15 Julho 2018
“Nas próprias palavras de Xi, “a China tem estado no melhor período de desenvolvimento desde os tempos modernos, enquanto o mundo está passando pelas mudanças mais profundas e sem precedentes em um século". Claro, obstáculos formidáveis estão à frente da China. Mas Xi concluiu que os obstáculos que enfrentam os EUA e o Ocidente são maiores””, opina Kevin Rudd, primeiro-ministro da Austrália entre 2007 e 2010, em palestra realizada na Universidade Nacional de Cingapura, publicada por Project Syndicate e reproduzida por Carta Maior, 13-07-2018. A tradução é de Carlos Eduardo Silveira.
"O futuro da ordem global está em um estado de fluxo. A China tem um roteiro claro para o futuro. Está na hora de o resto da comunidade internacional desenvolver um para si mesma", conclui Rudd.
O contraste entre a desarranjo no Ocidente, claramente expostos na reunião de Cúpula da Otan e na reunião do G7 do mês passado no Canadá, e a crescente autoconfiança internacional da China está ficando mais clara a cada dia. No mês passado, o Partido Comunista da China (PCC) concluiu sua Conferência Central sobre Questões de Relações Exteriores, a segunda desde que Xi Jinping se tornou o governante indiscutível da China em 2012. Essas reuniões não são assuntos cotidianos. Eles são a expressão mais clara de como a liderança vê o lugar da China no mundo, mas, da mesma forma, diz muito ao mundo sobre a China.
A última conferência desse tipo, em 2014, assinalou o funeral do ditado de Deng Xiaoping: "esconda sua força, tome seu tempo, nunca assuma a liderança," e anunciou uma nova era de ativismo internacional. Em parte, essa mudança refletiu a centralização do controle de Xi, a conclusão dos líderes chineses de que o poder americano está em relativo declínio e sua visão de que a China se tornará um “player” econômico global indispensável.
Desde 2014, a China expandiu e consolidou sua posição militar no Mar do Sul da China. Isso levou à ideia da Nova Rota da Seda e transformou-a em um negócio multimilionário, abrangendo comércio, investimento, infraestrutura e uma iniciativa geopolítica / geoeconômica mais ampla e envolvendo 73 países diferentes em grande parte da Eurásia, África e além. E a China engajou a maior parte do mundo desenvolvido para o primeiro banco multilateral de desenvolvimento não-Bretton Woods, o Banco de Investimento Asiático em Infraestrutura.
A China também lançou iniciativas diplomáticas além de sua esfera imediata de interesse estratégico no Leste Asiático, ademais de participar ativamente de iniciativas como o acordo nuclear do Irã de 2015. Desenvolveu bases navais no Sri Lanka, no Paquistão e no Djibuti, e participa de exercícios navais com a Rússia em lugares distantes como o Mediterrâneo e o Báltico. Em março, a China estabeleceu sua própria agência de desenvolvimento internacional.
O surgimento de uma grande estratégia coerente (independentemente de o Ocidente escolher reconhecê-la como tal) não é tudo o que mudou desde 2014. Para começar, a ênfase no papel do PCC é muito mais forte do que antes. Xi, preocupado com o fato de o partido ter se tornado marginal aos principais debates políticos do país, reafirmou o controle partidário sobre as instituições do Estado e deu precedência à ideologia política sobre a formulação de políticas tecnocráticas. Xi está determinado a desafiar a linha de tendência da história ocidental, a se livrar do "fim da história" de Francis Fukuyama com o triunfo geral do capitalismo democrático liberal, e preservando um Estado leninista a longo prazo.
Essa abordagem - conhecida como Pensamento Xi Jinping - agora perpassa a estrutura de política externa da China. Em particular, a visão de Xi de que existem "leis" imutáveis identificáveis de desenvolvimento histórico, tanto prescritivas quanto preditivas, foi particularmente proeminente na conferência de política externa do mês passado. Se isso soa como materialismo dialético antiquado, é porque Xi abraça a tradição marxista-leninista como sua estrutura intelectual preferida.
Dada sua ênfase nas leis de ferro do desenvolvimento político e econômico, uma visão do mundo materialista dialética, significa que não há nada aleatório sobre os eventos mundiais. Assim, argumenta Xi, se a estrutura analítica de Marx for aplicada ao período atual, fica claro que a ordem global está em um ponto de virada, com o relativo declínio do Ocidente coincidindo com as fortuitas circunstâncias nacionais e internacionais que permitem a ascensão da China. Nas próprias palavras de Xi, "a China tem estado no melhor período de desenvolvimento desde os tempos modernos, enquanto o mundo está passando pelas mudanças mais profundas e sem precedentes em um século". Claro, obstáculos formidáveis estão à frente da China. Mas Xi concluiu que os obstáculos que enfrentam os EUA e o Ocidente são maiores.
Como esse pensamento vai agora conduzir a política externa concreta da China, é da imaginação de cada um. Mas como os estados de partido único, em particular os estados marxistas, optam por "idealizar" a realidade tem grande importância: é como o sistema fala consigo mesmo. E a mensagem de Xi para a elite da política externa da China é uma de grande confiança.
Especificamente, a Conferência Central pediu que as instituições de política internacional e o pessoal do país adotassem a agenda de Xi. Aqui Xi parece ter o Ministério do Exterior em sua mira. Há um forte sabor ideológico na aparente frustração de Xi com a abordagem glacial do ministério à inovação política. Os diplomatas chineses foram instados a ter em mente que eles são, em primeiro lugar e acima de tudo, "quadros partidários", sugerindo que Xi provavelmente impulsionará o aparato da política externa para um maior ativismo, para dar pleno efeito à sua visão global emergente.
A maior mudança surgida da conferência do mês passado diz respeito à governança global. Em 2014, Xi referiu-se a uma luta iminente pela futura estrutura da ordem internacional. Embora ele não tenha elaborado, muito trabalho foi dedicado a três conceitos inter-relacionados: guoji zhixu (a ordem internacional); guoji xitong (o sistema internacional) e quanqiu zhili (governança global).
Naturalmente, esses termos também têm, em inglês, significados diferentes e sobrepostos. Mas, em termos gerais, em chinês, o termo "ordem internacional" refere-se a uma combinação das Nações Unidas, as Instituições de Bretton Woods, o G20 e outras instituições multilaterais (que a China aceita), bem como o sistema americano de alianças globais (o que a China não aceita). O termo "sistema internacional" tende a se referir à primeira metade desta ordem internacional: a complexa teia de instituições multilaterais que operam sob um tratado internacional e busca governar as questões compartidas globais com base no princípio da soberania compartilhada. E "governança global" denota o desempenho real do "sistema internacional" assim definido.
O que é surpreendentemente novo nas observações de Xi na Conferência Central foi o seu apelo para que a China agora "liderasse a reforma do sistema de governança global com os conceitos de equidade e justiça". Esta é, de longe, a afirmação mais direta das intenções da China sobre essa importante questão oferecida até agora. O mundo deve se empenhar e se preparar para uma nova onda de ativismo político internacional chinês.
Como grande parte do resto da comunidade internacional, a China está bastante consciente da disfuncionalidade de grande parte do atual sistema multilateral. Portanto, o desejo de Xi de liderar "a reforma do sistema de governança global" não é por acaso. Reflete um crescente ativismo diplomático em instituições multilaterais, a fim de reorientá-las em uma direção mais compatível com o que a China considera seus "interesses nacionais centrais".
Xi lembrou à elite política internacional da China que a totalidade da futura direção da política externa da China, incluindo a reforma da governança global, deve ser impulsionada por esses interesses nacionais centrais. Nesse contexto, a China também quer um sistema internacional mais "multipolar". Este é o código para um mundo em que o papel dos Estados Unidos e do Ocidente é substancialmente reduzido.
O desafio para o resto da comunidade internacional é definir que tipo de ordem global queremos agora. O que instituições existentes como a União Europeia, a Associação das Nações do Sudeste Asiático ou a União Africana querem para o sistema internacional fundado em princípios para o futuro? O que exatamente os EUA querem, com ou sem Trump? E como preservaremos coletivamente os valores globais incorporados na Carta da ONU, nas instituições de Bretton Woods e na Declaração Universal dos Direitos Humanos?
O futuro da ordem global está em um estado de fluxo. A China tem um roteiro claro para o futuro. Está na hora de o resto da comunidade internacional desenvolver um para si mesma.
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China. A visão de Xi Jinping sobre a governança global - Instituto Humanitas Unisinos - IHU