05 Abril 2020
Para o psicanalista Christian Dunker, de 54 anos, a pandemia do novo coronavírus criou três perfis de comportamento diante da ameaça: o tolo, o desesperado e o confuso.
A entrevista é de Leandro Machado, publicada por BBC News Brasil, 04-04-2020.
Em entrevista à BBC News Brasil, Dunker afirma que o tolo tende a negar a situação dramática como maneira de enfrentar o medo; o perfil desesperado se angustia ainda mais com a situação; já o confuso transita entre esses dois polos, sem saber direito como deve agir e pensar. "Se você não está confuso nesse momento, procure um psicanalista porque você tem um problema, e ele não é o coronavírus", disse.
Professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Christian Dunker é autor de diversos livros sobre psicanálise e o estado social brasileiro, como Reinvenção da Intimidade: Políticas do Sofrimento Cotidiano (Ubu Editora).
Dunker também tem um canal no YouTube, onde fala sobre vários assuntos do ponto de vista da psicanálise, como os discursos do presidente Jair Bolsonaro e o filme Coringa.
Em entrevista por Skype, o psicanalista abordou temas como as implicações do isolamento social diante durante a pandemia do novo coronavírus e as consequências para crianças e idosos. Também falou sobre os efeitos do confinamento para casamentos e outras relações pessoais.
Professor da USP, o psicanalista Christian Dunker acredita que pandemia de coronavírus trouxe uma lição de humildade. (Foto: Arquivo Pessoal)
É possível saber quais os efeitos psicológicos que um isolamento social de longo prazo pode desencadear? Em outras palavras, o que fazer, ou que não fazer para não entrar em colapso?
Vou dividir em muitos grupos. A começar por um que vai melhorar, que vai achar essa situação um alívio psíquico. São as pessoas que vivem em um estado de expectativa ansiosa e de perigo, que é uma modulação dos estados ansiosos. Elas acham que a qualquer hora vai acontecer alguma coisa: 'vou perder meu emprego, vai acabar meu casamento, vai acontecer um assalto, uma morte'.
Essas pessoas podem acelerar muito a ansiedade, ou podem dizer: 'ufa, finalmente aconteceu'. Então, a pandemia se objetifica na realidade e projeta no mundo aquilo que antes só era vivido como fantasia e possibilidade.
Outros vão se sentir melhor no começo, mais confortáveis com a situação, mas depois tendem a piorar. Por exemplo, aqueles que têm dificuldade para sair da cama para começar uma atividade, que sentem uma espécie de medo do mundo.
Já a maior parte das pessoas vai ter seus sintomas psíquicos piorados, porque há um aumento de tensão e conflito social. E isso acontece especialmente com as pessoas mais vulneráveis, mais desprotegidas. O isolamento vai tornar mais intensos os sintomas que você já tem, como a ansiedade. O paranóico vai ficar mais paranóico, o mesmo com o depressivo, com o hipocondríaco.
Isso sem contar outros problemas que vão surgir.
Você já falou que a pandemia criou três perfis: o tolo, o confuso e o desesperado. Quem são eles?
Estamos em uma situação na qual precisamos fazer frente ao medo de algo que vem de fora: há um bicho lá fora e ele pode nos pegar. Mas esse medo vai se somar às angústias internas.
O 'tolo' sente tanto medo que precisa negar o que está acontecendo. Então, ele diz: 'isso é uma gripezinha, vai passar, foi uma invenção dos chineses, não precisamos ter medo'. A segunda resposta do tolo é a seguinte: 'ok, isso existe, mas eu sou uma pessoa especial, alguém me protege lá em cima, estou imune, sou atleta'. É outra forma de negar o medo.
Chamo essa pessoa de tola porque era uma maneira que a filosofia antiga falava daquele que não era covarde nem corajoso. Para você ser um dos dois, precisa sentir medo, pois um regride e o outro ataca. Falta ciência e capacidade para o tolo ver o medo, ele não entende que ter medo é importante.
Já o 'desesperado' é o contrário: ele substitui o medo de fora pela exageração das angústias que já sente. Ele acha que não pode fazer nada, que a ameaça é tão poderosa que ele está perdido, mal amado, um pobre coitado. A situação só confirma seus complexos infantis. Ele sente angústia e desamparo.
Entre esses dois polos existe o tipo misto, que é o 'confuso'. Ele transita entre o tolo e o desesperado. Ele não entende direito o que está acontecendo. Uma hora acha que tudo está perdido; depois, fica mais otimista. Ou seja, ele não sabe direito como agir.
Eu diria que, se você não está confuso nesse momento, procure um psicanalista porque você tem um problema, e ele não é o coronavírus.
De certa forma, antes do coronavírus, já vínhamos aumentando o isolamento, com condomínios cada vez mais fechados, carros blindados, medo da violência e virtualização da vida.
Concordo, mas não colocaria em série. Havia sim uma tendência ao fechamento, à individualização inclusive no trabalho, com o home office, freelancer e serviços precarizados. Mas o enunciado agora é diferente: 'Não pode sair, e está coagido a ficar em casa'. Isso tem um impacto psíquico totalmente diferente.
Quando você está no seu condomínio, você sente e goza da possibilidade de sair quando quiser. E esse sentimento de liberdade, ainda que falso, faz com que a pessoa na prática não sinta que está se aprisionando.
Agora, temos algo que vem de fora e que gera uma mensagem de que você perdeu uma parcela da sua liberdade de ir e vir. Isso é sentido como uma punição, pois aprendemos que a prisão é um dos piores castigos.
Quando somos crianças, uma das punições é ficar sozinho, pensando. O que você faz com o cara que transgride? Você o prende. Você pode achar que não é a mesma coisa, mas lida como se fosse, porque o discurso e a narrativa foram construídas com essa associação entre a prisão e punição.
Muita gente tem percebido o quão importante é o contato humano e a relações cara a cara, não? Parece que muita gente agora quer estar junto…
Há um geração recente que cresceu desencarnada, experimentando o vídeo e a facilidade de estar com o outro pelo Whatsapp, pelas redes sociais. São amores que se criam no Whatsapp, histórias inteiras vividas por e-mail… Isso tudo representou uma espécie de apagamento da força insubstituível da presença do corpo do outro. O corpo e seus odores, o corpo e seu tempo. A urgência da gestualidade, essa dança em que você precisa falar o que precisa naquela hora, não pode deixar para depois.
Perdemos essa força do contato para ter essas novas relações, para se abrir a um mundo mais diversificado, para ter mais 50 amigos nas redes sociais e entrar na vida de outras pessoas interessantes. E agora, com o isolamento, como mais ou menos esperado, a gente começa a ver a importância daquilo que ficou para trás, do que deixamos de lado.
A vida digital é legal, mas a corporal também.
Grande parte dos idosos já vive sozinha, muitos com quadros de depressão. O que poderia ser feito por eles e pelos mais jovens para diminuir esses efeitos?
O primeiro ponto que precisa ser considerado é o valor do cotidiano e da rotina para uma pessoa de terceira idade, algo diferente para os mais jovens.
Para um idoso, a ideia de ter um ciclo periódico de coisas a fazer é muito importante. Ela assegura uma experiência de permanência, de confiança no próximo capítulo. Mais ou menos assim: 'Depois que eu for ao banco, vou à feira, e então vou encontrar um amigo na padaria'.
O isolamento causa uma quebra desse cotidiano. Por isso, os idosos resistem mais a ficar isolados. Para os mais jovens, alterações de rotina são super bacanas, são uma possibilidade de inventar novidades, de quebrar com aquilo que é repetitivo e enche o saco.
Então, a reconstrução desse cotidiano dos idosos deve ser feita por filhos, netos, sobrinhos. É importante ligar para eles e introduzir uma outra conversa. Também estipular um horário e dizer: 'olha, vou te ligar às 10h em ponto e, se você não atender, vou ficar preocupado'.
A pandemia vai nos mostrar que muitos dos nossos idosos estavam desamparados, caminhando sozinhos, sem rede de proteção, porque nós, mais jovens, estávamos ocupados, trabalhando, focando as nossas coisas.
E, na outra ponta, como lidar com as crianças?
Vai ser muito difícil para elas também. As crianças são mais expostas aos efeitos de perda de relação social presencial e concreta.
Brincar com outras crianças é uma das coisas mais importantes e legais, que mais ajudam o desenvolvimento e a criatividade. Alguns gostam de brincar sozinhos também, mas em um contexto em que há outras pessoas junto. A penalização para as crianças é muito grande, porque, para elas, a compensação pelo vídeo tem muitas perdas. O pega-pega fica mais complicado, digamos.
A coisa muda um pouco para aquelas crianças um pouco mais velhas, que gostam de jogos mais estruturados, grafismo, filmes, atividades que não envolvam tanto a ludicidade corporal que está na base das crianças pequenas.
Também não dá para lidar com crianças achando que despejar litros de trabalhos escolares vai fazê-las ficar quietinhas. Isso pode funcionar por três semanas, mas depois você vai perceber que os sintomas vão ficar mais complicados.
Muitos estudos associam a falta de conexões de qualidade com outras pessoas como uma das causas para vícios e dependência química. Você acha que, caso esse isolamento se alongue por meses, esses quadros de uso abusivo de drogas podem se agravar?
Acho que sim. Mas eu colocaria outro fator: a maior parte do consumo de drogas, ou uma parte substancial dele, pode ser atribuído a uma espécie de alquimia fitoterápica para tratar transtornos mentais. O cara é um deprimido, entra na cocaína, e fica tudo bem para ele. Ele é ansioso e queima dois ou três baseados por dia.
A grande questão é: você está usando drogas por prazer ou para fugir do desprazer? Você bebe uísque, por exemplo, por que não consegue relaxar sem ele? Se sim, você está fugindo do desprazer.
O que pode acontecer é esse tipo de uso abusivo disparar consideravelmente. E você pode colocar o álcool e a nicotina nessa conta também.
Sou a favor da descriminalização completa e radical das drogas. Mas esse cenário não muda se a droga é legal ou ilegal. Há pessoas que repetem a receita de antidepressivo anos a fio, por exemplo. Aí entro na sua pergunta. O tratamento fitoterápico eficiente é a relação com o outro: compartilhar experiências, enriquecer a vida psíquica com relações produtivas e interessantes. Se você tirar o uso abusivo e colocar essas relações, vai ser muito melhor.
Você acredita que existe algum ponto positivo nesse momento? O que podemos aprender sobre nós mesmos?
Acho que há vários pontos positivos. Primeiro, nós estávamos vivendo uma aceleração da vida doentia. E, agora, desaceleramos.
O segundo ponto é que nós estávamos em uma hipertrofia narcísica, que não é só apoiada pelo mundo digital, mas também pelo modo de produção neoliberal e pela forma que inventamos certos modos de ser. A gente estava se achando muito, se achava gigante, de maneira que só existiam duas posições: 'Você está errado e eu estou com toda a verdade'.
Sabe uma reunião de pauta ou de departamento na universidade? As pessoas estão discutindo questões irrelevantes, mas, de repente, um está com um machado do Thor e outro vira a Mulher Maravilha. Os dois brigando por bobagens, mas bobagens que a gente começou a enxergar como definidoras do destino da humanidade.
De repente, apareceu um terceiro elemento, um micro-organismo, um vírus que ninguém tinha percebido e que fez todo mundo parar. Esse momento traz uma lição de humildade e solidariedade. Precisamos olhar para o lado. A coisa mais interessante dessa experiência é a ideia de repactuação de tudo. Precisa repactuar o aluguel, a proteção trabalhista, a circulação de dinheiro, o mercado financeiro.
A gente esqueceu o lastro da acumulação de capital sobre capital, muito além de qualquer referência com valor de uso e troca.
Esse é um momento ideal para repensarmos outras maneiras de realizar trocas pelo dinheiro, produção e consumo. Tivemos uma redução drástica do consumo nas últimas semanas, mas será que a situação ideal era aquela que a gente estava vivendo? A gente precisa de tudo aquilo (que consumia)? A sensação é que não.
Em algumas cidades da China, que vem retornando gradualmente à rotina normal, o número de divórcios bateu recorde. Será que as pessoas não sabiam com quem estavam casadas ou o confinamento só acentuou problemas que já existiam? Ou as duas coisas?
As duas coisas. Mas eu diria que vai acentuar o número de divórcios, mas também o de gravidez. Me lembro de uma experiência de psicologia dos anos 1970 que testou o comportamento de ratos em uma compressão territorial. Pegaram um monte de ratos e colocaram dentro de uma mesmo lugar. O resultado foi que eles só faziam duas coisas: se matavam ou copulavam.
De fato, vai haver uma reaproximação e certos defeitos vão se tornar intoleráveis. As pessoas precisam tomar muito cuidado com isso.
Nesse estado, passamos a deslizar e enovelar pensamentos, afetos e atitudes. Digamos que você comece a potencializar aquela raiva que já sentia, porque alguém pisou no seu pé. Então, você começar a pensar: 'Mas ele não só pisou, como foi de propósito'. E esse sentimento de raiva vai aumentando. Isso tende a acontecer com todos os afetos: tristeza, perseguição.
Esse cenário suprime o que seria o tratamento espontâneo para esse deslizamento e continuidade, que são os cortes da situação que produzem mudanças de humor: seu chefe pediu uma tarefa, você conversou com alguém num café. Esses cortes te fazem esquecer aquele modo mental para entrar em outro. Na situação de isolamento, isso é mais difícil.
Então, há uma tendência, sim, de maiores acirramentos e intolerâncias. Os casais que já têm seus pontos frágeis e vulneráveis tendem a se aprofundar nisso, e é possível que a coisa evolua muito mal.
Ninguém ensinou a gente como lidar com esse isolamento social...
Exato, ninguém está avisando que estamos em estados alterados de consciência.
Eu diria: não tome grandes decisões na vida, vá ao banheiro pensar na hora que vier aquela ideia ruim, conte até 152 mil. Mas, voltando aos divórcios, esses dados não são só um efeito negativo. Há uma coisa nova, importante e positiva.
É aquela mensagem básica: você pode mudar, sua forma de vida pode ser outra. A pessoa que sente o gosto do sangue e experimenta o veneno, tende a pensar: 'Se eu pude mudar para sobreviver, por que não posso mudar de novo?' É o melhor impulso para justamente se separar e procurar ser mais feliz.
Separações não são só porque os casamentos estão ruins, mas porque a gente quer mais, a gente quer outras coisas. E isso é bom, não é um efeito necessariamente negativo.
Esse tempo pode ser ideal para olhar melhor para nossas relações. Vi uma pesquisa no (jornal científico) The Lancet sobre efeitos residuais de quarentena de ebola, de H1N1 e outras epidemias. As quarentenas maiores foram de 30 dias, e os pesquisadores perceberam efeitos de até três anos em termos de estresse pós-traumático.
Então, esse isolamento vai ferrar… e não vai ser só agora, não. Vai ser lá na frente também.
Você acha que, ao final da quarentena, as pessoas vão sair de casa se importando mais com outras, ou com as relações? Ou isso vai durar apenas alguns dias?
Vão se importar um pouco mais, mas não muito mais.
Estamos vivendo um efeito conhecido na teoria do luto como barganha. Chegou um sujeito malvado no lugar, e todo mundo fala que vai se comportar daqui para frente. É uma relação benigna, mas não duradoura. Você está querendo comprar a sua culpa, como se dissesse: 'Papai do céu, me salva porque sou um bom menino'.
O que vai fazer a diferença é a história que vamos contar. As soluções e laços novos. É um momento imprevisível, não consigo imaginar a história que vai se colocar de uma maneira mais pujante.
O que pouco tem se falado é a repactualização econômica. A pandemia pode ser um pretexto óbvio para que governantes conservadores metam a faca, alegando que vivemos uma crise e cortar na carne é a solução.
Pode ser que venha um contrafluxo, dizendo que não dá mais para retirar as proteções sociais e trabalhistas desse jeito, no atacado, porque você mata as pessoas. Ou talvez a história que apareça seja um meio termo mais integrado, algo menos polarizado do que simplesmente destruir o Estado, como muita gente vinha pregando.
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Coronavírus: alguns sentem tanto medo que precisam negar o que está acontecendo, diz psicanalista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU