Para a cientista social, todos os sinais dos militares são de apoio ao presidente Bolsonaro
A postura do presidente Jair Bolsonaro na gestão da crise gerada pela pandemia de Covid-19 tem sido “inepta e irresponsável”, e, apesar de algumas declarações sugerirem que os militares do primeiro escalão do governo estão orientando o presidente a adotar um discurso moderado ou contribuíram para a manutenção do ministro Luiz Henrique Mandetta à frente do Ministério da Saúde, todos os “sinais” emitidos pelos militares são “de apoio ao presidente”, diz a cientista social Suzeley Kalil Mathias à IHU On-Line. “Embora haja falas que indicam que o grupo de militares do governo está no comando – o que é verdade e também por isso –, as Forças Armadas - FFAA vão continuar sustentando o sujeito na cadeira, pois entendem que se não o fizerem o comprometimento da instituição será muito maior”, resume. Segundo ela, se perguntados sobre a sua posição em relação ao presidente, os militares “repetirão a resposta de Villas Bôas: ele não perdeu apoio militar e estes não o tutelam”. No entanto, pontua, “a própria visita ao ex-comandante do Exército mostra que o catatau sentado na presidência sente a insegurança nas suas ações”.
Na avaliação da pesquisadora, “importa aos militares serem reconhecidos como a voz racional do governo” e a celeuma da semana passada em torno da demissão ou permanência do ministro Mandetta no Ministério da Saúde é um indicativo disso, especialmente a partir da divulgação da notícia de que o ministro da Casa Civil, Braga Netto, convenceu o presidente Bolsonaro a não demitir o ministro da Saúde. “O veículo que divulgou tal ‘notícia’ foi justamente o ‘Defesa Net’, um portal de direita que quer ser porta-voz das FFAA (sublinhe-se: ‘quer ser’), o que indica que é divulgado aquilo que querem que seja veiculado. É um portal que não veicula informações, mas especulações”, afirma.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Suzeley analisa a crise atual à luz da atuação dos militares no Brasil e também comenta a atuação do Congresso e dos governadores no enfrentamento da pandemia. “Existe a percepção que um golpista como o Mourão ou direitistas como Maia (ele é do DEM!!!) e Doria, cujo lema de campanha no segundo turno era bolsodorista, são democráticos quando tudo o que fizeram foi seguir menos do que exigem os protocolos internacionais de combate à pandemia atual. Como diz Chico Teixeira: ‘o partido dirigente no Brasil hoje é o DEM. É ele de fato que governa para o mercado, enquanto Bolsonaro joga pra galera’”.
Suzeley Mathias (Foto: Arquivo Pessoal)
Suzeley Kalil Mathias é graduada em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, mestra em Ciência Política pela Universidade de São Paulo - USP e doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp. Leciona na Universidade Estadual Paulista - Unesp, atuando nos cursos de Relações Internacionais e no Programa Interinstitucional de Pós-Graduação ‘San Tiago Dantas’, do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais. É membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional - Gedes.
IHU On-Line - Como avalia a postura do presidente Bolsonaro na gestão da crise atual gerada pela pandemia de Covid-19?
Suzeley Kalil Mathias - Como inepta e irresponsável. Este sujeito não tem condição de dirigir nem automóvel, quanto mais um país. No entanto, acredito que ele continuará sentando na cadeira e fazendo suas estripulias, enquanto os generais continuarão protegendo o capitão.
O projeto do (des)presidente é o caos: caos como método e caos como objetivo. Ele joga o ‘quanto pior, melhor’ para, quem sabe, gerar tanto caos que a saída seja repressão e fechamento ainda maior do regime.
IHU On-Line - Na semana passada, o presidente fez um pronunciamento mais ponderado, mas no dia seguinte já compartilhou vídeos falsos nas redes sociais e voltou a defender o isolamento vertical e a reabertura do comércio. O que essa postura revela sobre o presidente e seu modo de governar?
Suzeley Kalil Mathias - Todas as atitudes dele revelam seu completo despreparo para assumir o cargo que o ‘mercado’, especialmente os financistas, lhe entregaram – não estou dizendo que seja esta a única base de apoio que o elegeu. Sua atitude envergonha-nos, brasileiros, diuturnamente. Em situação de normalidade institucional, o que não existe desde 2016, ele já seria incapaz de governar um país, quem dirá em situação de emergência e esgarçamento institucional. Somos uma jangada completamente à deriva. Pior: temos um genocida na presidência! Ou, como circula na internet, “no Brasil temos dois inimigos: o vírus e o verme”.
IHU On-Line - Como os militares têm se posicionado nesta crise tanto em relação à postura do presidente quanto em relação ao enfrentamento da pandemia? Há mais consensos ou discordâncias entre eles acerca de como gerir a crise?
Suzeley Kalil Mathias - Creio que aqui é importante fazer uma diferença entre grupos de militares no interior das Forças Armadas - FFAA. Em primeiro lugar, importa notar que todos os sinais são de apoio ao presidente. Isto é, embora haja falas que indicam que o grupo de militares do governo está no comando – o que é verdade e também por isso –, as FFAA vão continuar sustentando o sujeito na cadeira, pois entendem que se não o fizerem, o comprometimento da instituição será muito maior. Segundo, há militares mais preocupados com a instituição, como mostra o pronunciamento (24 de março) do general [Edson Leal] Pujol, comandante do Exército, pois sabem que terão que assumir, em um momento ou outro, a função que cabe às FFAA em situações de calamidade e precisam se preparar para tal, daí o discurso destoar do presidente.
No entanto, se perguntados diretamente, todos repetirão a resposta de Villas Bôas (entrevista Estadão, 03/04): ele não perdeu apoio militar e estes não o tutelam. No entanto, a própria visita ao ex-comandante do Exército mostra que o catatau sentado na presidência sente a insegurança nas suas ações.
Uma questão importante, que pode estremecer as relações, mas que foi amortecida pela pandemia, é o que aconteceu no motim das polícias no Ceará. A postura do governo, não apenas do (des)presidente, mas também do ministro da Justiça e seu enviado, diretor da Força Nacional de Segurança, foi de minimizar a situação – o coronel Aginaldo [de Oliveira] chegou a elogiar os amotinados –, além de ter demorado muito para atender à solicitação do governador, que é do PT. Segundo especialistas, a estrutura de segurança é incontrolável e muito letal – não por acaso, em 2013 a Organização das Nações Unidas - ONU recomendou a extinção das Polícias Militares - PMs. As PMs são a base eleitoral do capitão, e representam um contingente maior do que o próprio Exército. Ademais, tem-se notícia da relação simbiótica que vem sendo construída entre as PMs e as milícias, e de como esta é uma base eleitoral histórica do bolsonarismo. O que resta de profissionalismo nas FFAA deve ter visto com muito maus olhos tal situação e, a se aprofundar isso, pode gerar alguma reação.
Por outro lado, no atual momento, a permanecerem apoiando um genocida, que é o que o (des)governo se tornou com suas atitudes cotidianas de confronto às medidas de segurança contra a pandemia, as FFAA serão também genocidas.
IHU On-Line - Na última entrevista que nos concedeu, a senhora disse que os militares que estão no governo não têm mais expectativa de emprestar alguma racionalidade ao presidente. Isso mudou em algum sentido nesta crise ou não?
Suzeley Kalil Mathias - Não mudei minha percepção. Creio que até se aprofundou, isto é, os militares não têm expectativa de mudar as ações do (des)presidente, mas aprenderam a utilizar o comportamento dele a seu favor, ou seja, aparecem como sendo a racionalidade do governo, mas no fundo usam o comportamento bufão para atingir seus próprios objetivos, como creio que a manutenção do Mandetta exemplificou.
As falas dos militares veiculadas a respeito do 31 de março (golpe de 1964) apontam para o apoio da caserna ao governo e ao (des)presidente em particular. Há muito cuidado em divergir do (des)presidente. E quando o fazem, indicam que estão mais à direita de Bolsonaro do que preocupados com o Brasil.
IHU On-Line - Nos bastidores, fala-se que o ministro Braga Netto convenceu o presidente Bolsonaro a não demitir o ministro Mandetta porque a demissão poderia fortalecer os governadores e agravar a crise. Qual tem sido a atuação do ministro Braga Netto e de outros militares no gerenciamento desta crise, especificamente no que diz respeito ao trabalho feito pelo ministro da Saúde e sua manutenção no cargo?
Suzeley Kalil Mathias - Destaque-se que Braga Netto foi o comandante da intervenção na cidade do Rio de Janeiro no último ano do governo Temer, período no qual assassinou-se Marielle Franco, crime até hoje não resolvido.
Importa aos militares serem reconhecidos como a voz racional do governo. E Braga Netto aparecer como o ‘comandante em chefe’ (ou presidente em exercício, ‘copresidente’ etc.) é interessante tanto para Bolsonaro quanto para as FFAA, pois reforça que elas são o ponto de equilíbrio e racionalidade. No entanto, o veículo que divulgou tal ‘notícia’ foi justamente o “Defesa Net”, um portal de direita que quer ser porta-voz das FFAA (sublinhe-se: ‘quer ser’), o que indica que é divulgado aquilo que querem que seja veiculado. É um portal que não veicula informações, mas especulações.
Braga Netto, ademais, não foi “legalizado” em outra função além da que já exerce (Casa Civil) e nem houve nenhuma reação de Bolsonaro, o que não é comum no comportamento deste senhor.
Por outro lado, destaque-se que foi importante o “bate cabeça” entre o ministro da Saúde e o (des)presidente da República, pois assim reforça-se a percepção social que “alguém cuida de nós”. Mas é importante não nos enganarmos: com raras exceções, o projeto em curso, de destruição do Estado, é um projeto de todo o governo, o que inclui as FFAA. O que acontece é que elas estão tentando ficar apenas com o bônus, sem arcar com o ônus.
IHU On-Line - O vice-presidente Mourão tem sido chamado de “bombeiro” por amenizar as declarações do presidente Bolsonaro e alguns veículos da imprensa já se referem a ele como “a solução”, sugerindo a saída do presidente. Qual tem sido o papel do vice-presidente nesta crise? Como vê essa imagem que se tem dele?
Suzeley Kalil Mathias - Cabe lembrar que esta é a forma que a imprensa oficial sempre apresentou Mourão, isto é, a moderação frente ao “louco” que eles, esta mesma imprensa, elegeram. No entanto, não se pode esquecer que ele sempre se pronunciou como golpista, todo o seu histórico mostra, na verdade, um reiterado posicionamento golpista, pelo qual, inclusive, ele foi punido no governo Dilma – “se as instituições não derem a solução, nós, Exército, temos o dever de dar” foi uma de suas falas ao longo da campanha eleitoral. Assim, Mourão é um bombeiro com um “lança-chamas”. E a imprensa é parte do tripé (militares, judiciário e imprensa) que promoveu o golpe e levou, em nome de um antipetismo absurdo, os ineptos – não é só o (des)presidente, mas toda a equipe/entourage é inepta, caminhando a passos largos para o papel de genocidas – para o governo. E, vale lembrar, o oligopólio midiático brasileiro sabia exatamente quem eram eles.
Caso se decida pela saída do (des)presidente, o que não acredito, esta será uma decisão também das FFAA e, portanto, a solução encontrada será apoiada, porque negociada, pelas FFAA. Quem não concorda com o que está acontecendo, desembarca e tenta construir a hegemonia de outra forma. É o que tem feito [Carlos Alberto dos] Santos Cruz e [o general Sérgio Westphalen] Etchegoyen, mas, mesmos estes, são tímidos em suas ações.
IHU On-Line – Atribui a demissão do general Santos Cruz da Secretaria de Governo a discordâncias com o presidente? Ao que especificamente?
Suzeley Kalil Mathias - Santos Cruz não divergia exatamente de Bolsonaro, mas de seus filhos e de Olavo de Carvalho. Diferente de outros ministros e assessores, Santos Cruz não tem ambição por cargos, é um militar de alto perfil profissional – é bom lembrar que ele é o único general que fez parte do governo que realmente participou de uma guerra, no Congo – e seu comportamento independente não agrada a entourage palaciana. O motivo, aparentemente, foi exatamente o de divergir, e mostrar que divergia, dos mais próximos de Bolsonaro. Veja que não há entre os militares do governo, ou mesmo fora (como os presidentes dos clubes militares), quem comente as bobagens que fazem os filhos do presidente ou outros ministros ou o próprio Bolsonaro. O único que faz isso é Mourão, que Bolsonaro não pode demitir. Também acompanhe que o (des)presidente, quando sente alguma falta de apoio, faz visitas ao Villas Bôas, e este não demora em soltar um twitter ou dar entrevistas.
De toda forma, na entrevista que deu logo depois de sair do governo, ainda em junho/19, Santos Cruz disse que não sabia o motivo da demissão e não lhe cabia cobrar (indiretamente ele o faz, ao dizer que tinha o direito de saber) de Bolsonaro, a quem deveria ser perguntado. O que se pode dizer é que Santos Cruz não admitiu ser fritado e, portanto, foi demitido. Certamente antes de fazê-lo Bolsonaro conversou com Heleno [Augusto Heleno Ribeiro Pereira], ao menos com este.
IHU On-Line – Como a demissão de militares do governo repercute entre os próprios militares?
Suzeley Kalil Mathias - Depende. Há aquelas que nem são notadas, há outras que são negociadas/informadas – Villas Bôas funciona como o amortecedor –, como provavelmente foi o caso de Santos Cruz e há as impossíveis. Não houve nenhuma deste último caso, e creio que não haverá. Quando é o caso de criar algum constrangimento, a missão é assumida pelo general Mourão.
IHU On-Line – Pode nos dar exemplos de como Santos Cruz e Etchegoyen têm se articulado para construir a hegemonia de outra forma? Como eles são vistos pelos que têm posições diferentes?
Suzeley Kalil Mathias - Acompanhe a agenda deles, que nem sempre é divulgada. Na entrevista de Santos Cruz, o leitor é informado que ele “estava voltando de uma visita ao quartel, onde foi visitar seus cavalos”. Pode parecer uma coisa corriqueira, uma visita aos estábulos. No entanto, dificilmente um general, mormente da estatura de Santos Cruz, vai a um quartel ou escola e não é recebido pelo Comandante, ou na sua ausência, por seu representante. Seria uma descortesia. E é assim que se mantém a liderança. Também participaram de eventos nos meios civis, como palestra de Etchegoyen no Instituto Fernando Henrique Cardoso - IFHC no ano passado.
IHU On-Line - A imprensa especula e noticia que representantes das Forças Armadas têm realizado encontros em Brasília para discutir cenários de médio e longo prazo sobre o afastamento do presidente. A senhora tem informações sobre isso? O que essas reuniões sinalizam?
Suzeley Kalil Mathias - A grande imprensa faz justamente isso: especula. A imprensa deveria ir além, fazer seu papel investigativo – hoje restrito no Brasil a grupos como a Pública e The Intercept. Todavia, a imprensa brasileira é porta-voz de interesses muito específicos, das poucas famílias que controlam a mídia no Brasil.
Importa frisar que construir/planejar cenários é a forma de pensar dos militares. Não é apenas agora, mas sempre foi esta a maneira de construir o pensamento nas FFAA. Da mesma forma, generais (ou militares de outros níveis) se reunirem para discutir a situação do país sempre existiu. E nenhum governo fez nada contra isso. Ao contrário, isso é visto como legítimo porque parte da preparação dos militares para a “defesa” do país.
Em resumo, os militares continuam fazendo o que sempre fizeram: planejando formas de defender os interesses que eles representam, sempre defendendo as elites do país contra as forças populares e democráticas. Exagerando na simplificação, pelo espaço que temos aqui, as FFAA são os ‘capitães do mato’ do século XXI, isto é, continuam defendendo a ‘casa grande’ por meio do ‘controle’ violento da ‘senzala’ – senzala esta que se alarga na proporção que a casa grande diminui em tamanho, mas aumenta em poder econômico e político.
IHU On-Line - Qual é o posicionamento das Forças Armadas diante dos desgastes diplomáticos e políticos criados por familiares do presidente Bolsonaro e ministros de seu governo?
Suzeley Kalil Mathias - Os militares, especialmente Mourão, buscam mostrar a irrelevância do que fazem os membros do governo, ou ao menos minimizar o discurso. Por exemplo, ao dizer que é a imprensa que reverbera e dá importância àquilo que não existe – chamar de ‘bananinha’ foi nesse sentido –, criando uma caricatura das ações que, sabemos, são estimuladas por e representam o (des)presidente. Isso significa que as FFAA buscam apontar que não concordam com a forma da gestão dos assuntos públicos, mas estão unidas em torno do mesmo conteúdo. As FFAA estão unidas no mesmo processo, de destruição da esquerda e de tudo o que isso representa para o campo popular.
Em outras palavras, a esquerda está sendo pautada pelo próprio bolsonarismo. As brigas (na verdade, pequenos desentendimentos que mais ajudam que atrapalham) palacianas são apenas brigas pela forma, não pelo conteúdo. Todos estão unidos pelo mesmo projeto de destruição do pouco Estado que construímos.
O grande problema que agora se coloca é a pandemia de Covid-19, cuja ação genocida do (des)presidente será também debitada das FFAA.
IHU On-Line - Alguns dizem que o presidente dá indícios de que gostaria de proclamar um autogolpe. Outros analistas asseguram que a geração de militares que está no governo é comprometida com a Constituição e que não permitirá um rompimento com a democracia. Há risco nesse sentido? Analisando o comportamento dos militares, do presidente, do Congresso e dos governadores até então, diria que a situação se encaminha para qual possibilidade?
Suzeley Kalil Mathias - Tenho trabalhado há muito (pelo menos desde 2014) com a hipótese de ‘Estado de não-direito democrático’ (democrático tem o mero sentido de ser embasado em eleições, esquecendo todos os outros aspectos que uma democracia exige). Com isso quero dizer que já não existe legalidade do que acontece no Brasil. A Constituição de 1988 só é respeitada e lembrada quando os interesses da elite no poder assim o querem. Desde o “mensalão”, o Judiciário se arroga o direito de criar regras que não são constitucionais. Em nome do “respeito à Constituição”, esta vem sendo rasgada a todo momento e, pior, a esquerda/oposição se apega ao discurso legalista – interessante comparar o discurso da oposição ao longo de todo o processo de impedimento de Dilma Rousseff com aquele que antecedeu o golpe de 1964. Tal exercício mostra que a história, pelo menos aquela das forças populares no Brasil, se repete: quando tais forças denunciam a ilegalidade e pedem pelo respeito à lei, esta já não mais existe.
Desde pelo menos 2014, nota-se o avanço do partido militar sobre a política, um aparelhamento do Estado pelos setores castrenses. Pode-se dizer que isso acontece com o partido militar – chamo de partido militar porque a lógica de organização das FFAA, especialmente a do Exército, é a mesma de partidos políticos, qual seja, a de alinhavar interesses de grupos específicos (estratos sociais) dando-lhe forma de projeto nacional e buscando os mecanismos para impor sua visão de mundo ao conjunto da sociedade, disputando na política recursos escassos e, quando no governo, aparelhando a burocracia para permanecer com recursos de poder. A diferença do partido militar para os partidos “civis” próprios da política de disputa eleitoral é que o partido militar tem por trás uma corporação (as FFAA) que não pode parecer fraturada (as facções e disputas de lideranças que são naturais nos partidos políticos) e, portanto, deve apresentar-se como homogênea. A construção da hegemonia, inevitável à lógica de partido, aparece sempre como sendo a voz do comando – daí serem generais a falar.
Em síntese, não existe autogolpe ou qualquer outro golpe porque não existe necessidade de tal ação. As forças da reação chegaram ao poder e estão conseguindo governar apresentando-se inclusive como democráticas – a própria pergunta mostra isso. Com toda a inépcia do (des)presidente, as pesquisas mostram que ele continua tendo 30% de apoio. Pior: existe a percepção que um golpista como o Mourão ou direitistas como Maia (ele é do DEM!!!) e Doria, cujo lema de campanha no segundo turno era bolsodorista, são democráticos quando tudo o que fizeram foi seguir menos do que exigem os protocolos internacionais de combate à pandemia atual. Como diz Chico Teixeira [Francisco Carlos Teixeira da Silva]: “o partido dirigente no Brasil hoje é o DEM. É ele de fato que governa para o mercado, enquanto Bolsonaro joga pra galera”.
IHU On-Line - Em que aspectos a crise atual se assemelha e se diferencia da crise de 64?
Suzeley Kalil Mathias - Antes de qualquer coisa, não havia crise em 1964, como também não havia em 2013-14, quando podemos datar o início do processo de construção da “crise” que continuamos a vivenciar. Em 1964 havia problemas econômicos, hoje muito mais profundos, que são utilizados como ferramenta para a construção da crise.
Sou da opinião que o sistema capitalista é em si um sistema de crises, que apenas é realmente considerado crítico quando somados a uma crise política que coloca no centro da discussão não o sistema em si, muito poucas vezes ameaçado de fato, mas os privilégios das elites. Assim, a semelhança é a mesma desde que o Brasil é independente: sempre que houve algum movimento popular por inclusão das camadas mais empobrecidas no processo político e que representasse a necessidade de um ‘novo’ pacto social, as elites – elites que são nacionais apenas no nome, porque aqui se desenvolvem, mas são altamente predatórias, pois não têm nenhum interesse que o país se desenvolva – se uniram para conter os avanços. A fala do dono da Madero, Junior Durski, de que o Brasil não poderia parar por 5 ou 7 mil mortes, é uma atualização daquela dos donos de escravos do século XIX que diziam que o fim da escravidão quebraria o Brasil.
Ou seja, aqui não interessa a vida humana, mas apenas a vida de quem pode ter escravos. Portanto, para a grande maioria dos brasileiros, a vida é uma eterna crise. Quem diz que estamos em crise são aqueles que querem acabar com as migalhas representadas pelo direito à vida, por meio da universalização da saúde (SUS) e da educação contida na Constituição de 1988. E esta é a ideia-força do partido militar, pois os direitos ali escritos representam a derrota do projeto dirigido por eles entre 1964 e 1985.
Do ponto de vista das FFAA e sua participação na política, a grande diferença entre 1964 e hoje é que naquela ocasião havia forças internas ao partido militar que disputavam a hegemonia que tinham de um projeto de país que almejava alguma autonomia frente ao poder hegemônico – a construção do “Brasil potência” – cujo papel, ainda que subordinado à potência ocidental, era de “subimperialismo” regional. As FFAA, portanto, e como mostra a Doutrina de Segurança Nacional - DSN, tinham um projeto de país que em alguma medida convergia com o nacional desenvolvimentismo cepalino.
Hoje, além do próprio esgotamento do projeto nacional desenvolvimentista, as FFAA e seu partido não têm nenhum projeto nacional. Ao contrário, o que é possível notar é que os interesses corporativos subordinaram qualquer outra visão possível nos meios castrenses. Em outras palavras, o partido militar age como um sindicato da categoria.
IHU On-Line - Como o aumento do número de mortes por Covid-19 e a crise econômica geram mais instabilidade no governo Bolsonaro?
Suzeley Kalil Mathias - O que as mortes e o aprofundamento da pauperização do povo brasileiro (o que vem sendo chamado de “crise”) têm gerado é algum tipo de insatisfação naqueles que achavam que poderiam trocar de governo como se troca de roupa. Até este momento, Páscoa de 2020, não vejo que haja algum tipo de instabilidade no governo. Que ele é, como sempre foi, incapaz só não sabia quem não queria ver, isto é, os ingênuos que realmente achavam que a corrupção nasceu com o PT e tudo é culpa dele. Tanto não há instabilidade que a lógica lavajatista continua em curso de criminalizar e afastar do poder a esquerda – o pedido de cancelamento do PT é prova disso: quer-se a extinção do principal partido de oposição! E não importa se o Judiciário não deu ganho de causa aos golpistas, pois o fez segundo a lógica do golpismo!
E a grande tragédia é que as ações do governo, que colocam a vida de cada um de nós em risco ou, se sobrevivermos, a precarizam muito mais do que já o fizeram, não encontram uma alternativa colocada pela oposição, que vem aceitando a agenda imposta pelo governo. Bolsonaro está governando como prometeu.
IHU On-Line - O Centro de Estudos Estratégicos do Exército - CEEEx publicou um estudo com recomendações de como enfrentar a pandemia. O estudo gerou polêmica porque contraria o discurso do presidente e foi, por fim, retirado do ar. O que isso indica?
Suzeley Kalil Mathias - Indica que as FFAA têm comando e o comando está com o capitão.
IHU On-Line - Como avalia as relações internacionais do Brasil diante da pandemia e da crise econômica e as suas implicações geopolíticas?
Suzeley Kalil Mathias - Como disse Celso Amorim ainda sob Temer: “O Brasil voltou para o cantinho do mundo”. Este é o papel que nossas elites desejam para o país.
Há uma reorientação geopolítica no mundo que apontava, ainda na primeira década deste século, para o multilateralismo. Quem mais perderia com isso era os EUA, cuja reação levou de roldão a própria democracia – não apenas nos EUA, mas no mundo. A reorganização mundial em curso, acelerada pela crise financeira e energética, deve aprofundar o conflito entre EUA e China. A disputa pela Amazônia é porção mais visível deste lado do globo e, por enquanto, os EUA têm sido vitoriosos. Neste processo, o Brasil, dirigido pelo partido militar, ‘escolheu’ ser vassalo dos EUA. O que é espantoso é o desconhecimento histórico do partido militar: o Iraque foi armado pelos EUA na batalha contra o Irã, enquanto a Argentina se vangloriava de ter ‘relações carnais’ com os EUA. O Iraque está destroçado, enquanto a Argentina só se reergueu às custas de uma convergência venturosa que não se repetirá.
IHU On-Line - O que se pode projetar para um pós-crise?
Suzeley Kalil Mathias - Infelizmente, não sou otimista. Não creio, como alguns, que esta crise represente uma “janela de oportunidades” para a superação do neoliberalismo ou que a classe média verá que o Estado mínimo não é solução, mas parte do problema. Claro que o Estado terá que assumir papel centralizador na condução da crise pandêmica que ainda não sabemos quanto vai durar. Superada esta fase, já na crise econômica em curso – que atingirá todo o planeta – nós voltaremos ao ciclo de rapinagem que estava em acelerado processo nesta quadra atual. É provável que a miséria se acelere muito, o que levará à revolta popular, que será tratada como sempre foi: na ponta das baionetas. E aí as FFAA assumirão o seu papel tradicional na história do Brasil: o de ‘capitães do mato’, de repressores dos seus mais diletos cidadãos.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Suzeley Kalil Mathias - Enfatizo: as FFAA no Brasil sempre foram forças de controle social. Jamais se comportaram dentro da legalidade que indica que sua função é a defesa nacional. As FFAA sempre foram ‘golpistas’, sempre exerceram o papel de destruição da ordem democrática. Eles estão apenas adotando outras formas de golpismo, mas com o mesmo objetivo: manter seus privilégios ainda que em detrimento do próprio país.