Alguns eventos, que periodicamente envolvem direta ou indiretamente nossas existências, estimulam opiniões e aprofundamentos úteis para entender melhor a natureza e as causas dos mesmos, junto com possíveis ações a serem tomadas. O teólogo Giannino Piana, ensaísta e autor de uma pluralidade de textos que têm a dimensão ética da condição humana como orientação de estudo predominante, investigará mensalmente um evento particularmente emblemático que ocorreu nesse meio tempo.
A entrevista é publicada por Esodo, 16-03-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis a entrevista.
O medo generalizado e explosivo despertado pela disseminação do coronavírus pareceu a muitas pessoas desproporcional à extensão do fenômeno. O que você acha?
O coronavírus colocou nosso país em uma situação sem precedentes. De repente, a Itália passou a ser um país em quarentena com medidas draconianas que mudaram o estilo de vida pessoal e o comportamento coletivo. O medo só poderia ser a consequência lógica dessa situação, agravada na realidade também pela ausência de conhecimentos precisos - o vírus ainda parece invisível e desconhecido - e por uma certa confusão nas diretrizes fornecidas pelas autoridades governamentais e pelos próprios especialistas. Mas por trás desses, que são os motivos mais imediatos, não é difícil perceber a presença de motivos mais profundos, ligados à percepção que o homem tem hoje de si mesmo e de sua presença no mundo. Os enormes sucessos adquiridos através da tecnologia o iludiram ter finalmente conseguido realizar o sonho prometeico.
O coronavírus, por sua imprevisibilidade e incontrolabilidade, teve, portanto, (e só poderia ter) um efeito desestabilizador; de fato, foi posto em xeque o mito da onipotência, a convicção de que o homem veio adquirindo o pleno domínio de si e o controle total da realidade. Diante dessa situação frustrante, o medo assume um valor antropológico: não é mais induzido por um mundo não conhecido e não dominado, como costumava acontecer no passado - o conhecimento e o domínio do mundo atingiram o nível mais alto que poderia ser conseguido -; ao contrário tem sua origem no domínio que o homem exerce em relação ao mundo.
É como dizer que o medo de externo se tornou interno; que surge da consciência da fragilidade que caracteriza a condição humana e se reflete na percepção da precariedade das decisões que o homem assume, na ambivalência de suas escolhas e de suas próprias conquistas.
Além das raízes antropológicas, também não existem fatores objetivos que explicam essa situação de medo e desestabilização? Qual a importância do fenômeno da globalização a esse respeito?
Não há dúvida de que existem por trás da situação de medo e de desestabilização assinalada, fatores que se referem à complexidade do sistema dominante. O que aconteceu com um ritmo acelerado, nas últimas décadas, é a transição de um sistema "natural" para um sistema cada vez mais "artificial", no qual a multiplicação de intervenções manipulativas, que interagem entre si com efeitos a distância não imediatamente previsíveis e avaliáveis, torna o controle do sistema cada vez mais precário.
Além disso, se acrescenta o fenômeno da globalização, da qual o coronavírus revela o aspecto dramático. A disseminação do vírus, que - como lembrou a Organização Mundial da Saúde - assumiu contornos de uma verdadeira pandemia, é o sinal de uma situação de interdependência, da qual não é possível prescindir.
Além disso, não são apenas as doenças infecciosas que tornam esse vínculo transparente; vamos pensar em como isso resulte evidente todos os dias no campo da comunicação ou – para permanecer no âmbito de uma grave pandemia de outro sinal - a rapidez com que a crise financeira de 2008 se espalhou, uma crise que envolveu todo o planeta.
Certamente, é correto ter implementado, no nível sanitário, todas as medidas necessárias para debelar o coronavírus. Mas isso não é suficiente. Também não lhe parece necessário aproveitar esta oportunidade para repensar o sistema econômico atualmente dominante em nível mundial?
Infelizmente, temo que falte coragem de seguir nessa direção. A crise do neocapitalismo é evidente há tempo, assim como o evidente fracasso de uma globalização totalmente centrada na lógica do mercado, inspirada, portanto, em critérios exclusivamente quantitativos, onde apenas contam a maximização da produtividade e do consumo e a exploração ilimitada dos recursos ambientais. Poder-se-ia esperar que a crise financeira de 2008, que não tinha apenas características conjunturais, mas estruturais e sistêmicas, fosse a ocasião para uma mudança radical. Em vez disso, o que aconteceu foi um simples e tímido ajuste do sistema, que na realidade deixou tudo como estava.
O coronavírus é o último sinal de uma situação alarmante. O fato que aqui esteja em causa um bem fundamental, como a saúde, talvez possa contribuir para o desenvolvimento de uma consciência mais ampla e um envolvimento participativo mais sério. A necessidade de atenção aos bens relacionais e à qualidade de vida, a partir de sua própria condição material, parece ter se tornado uma prioridade absoluta. Estamos diante de uma instância biopolítica à qual é preciso dar com urgência uma resposta.
O episódio do coronavírus não chama em causa apenas medidas estruturais, mas também comportamentos e estilos de vida pessoais. É um verdadeiro desafio dirigido a cada um. Como aceitá-lo, transformando a situação de grande desconforto em uma oportunidade?
A principal lição que surge da situação atual é, acima de tudo, como já foi apontado, a tomada de consciência da necessidade de acertar as contas com a fragilidade e a precariedade, enquanto realidades que pertencem de maneira constitutiva à natureza humana. É uma questão de aceitar essas limitações, não entendendo-as como frustração paralisante, mas assumindo-as como um estímulo para implementar nossa capacidade de transformação.
A obrigação de "ficar em casa" pode se tornar, nesse sentido, uma oportunidade de rever nossa abordagem à vida e ao viver juntos, para recuperar valores como a capacidade de habitar a si mesmos – silêncio e solidão favorecem processos de interiorização fundamentais para a recuperação da própria identidade verdadeira – para redescobrir a importância da proximidade e para promover um estilo de vida baseado em uma maior sobriedade.
Ao lado desses estímulos em nível pessoal, também podemos identificar incentivos para adotar novos comportamentos sociais?
Certamente acho que sim e acredito que o desafio a esse respeito seja constituído pela necessidade de desenvolver um novo impulso solidário. Os danos causados pelo coronavírus ao sistema de produção em todos os setores são conhecidos por todos. As consequências dessa crise serão pesadas, especialmente no mundo do trabalho. Por isso, é necessário um suplemento de solidariedade, com renovada atenção aos bens comuns – a saúde é o mais importante deles – garantindo-os a todos, a partir dos sujeitos mais frágeis, através de intervenções concretas inspiradas em critérios de justiça, consolidados pela presença dos valores do dom e da gratuidade.
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O coronavírus. “Estamos diante de uma instância biopolítica à qual é preciso dar com urgência uma resposta”. Entrevista com Giannino Piana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU