias sociais como um espaço para formar uma oposição política a Putin, seguido principalmente por adolescentes muito jovens e até mesmo crianças.
Com 2017, uma nova geração aparece na cena russa, pronta para agir politicamente com o apoio de Navalny. É neste momento que o dissidente se torna o inimigo de Putin aos olhos deste, um inimigo a ser magicamente apagado, primeiro, e fisicamente, depois.
Mas estes também são os anos em que a Igreja Ortodoxa Russa oficial, especialmente através de Ilarion, inicia uma intensa propaganda antipolítica. A pregação religiosa da política como mal, como algo não bom, funcionou como apoio ao regime de Putin ao manter o povo russo afastado dos assuntos políticos do país e, eventualmente, de se envolver em atividades políticas.
Neste período, por outro lado, podemos observar uma intensa atividade política da hierarquia eclesiástica russa voltada para cultivar sua posição exclusiva no aparato estatal. Ao silêncio induzido no povo corresponde o sabotagem, pela Igreja Ortodoxa Russa oficial, dos símbolos mais sagrados da fé cristã, dobrados para apoiar um regime político essencialmente antievangélico.
"Dizer hoje na Rússia que não se importa com política é um ato pecaminoso" (Larin). Navalny foi a figura que quebrou esse silêncio e o lema do Patriarcado "reze e fique quieto". Ele orou e falou, formando uma nova geração de cidadãos russos no ativismo político.
Sua eliminação é uma mensagem para essa fatia mais jovem da população. Por um lado, é preciso lembrar que em um contexto ditatorial a atividade política de oposição não é apenas arriscada, mas também difícil de organizar. Por outro lado, é necessário registrar a contínua atividade da polícia secreta contra qualquer foco de ativismo político na Rússia; uma atividade que indica não apenas a existência desse ativismo, mas também sua disseminação.
Portanto, é necessário buscar outras vias, como a encontrada pelos coros espontâneos que acompanharam os funerais do dissidente russo. Hoje, as práticas devocionais que guardam a memória pública de Navalny são práticas de oposição e ativismo político: cada flor colocada diariamente em seu túmulo é um sinal de dissidência dentro da Rússia.
Uma dissidência da qual fazem parte todos os fiéis ortodoxos russos que não se reconhecem na igreja oficial de Kirill. Fiéis que, no entanto, não têm nenhuma voz eclesiástica que os apoie nas igrejas da diáspora russa: nem na Europa nem nos Estados Unidos.
Para esses fiéis, Navalny é uma responsabilidade a ser guardada; uma responsabilidade que implica na "restauração da verdadeira Igreja Ortodoxa Russa. Uma Igreja que não seja apenas uma continuação daquela fundada por Lenin em 1933. É dessa Igreja que Navalny deve vir a ser o primeiro santo mártir" (Chapnin).
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Navalny: o que ele deixa para a Ortodoxia Russa? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU