Por: Wagner Fernandes de Azevedo | 15 Agosto 2018
O secretário de Defesa dos Estados Unidos está em giro pela América do Sul. Iniciando a visita pelo Brasil, passando pela Argentina, Chile e Colômbia, James Mattis aproxima o olhar do governo para os vizinhos latinos. Em junho, o vice-presidente Mike Pence fez movimento parecido: visitou o Brasil, Equador e Guatemala. O retorno dos EUA à região tem um motivo principal de fundo: a inserção chinesa na região que outrora foi guardião.
Uma doutrina apresentada em 1823 ao Congresso dos EUA pelo presidente James Monroe demarcou a base da política externa estadunidense para a região: “América para os americanos”. A medida anunciava que para os EUA não seriam aceitas novas colônias nas Américas, e intervenção de nenhum país europeu no território que se reconfigurava com as independências nacionais. Os EUA assumiram para si o papel de salvaguardar a soberania do continente.
A ascensão dos EUA como potência mundial transformou a perspectiva de guardião em interventor. Em 1901, a Doutrina Monroe ganhou outra roupagem com o governo de Theodore Roosevelt: o Big Stick (O grande porrete). A penetração externa no continente não apenas seria coibida, como os EUA determinariam medidas de proteção anteriores, que bem na verdade significam explorar a região ao seu interesse. A “América para os americanos” teve novo significado, ampliando a perspectiva de América, e reduzindo os sujeitos contidos no coletivo “americanos”.
A América Latina é o grande vizinho da grande potência. A região foi chave para a sustentação da balança de poder na Guerra Fria e continuou sendo na ordem unipolar da década seguinte. Para os EUA, ter controle da América Latina é condição sine qua non para qualquer que seja seu interesse político. Por isso, o isolamento de potências europeias foi tão determinante nos séculos XIX e XX. E do mesmo modo, uma disputa com a crescente chinesa mantém esse caminho sem volta.
A remodelação de política multilaterais na década de 2000 construiu novas distribuições de forças no sistema internacional. A política externa dos países latino-americanos buscou a construção de fóruns e organismos autônomos, sem predisposição aos interesses que a ordem bipolar da Guerra Fria exigia. Os EUA ampliaram o olhar desde a década de 1970 para longe. O Oriente Médio era a região prioritária. A partir das crises e das intervenções nos países da OPEP que conseguiu impor sua hegemonia geopolítica. Embora o foco fosse outro, jamais houve descuido na relação e no cuidado com o pátio dos vizinhos.
À exceção da Venezuela, Cuba e Bolívia, nenhum país foi inimigo declarado dos EUA, nem mesmo nos governos progressistas. A própria Venezuela, salve sua oposição retórica, destina 40% da produção de petróleo aos norte-americanos. O Brasil do PT, a Argentina kirchnerista e o Chile de Bachelet sempre mantiveram relações. A tradição e a necessidade das relações diplomáticas e comerciais entre os Estados não se medem por discursos ideológicos e propagandísticos.
Por outro lado, os países “protegidos” se desgarraram. A ascensão chinesa e o aumento dos preços das commodities redirecionaram a política comercial da região cada vez mais intensamente para a Ásia. A China cresce exponencialmente seus investimentos pela América Latina e tem influência e respaldo direto nos governos mais críticos.
A Venezuela de Nicolás Maduro foi o assunto principal das visitas de Mike Pence e de James Mattis ao continente. Pence chegou a visitar refugiados venezuelanos em Manaus. James Mattis pediu ao Brasil para que junto da Colômbia assumissem a liderança para resolver a “crise humanitária no país”.
O principal parceiro político e comercial venezuelano é a China. A nova potência é a principal compradora de petróleo e a principal fornecedora de manufaturados. A economia chinesa é determinante para a sustentação do governo de Nicolás Maduro. A política externa chinesa, ao contrário da doutrina do Big Stick, não impõe intervencionismos. O que importa são as negociações bilaterais, e enquanto essas estão funcionando, não há motivo para intervir no conflito venezuelano.
Na Nicarágua o sonho da “América para os americanos” não se realizou. Parte do plano de Roosevelt era a construção do Canal da Nicarágua. Os EUA projetavam uma conexão interoceânica entre o Atlântico e o Pacífico em torno de 500km ao norte do Canal do Panamá. A obra que jamais foi iniciada pelos estadunidenses, foi comprada por chineses. O grupo HKND construiria o canal de 278km e teria o controle do projeto por até 100 anos. O governo de Daniel Ortega avalizou a concessão da mega-obra de investimento superior aos 50 bilhões de dólares.
Cinco anos depois da concessão não houveram avanços, somente protestos. Os impactos ecológicos não eram prioridade de Ortega. Os violentos conflitos que insurgiram em abril no país praticamente sepultaram a possibilidade de avançar a obra em seu governo, e dificilmente terão avanços fáceis em outra presidência. No entanto, o aceno orteguista ao megaprojeto de capital chinês evidenciava que os ditames das políticas latino-americanas não passariam por crivo ou vontade estadunidense.
Os governos da Venezuela e da Nicarágua têm um cruzamento comum de suas crises. A Organização dos Estados Americanos – OEA é o organismo de principal ação sobre os países. Tradicionalmente sob liderança dos Estados Unidos, a OEA tem insistido em soluções que resultem no afastamento de Nicolás Maduro e Daniel Ortega do poder. A aplicação da Carta Democrática da OEA suspenderá a Venezuela da organização. A Assembleia Geral também aprovou resoluções exigindo o adiantamento das eleições na Nicarágua. As decisões não foram acatadas pelos governos.
O giro do governo estadunidense pela região tem essa agenda demarcada. Uma ação dos países vizinhos para solucionar a crise. Essas debilidades democráticas são aberturas para a reinserção pragmática dos EUA na América Latina.
Para além de frear o avanço chinês, os EUA conseguem barganhar novos caminhos na região. O uso da Base Militar de Alcântara é um interesse antigo dos norte-americanos, e nesse momento seria essencial para a disputa espacial com a China. Assim como contrabalancear a base chinesa na província sulista de Neuquén na Argentina, com uma base militar.
James Mattis na coletiva proferida na segunda-feira, 13-08, retomou as palavras sintetizadas por Monroe: “somos todos americanos”. A utilização da base em Alcântara, segundo o secretário, não é por “acidente geográfico”, mas por uma opção de “trabalhar com brasileiros, pessoas cujos valores compartilham politicamente”.
Mike Pence em sua visita ao Equador, em abril, logrou junto a Lenín Moreno políticas de segurança e defesa na contramão da política de Rafael Corrêa. Em 2009, o ex-presidente fechou a base militar de Manta, região litorânea do Equador; em 2014, fechou o escritório da USAid, entidade governamental encarregada de “ajudas humanitárias”. Moreno anunciou em abril a criação da Unidade de Investigações Criminais Transnacionais dentro da Polícia Nacional equatoriana; em julho o retorno do país aos exercícios militares promovidos pelos EUA (UNITAS, RIMPAC e PANAMAX); e em agosto anunciou a criação do Escritório de Cooperação de Segurança com os EUA, que será um centro de inteligência conjunta ao governo estadunidense.
Em relação aos migrantes e refugiados, Pence e Mattis foram enfáticos. Os países precisam fortalecer suas fronteiras. Embora tenham diversificado a entonação conforme o interlocutor.
Para Colômbia e Brasil, Mattis apresentou um tom de revolta ao governo de Maduro. “Permanecemos com o Brasil e outros países da região contra essa instabilidade (da Venezuela), em meio à tragédia de um regime opressor e sedento de poder que força a partida de refugiados para o Brasil, a Colômbia e outros lugares”, afirmou na coletiva de imprensa.
Pence, em junho, em meio à crise gerada pela política de intolerância de Trump, esteve no Brasil compadeceu-se aos refugiados venezuelanos. “A mensagem que o presidente Donald Trump envia é que os Estados Unidos estão com vocês, caminham junto com vocês e vão continuar assim até que a democracia seja restaurada na Venezuela”, disse em um centro de abrigo a refugiados, em Manaus.
Não obstante, na Guatemala, na presença do presidente Jimmy Morales, de Salvador Sanchez Cerén, presidente de El Salvador, e Juan Orlando Hernández, de Honduras, exigiu o reforço das fronteiras. Segundo o vice-presidente, assim como os EUA estavam enrijecendo a entrada de migrantes, os países centro-americanos deveriam fortalecer seus limites porque “esse êxodo precisa ter fim”. “Nós respeitamos suas fronteiras e suas soberanias, por insistimos que respeitem a nossa [...] nossa nação necessita que as suas nações façam mais”.
Com os migrantes desses países, Pence não foi piedoso. “Não arrisquem suas vidas ou as vidas de suas crianças tentando entrar nos Estados Unidos [...] fiquem em suas casas com suas crianças. Construam suas vidas em suas casas”.
A "visita de cortesia" do governo dos EUA, como anunciou o Ministério de Relações Exteriores do Brasil, a América do Sul tem interesses históricos.
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"Nós somos todos americanos". EUA voltam a olhar para a América Latina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU