Por: André/Jonas | 20 Setembro 2013
No dia 19 de agosto, o Papa Francisco concedeu com exclusividade, a seguinte entrevista ao padre Antonio Spadaro, S.J., diretor da revista Civiltà Cattolica, e publicada simultaneamente em 26 revistas sob a responsabilidade de jesuítas neste dia 19 de setembro de 2013. A tradução é de André Langer e do Cepat.
Como afirma Spadaro, trata-se, na verdade de uma entrevista-conversação.
Fonte: http://bit.ly/18eCOR1 |
Eis a entrevista.
É segunda-feira, 19 de agosto. O Papa Francisco concedeu-me um espaço para uma entrevista às 10h, em Santa Marta. Eu, no entanto, talvez por herança paterna, sinto a necessidade de chegar sempre um pouco antes. As pessoas que me acolhem me fazem esperar em uma salinha. A espera dura pouco e, depois de poucos minutos, acompanham-me ao elevador. Em dois minutos me veio à memória a proposta que surgiu em Lisboa, durante uma reunião de diretores de algumas revistas da Companhia de Jesus. Ali surgiu a ideia de publicar, todas ao mesmo tempo, uma entrevista com o Papa. Falando com os outros diretores, formulamos algumas perguntas que pudessem expressar interesses comuns. Saio do elevador e vejo o Papa, que me espera já junto à porta. Na realidade, tenho a agradável impressão de não ter atravessado porta alguma.
Entro na sua sala e o Papa me convida para me sentar em uma poltrona. Seus problemas na coluna fazem com tenha que sentar em uma cadeira mais alta e rígida que a minha. O ambiente é simples e austero. Na mesinha, o espaço de trabalho é pequeno. Impressiona-me o essencial dos móveis e as outras coisas. Os livros são poucos, assim como os papéis e os objetos. Entre estes, uma imagem de São Francisco, uma estátua de Nossa Senhora de Luján, padroeira da Argentina, um crucifixo e uma estátua de São José surpreendido em sonho, muito parecida com a que vi em seu despacho de reitor e superior provincial no Colégio Máximo de San Miguel. A espiritualidade de Bergoglio não é feita de “energias em harmonia”, como ele as chamaria, mas de rostos humanos: Cristo, São Francisco, São José, Maria.
O Papa me acolhe com o mesmo sorriso que já deu voltas ao mundo e que abre os corações. Começamos a falar de muitas coisas, mas sobretudo da sua viagem ao Brasil. O Papa a considera uma verdadeira graça. Pergunto-lhe se já descansou. Ele me responde que sim, que se está bem, mas, sobretudo, que a Jornada Mundial da Juventude representou para ele um “mistério”. Diz-me que não estava acostumado a falar para tantas pessoas: “E costumo dirigir o olhar para as pessoas concretas, uma a uma, e colocar-me em contato de forma pessoal com que está à minha frente. Não sou feito para as massas”. Digo-lhe que é verdade, que se nota isso, e que a todos nos impressiona. Vê-se que, quando se encontra no meio das pessoas, na realidade coloca seus olhos sobre pessoas concretas. Como depois as câmaras projetarão as imagens e todos poderão contemplá-lo, fica livre para colocar-se em contato direto, pelos menos ocular, com quem está à sua frente. Tenho a impressão de que isto o satisfaz, isto é, poder ser quem é, não se sentir obrigado a mudar seu modo normal de se comunicar com os outros, nem sequer quando está diante de milhões de pessoas, como foi o caso na praia de Copacabana.
Antes que possa ligar o meu gravador falamos ainda de outra coisa. Comentando uma publicação minha, disse-me que os dois pensadores franceses contemporâneos de que mais gosta são Henri de Lubac e Michel de Certeau. Confesso-lhe também algo mais pessoal. E ele também começa a me falar de si e da sua eleição pontifícia. Diz-me que quando começou a dar-se conta de que poderia ser eleito – isso era na quarta-feira, 13 de março durante o almoço – sentiu que uma inexplicável e profunda paz e consolação interior o envolvia, junto com uma obscuridade total que deixava nas sombras o resto das coisas. E que estes sentimentos o acompanharam até a sua eleição.
Sinceramente, teria continuado a falar neste tom familiar por muito tempo, mas tomo as páginas com as perguntas que tenho anotadas e ligo o gravador. Antes de mais nada, agradeço-lhe em nome de todos os diretores das revistas da Companhia de Jesus que publicarão esta entrevista.
O Papa, pouco antes da audiência que concedeu aos jesuítas da La Civiltà Cattolica, me havia mencionado sua grande dificuldade para conceder entrevistas. Confessou-me que prefere pensar nas coisas mais que improvisar respostas no calor de uma entrevista. Sente que as respostas precisas lhe surgem quando já formulei a primeira: “Não me reconheci a mim mesmo quando comecei a responder aos jornalistas que me faziam suas perguntas durante o voo de volta do Rio de Janeiro”, disse. Mas é certo: ao longo desta entrevista o Papa se sentiu livre para interromper o que estava dizendo em sua resposta a uma pergunta, para acrescentar algo a uma resposta anterior. Falar com o Papa Francisco é uma espécie de fluxo vulcânico de ideias que se colam umas com às outras. O ato de fazer anotações produz em mim a desagradável sensação de estar interrompendo uma conversa espontânea. É óbvio que o Papa Francisco está mais acostumado à conversa do que à cátedra.
Quem é Jorge Mario Bergoglio?
Tenho uma pergunta preparada, mas decido não seguir o roteiro prefixado e a formulo um pouco à queima-roupa: “Quem é Jorge Mario Bergoglio?”. Fica me olhando em silêncio. Pergunto-lhe se é lícito fazer esta pergunta... Faz um gesto de aceitação e me diz: “Não sei qual possa ser a resposta mais correta... Eu sou um pecador. Esta é a melhor definição. E não se trata de um modo de falar ou um gênero literário. Sou um pecador”.
O Papa continua refletindo, concentrado, como se não tivesse esperado esta pergunta, como se fosse necessário pensá-la mais.
Sim, posso talvez dizer que sou um pouco astuto, sei mover-me, mas é verdade que sou também um pouco ingênuo. Mas a melhor síntese, aquela que me vem mais de dentro e que sinto mais verdadeira, é exatamente esta: “Sou um pecador para quem o Senhor olhou”. E repete: “Sou alguém para quem o Senhor olhou. Meu lema, 'Miserando atque eligendo’, é algo que, no meu caso, senti sempre muito verdadeiro”.
O Papa Francisco tomou este lema das homilias de São Beda o Venerável que, comentando a passagem evangélica da vocação de São Mateus, escreve: “Jesus viu o publicano e, olhando-o com amor e escolhendo-o, disse: Segue-me”.
Acrescenta: “O gerúndio latino miserando me parece intraduzível tanto no italiano como no espanhol. Eu gosto de traduzi-lo com outro gerúndio que não existe: misericordiando”.
O Papa Francisco, seguindo o fio da sua reflexão, disse-me, dando um salto cujo sentido não consegui compreender de imediato: “Eu não conheço Roma. São poucas as coisas que conheço, entre estas está Santa Maria Maior: costumava ir ali sempre”. Rindo, digo-lhe: “Todos entendemos muito bem isso, Santo Padre!”. “Bom, sim – prossegue o Papa –, conheço Santa Maria Maior, São Pedro... mas quando vinha a Roma sempre ficava em Via della Scrofa. Dali ia com frequência visitar a igreja de São Luis dos Franceses e contemplar o quadro da vocação de São Mateus de Caravaggio”. Começo a intuir o que o Papa quer me dizer.
“Esse dedo de Jesus, apontando assim... para Mateus. Assim estou eu. Assim eu me sinto. Como Mateus”. E neste momento o Papa se decide, como se tivesse captado a imagem de si mesmo que andava buscando: “Me impressiona o gesto de Mateus. Aferra-se ao seu dinheiro, como dizendo: ‘Não, não a mim” Não, este dinheiro é meu!’. Este sou eu: um pecador a quem o Senhor dirigiu o seu olhar... Foi o que disse quando me perguntaram se aceitava a escolha para Pontífice”. E murmura: “Peccator sum, sed super misericordia et infinita patientia Domini nostri Jesus Christi confisus et in spiritu penitentiae accepto”.
Por que se fez jesuíta?
Dou-me conta de que esta fórmula de aceitação é para o Papa Francisco um documento de identidade. Nada mais a acrescentar. E continuo com a pergunta que tinha preparado como sendo a primeira: “Santo Padre, o que o levou a tomar a decisão de entrar na Companhia de Jesus? O que lhe chamava a atenção na Ordem dos jesuítas?
“Queria algo mais. Mas não sabia o que era. Havia entrado no seminário. Atraíam-me os dominicanos e tinha amigos dominicanos. Mas ao final escolhi a Companhia, que cheguei a conhecer bem, ao estar o nosso seminário confiado aos jesuítas. Da Companhia me impressionaram três coisas: seu caráter missionário, a comunidade e a disciplina. E isto é curioso, porque eu sou um indisciplinado nato, nato, nato. Mas sua disciplina, seu modo de ordenar o tempo, me impressionou muito”.
“E, depois, há algo fundamental para mim: a comunidade. Havia buscado desde sempre uma comunidade. Não me via sacerdote sozinho: tenho necessidade de comunidade. E isso fica claro com o fato de ter ficado em Santa Marta: quando fui eleito, ocupava, por sorteio, o quarto 207. Este em que nos encontramos agora é um quarto de hóspedes. Decidi morar aqui, no quarto 201, porque, ao tomar posse do apartamento pontifício, senti dentro de mim um ‘não’. O apartamento pontifício do Palácio Apostólico não é luxuoso. É antigo, grande e arrumado com bom gosto, não luxuoso. Mas em resumo é como um funil ao contrário. Grande e espaçoso, mas com uma entrada verdadeiramente muito estreita. Não é possível entrar, senão a conta-gotas e eu, na verdade, sem não consigo viver pessoas por perto. Necessito viver minha vida junto com os outros”.
Enquanto o Papa fala de missão e de comunidade, me vêm à cabeça tantos documentos da Companhia de Jesus que falam de “comunidade para a missão”, e os descubro em suas palavras.
E para um jesuíta, o que significa ser papa?
Quero seguir nesta linha, e lanço ao Papa uma pergunta que parte do fato de ele ser o primeiro jesuíta eleito Bispo de Roma: “Como entende o serviço à Igreja universal, que você foi chamado a desempenhar, à luz da espiritualidade inaciana? O que significa para um jesuíta ter sido eleito Papa? Que aspecto da espiritualidade inaciana lhe ajuda mais a viver seu ministério?”.
“O discernimento”, responde o Papa Francisco. “O discernimento é uma das coisas que Inácio elaborou mais interiormente. Para ele, é um instrumento de luta para conhecer melhor o Senhor e segui-lo mais de perto. Sempre me impressionou uma máxima com a qual se costuma descrever a visão de Inácio: Non coerceri maximo, sed contineri minimo divinum est. Refleti longamente sobre esta frase a propósito do governo, de ser superior: não ter limite para o grande, mas concentrar-se no pequeno. Esta virtude do grande e do pequeno chama-se magnanimidade, e, cada um na posição que ocupa, faz com que coloquemos sempre a vista no horizonte. É fazer as coisas pequenas de cada dia com o coração grande e aberto a Deus e aos outros. É dar seu valor às coisas pequenas no marco dos grandes horizontes, os do Reino de Deus”.
“Esta máxima oferece parâmetros para adotar a postura correta no discernimento, para sentir as coisas de Deus do seu ‘ponto de vista’. Para Santo Inácio é preciso encarnar os grandes princípios nas circunstâncias de lugar, tempo e pessoas. Ao seu modo, João XXIII adotou esta atitude de governo ao repetir a máxima Omnia videre, multa disimulare, pauca corrigere porque, mesmo vendo omnia, dimensão máxima, preferia agir sobre pauca, dimensão mínima”.
“É possível ter projetos grandes e realizá-los agindo sobre coisas pequenas. Podemos usar meios fracos que são mais eficazes que os fortes, como disse São Paulo na Primeira Carta aos Coríntios”.
“Um discernimento deste tipo requer tempo. São muitos, para dar um exemplo, os que acreditam que as mudanças e a reformas podem vir em breve. Eu sou da opinião de que se necessita tempo para assentar as bases de uma mudança verdadeira e eficaz. Trata-se do tempo do discernimento. E às vezes, pelo contrário, o discernimento nos empurra a fazer já o que inicialmente pensávamos deixar para mais adiante. É o que me aconteceu nestes meses. E o discernimento se realiza sempre na presença do Senhor, sem perder de vista os sinais, ouvindo o que acontece, o sentir das pessoas, sobretudo dos pobres. Minhas decisões, inclusive as que têm a ver com a vida cotidiana, como usar um carro simples, estão ligadas a um discernimento espiritual que responde a exigências que nascem das coisas, das pessoas, da leitura dos sinais dos tempos. O discernimento no Senhor me guia no meu modo de governar”.
“Mas, olhe, eu desconfio das decisões tomadas de improviso. Desconfio sempre da primeira decisão, isto é, da primeira coisa que me vem à cabeça fazer, se tenho de tomar uma decisão. Em geral, é a decisão errada. Tenho de esperar, avaliar interiormente, tomando o tempo necessário. A sabedoria do discernimento resgata a necessária ambiguidade da vida e faz encontrar os meios mais oportunos, que nem sempre se identificam com aquilo que parece grande ou forte.”
A Companhia de Jesus
O discernimento é, portanto, um pilar da espiritualidade do Papa. Isto é algo que expressa de forma especial sua identidade de jesuíta. Em consequência, pergunto-lhe como pode a Companhia de Jesus servir à Igreja de hoje, com que características peculiares e também quais são os riscos que podem ameaçá-la.
“A Companhia é uma instituição em tensão, sempre radicalmente em tensão. O jesuíta é um descentrado. A Companhia em si mesma está descentrada: seu centro é Cristo e sua Igreja. Portanto, se a Companhia mantém Cristo e a Igreja no centro, tem dois pontos de referência em seu equilíbrio para viver na periferia. Mas se olha muito para si mesma, se coloca a si mesma no centro, achando-se muito sólida e muito bem ‘armada’, corre o perigo de se sentir segura e suficiente. A Companhia tem que ter sempre diante de si o Deus Semper maior, a busca da Maior Glória de Deus, a Igreja Verdadeira Esposa de Cristo nosso Senhor, Cristo Rei que nos conquista e ao qual oferecemos a nossa pessoa e todos os nossos esforços, ainda que sejamos vasos se argila pouco adequados. Esta tensão nos situa continuamente fora de nós mesmos. O instrumento que torna verdadeiramente forte uma Companhia descentrada é a realidade, ao mesmo tempo paterna e materna, da ‘conta de consciência’, e precisamente porque ajuda a empreender melhor a missão”.
Aqui o Papa faz referência a um ponto específico das Constituições da Companhia de Jesus, que diz que o jesuíta deve “manifestar sua consciência”, isto é, a situação interior que vive, de modo que o superior possa agir com conhecimento mais exato ao enviar uma pessoa à sua missão.
“Mas é difícil falar da Companhia – prossegue o Papa Francisco. Se somos muito explícitos, corremos o risco de nos equivocar. Da Companhia se pode falar somente de forma narrativa. Só na narração se pode fazer discernimento, não nas explicações filosóficas ou teológicas, nas quais é possível a discussão. O estilo da Companhia não é a discussão, mas o discernimento, cujo processo supõe obviamente discussão. A aura mística jamais define suas bordas, não completa o pensamento. O jesuíta deve ser pessoa de pensamento incompleto, de pensamento aberto. Houve etapas na vida da Companhia em que se viveu um pensamento fechado, rígido, mais instrutivo-ascético do que místico: esta deformação gerou o Epítome do Instituto”.
Com isto o Papa alude a uma espécie de resumo prático, em uso na Companhia e formulado no século XX, que chegou a ser considerado como um substituto das Constituições. A formação que os jesuítas recebiam sobre a Companhia, durante um certo tempo, foi modelada por este texto, de tal maneira que alguns jesuítas nunca leram as Constituições, que constituem o texto fundador. Segundo o Papa, durante este período na Companhia as regras correram o perigo de afogar o espírito, saindo vencedora a tentação de explicitar e tornar muito claro o carisma.
Prossegue: “Não. O jesuíta pensa, sempre e continuamente, com os olhos postos no horizonte em direção ao qual deve caminhar, tendo Cristo no centro. Esta é sua verdadeira força. E isto estimula a Companhia a estar em busca, a ser criativa e generosa. Por isso, hoje, mais do que nunca deve ser contemplativa na ação; tem que viver uma proximidade profunda a toda a Igreja, entendida como ‘povo de Deus’ e ‘santa mãe Igreja Hierárquica’. Isto requer muita humildade, sacrifício e coragem, especialmente quando se vive incompreensões ou quando se é objeto de equívocos ou calúnias; mas é a atitude mais fecunda. Pensemos nas tensões do passado por ocasião dos ritos chineses ou dos ritos malabares, ou o que aconteceu nas reduções do Paraguai”.
‘Eu sou testemunha de incompreensões e problemas que a Companhia viveu em tempos recentes. Entre estas estiveram os tempos difíceis em que surgiu a questão de estender o ‘quarto voto’ de obediência ao Papa a todos os jesuítas. O que me dava segurança nos tempos do padre Arrupe era que se tratava de um homem de oração, um homem que passava muito tempo em oração. Lembro quando rezava sentado no chão, como fazem os japoneses. Isso criou nele as atitudes convenientes e fez com que tomasse as decisões corretas”.
O modelo: Pedro Fabro, “Sacerdote reformado”
Neste momento me pergunto que figuras de jesuítas, desde as origens da Companhia até hoje, o terão impressionado de modo especial. E pergunto ao Pontífice se há alguns, quais são e porquê. O Papa começa citando Santo Inácio e São Francisco Xavier, mas em seguida se detém em uma figura que os jesuítas conhecem, mas que não é muito conhecida em geral: o beato Pedro Fabro (1506-1546), saboiano. Trata-se de um dos primeiros companheiros de Santo Inácio, o primeiro de todos, companheiro de quarto quando os dois eram estudantes na Sorbonne. O terceiro ocupante daquele quarto era Francisco Xavier. Pio IX o declarou beato em 5 de setembro de 1872, e está em tramitação o processo de canonização.
Cita-me uma edição do seu Memorial, cuja publicação ele mesmo encarregou, sendo superior provincial, a dois especialistas jesuítas, os padres Miguel A. Fiorito e Jaime H. Amadeo. Uma edição de que o Papa gosta especialmente é aquela preparada por Michel de Certeau. Pergunto-lhe o que lhe chama tanto a atenção em Fabro e que características mais o impressionam nele.
“O diálogo com todos, mesmo com os mais distantes e com os adversários; sua piedade simples, certa provável ingenuidade, sua disponibilidade imediata, seu atento discernimento interior, o fato de ser um homem de grandes e fortes decisões que compatibilizava com ser doce, doce...”.
Ao escutar o Papa Francisco, que vai enumerando as características pessoais de seu jesuíta preferido, compreendo até que ponto esta figura constituiu para ele um verdadeiro modelo de vida. Michel de Certeau define Fabro simplesmente com o “sacerdote reformado” para quem experiência interior, expressão dogmática e reforma estrutural eram realidades estreitamente inseparáveis. Parece-me entender, por isso, que o Papa Francisco se inspire neste tipo de reforma. Mas ele prossegue, refletindo sobre o verdadeiro rosto do fundador.
“Inácio é um místico, não um asceta. Aborrece-me muito quando ouço dizer que os Exercícios Espirituais são inacianos só porque são feitos em silêncio. A verdade é que os Exercícios podem ser perfeitamente inacianos inclusive na vida cotidiana e sem silêncio. A tendência que acentua o ascetismo, o silêncio e a penitência é um desvio que se difundiu inclusive na Companhia, especialmente no âmbito espanhol. Eu, pelo contrário, sou e me sinto mais próximo da corrente mística, a de Louis Lallement e Jean-Joseph Surin. Fabro era um místico”.
A experiência de Governo
Que tipo de experiência de governo pode fazer amadurecer a formação que recebeu o padre Bergoglio, que foi superior e superior provincial da Companhia de Jesus? O estilo de governo da Companhia implica que o superior toma as decisões, mas também que estabelece diálogo com seus “consultores”. Pergunto ao Papa: “Pensa que sua experiência de governo no passado pode ser útil para sua situação atual, à frente do governo universal da Igreja?”.
O Papa Francisco, após uma breve pausa de reflexão fica sério, mas muito sereno.
“Na minha experiência de superior na Companhia, para dizer a verdade, nem sempre me comportei assim, ou seja, fazendo as necessárias consultas. E isso não foi uma boa coisa. O meu governo como jesuíta no início tinha muitos defeitos. Estávamos num tempo difícil para a Companhia: tinha desaparecido uma inteira geração de jesuítas. Por isto, vi-me nomeado Provincial ainda muito jovem. Tinha 36 anos: uma loucura. Era preciso enfrentar situações difíceis e eu tomava as decisões de modo brusco e individualista. Sim, devo acrescentar, no entanto, uma coisa: quando entrego uma coisa a uma pessoa, confio totalmente nessa pessoa. Terá que cometer um erro verdadeiramente grande para que eu a repreenda. Mas, apesar disto, as pessoas acabam por se cansar do autoritarismo. O meu modo autoritário e rápido de tomar decisões levou-me a ter sérios problemas e a ser acusado de ser ultraconservador. Vivi um tempo de grande crise interior quando estava em Córdoba. Claro, não, não sou certamente como a Beata Imelda, mas nunca fui de direita. Foi o meu modo autoritário de tomar decisões que criou problemas.”
Fonte: http://bit.ly/18eCOR1 |
“Tudo isto que digo é experiência da vida e para dar a entender os perigos que existem. Com o tempo aprendi muitas coisas. O Senhor permitiu esta pedagogia de governo, embora tenha sido por meio de meus defeitos e meus pecados. Acontece que, como arcebispo de Buenos Aires, convocava uma reunião com os seis bispos auxiliares cada 15 dias e várias vezes ao ano com o Conselho de Presbíteros. Formulavam-se perguntas e se abria um espaço para a discussão. Isto me ajudou muito a optar pelas melhores decisões. Agora ouço algumas pessoas que me dizem: ‘Não consulte demasiado e decida’. Acredito, no entanto, que a consulta é muito importante. Os Consistórios e os Sínodos são, por exemplo, lugares importantes para tornar verdadeira e ativa esta consulta. É necessário torná-los, no entanto, menos rígidos na forma. Quero consultas reais, não formais. A consulta dos oito cardeais, este grupo outsider, não é uma decisão simplesmente minha, mas é fruto da vontade dos cardeais, tal como foi expressa nas Congregações Gerais antes do Conclave. E quero que seja uma consulta real, não formal”.
“Sentir com a Igreja”
Não abandono o tema da Igreja e tento compreender o que significa exatamente para o Papa Francisco o “sentir com a Igreja” de que escreve Santo Inácio em seus Exercícios Espirituais. O Papa responde sem duvidar, partindo de uma imagem.
“Uma imagem de Igreja que me compraz é aquela do povo santo, fiel a Deus. É a definição que uso com frequência e, por outro lado, é da Lumen Gentium em seu número 12. A pertença a um povo tem um forte valor teológico: Deus, na história da salvação, salvou um povo. Não existe identidade plena sem pertença a um povo. Ninguém se salva sozinho, como indivíduo isolado, mas que Deus nos atrai tomando em conta a complexa trama de relações interpessoais que se estabelecem na comunidade humana. Deus entra nesta dinâmica popular”.
“O povo é sujeito. E a Igreja é o povo de Deus a caminho através da história, com alegrias e dores. Sentir com a Igreja, portanto, para mim, quer dizer estar neste povo. E o conjunto de fiéis é infalível quando acredita, e manifesta esta sua infalibilidade ao crer, mediante o sentido sobrenatural da fé de todo o povo que caminha. Esta é a minha maneira de entender o sentir com a Igreja de que fala Santo Inácio. Quando o diálogo entre as pessoas e os bispos e o Papa segue esta linha e é leal, está assistido pelo Espírito Santo. Não se trata, portanto, de um sentir referido aos teólogos”.
“É como com Maria: se se quiser saber quem é, pergunta-se aos teólogos; se se quiser saber como amá-la, é necessário perguntar ao povo. Por sua vez, Maria amou Jesus com coração de povo, como lemos no Magnificat. Não é preciso sequer pensar que a compreensão do sentir com a Igreja esteja ligada somente ao sentir com a sua parte hierárquica.”
O Papa, após um momento de pausa, precisa de maneira seca, para evitar ser mal-entendido: “Obviamente, é preciso ter cuidado para não pensar que esta infallibilitas de todos os fiéis, da qual falei à luz do Concílio, seja uma forma de populismo. Não: é a experiência da ‘santa mãe Igreja hierárquica’, como Santo Inácio a chamava, da Igreja como povo de Deus, pastores e povo juntos. A Igreja é a totalidade do povo de Deus”.
“Eu vejo a santidade no povo de Deus, sua santidade cotidiana. Existe uma ‘classe média da santidade’ da qual todos podemos fazer parte, aquela de que fala Malègue”.
O Papa refere-se a Joseph Malègue, escritor francês muito do seu agrado, nascido em 1876 e morto em 1940. Em particular a sua trilogia incompleta Pierres noires: Les Classes moyennes du Salut. Alguns críticos franceses definiram-no como “o Proust católico”.
“Vejo a santidade – prossegue o Papa – no povo de Deus paciente: uma mulher que cria os seus filhos, um homem que trabalha para levar o pão para casa, os doentes, os sacerdotes anciãos tantas vezes feridos, mas sempre com seu sorriso porque serviram o Senhor, as religiosas que tanto trabalham e que vivem uma santidade escondida. Esta é, para mim, a santidade comum. Eu associo frequentemente a santidade à paciência: não só a paciência como hypomoné, o encarregar-se dos acontecimentos e das circunstâncias da vida, mas também como constância para seguir em frente no dia a dia. Esta é a santidade da Igreja militante de que fala o próprio Santo Inácio. Esta era a santidade dos meus pais: de meu pai, da minha mãe, da minha avó Rosa, que tanto bem fez. Carrego no breviário o testamento da minha avó Rosa, e o leio frequentemente: porque para mim é como uma oração. É uma santa que sofreu muito, inclusive moralmente, e seguiu corajosamente sempre em frente”.
“Esta Igreja com que devemos sentir é a casa de todos, não uma capelinha na qual cabe só um grupinho de pessoas seletas. Não podemos reduzir o seio da Igreja universal a um ninho protetor de nossa mediocridade. E a Igreja é Mãe – prossegue. A Igreja é fecunda, deve sê-lo... Olhe, quando percebo comportamentos negativos em ministros da Igreja ou em consagrados ou consagradas, a primeira coisa que me ocorre é: ‘um solteirão’, ‘uma solteirona’. Não são nem pais nem mães. Não foram capazes de dar vida. E, no entanto, quando, por exemplo, leio a vida dos missionários salesianos que foram para a Patagônia, leio uma história de vida e de fecundidade”.
“Outro exemplo destes dias: vi que os jornais ecoaram bastante um telefonema que dei a um jovem que me havia escrito uma carta. Telefonei-lhe porque aquela carta era muito bonita, muito simples. Para mim, representou um ato de fecundidade. Dei-me conta de que se tratava de um jovem que está crescendo, que reconheceu o seu pai e lhe conta, sem mais, algo da sua vida. O pai não pode lhe dizer, simplesmente, ‘não tenho nada a ver com isso’. Esta fecundidade me fez muito bem”.
Igrejas jovens e Igrejas antigas
Sigo com o tema da Igreja, e dirijo ao Papa uma pergunta à luz da recente Jornada Mundial da Juventude. “Este enorme evento colocou sob os refletores os jovens, mas também sobre aqueles ‘pulmões espirituais’ que são as igrejas de instituição mais recente. Que esperanças para a Igreja universal lhe parecem que podem surgir destas Igrejas?”
“As Igrejas jovens conseguem uma síntese de fé, cultura e vida em progresso diferente da que conseguem as Igrejas mais antigas. Para mim, a relação entre as Igrejas de tradição mais antiga e as mais recentes se parece com a relação que existe entre jovens e anciãos em uma sociedade: constroem o futuro, uns com sua força e os outros com sua sabedoria. O risco está sempre presente, é óbvio; as Igrejas mais jovens correm o perigo de se sentirem auto-suficientes, e as mais antigas de quererem impor aos jovens seus modelos culturais. Mas o futuro se constrói unidos”.
É a Igreja um hospital de campanha?
O Papa Bento XVI, ao anunciar sua renúncia ao pontificado, descrevia um mundo atual submetido a rápidas mudanças e agitado por questões de enorme importância para a vida de fé, que reclamam grande vigor de corpo e de alma. Pergunto ao Papa, também à luz do que acaba de dizer: “De que a Igreja tem maior necessidade neste momento histórico? Necessita de reformas? Quais seriam seus desejos para a Igreja dos próximos anos? Que Igreja ‘sonha’?”.
O Papa Francisco, referindo-se ao começo da minha pergunta, começa dizendo: “O Papa Bento realizou um ato de santidade, de grandeza e de humildade. É um homem de Deus”. Mostrando assim um grande afeto e grande estima por seu predecessor.
“Aquilo de que a Igreja mais precisa hoje é a capacidade de curar as feridas e de aquecer o coração dos fiéis, a proximidade. Vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha. É inútil perguntar a um ferido grave se tem o colesterol ou o açúcar altos. Devem curar-se as suas feridas. Depois podemos falar de tudo o resto. Curar as feridas, curar as feridas... E é necessário começar de baixo.”
“A Igreja por vezes encerrou-se em pequenas coisas, em pequenos preceitos. O mais importante, no entanto, é o primeiro anúncio: ‘Jesus Cristo te salvou’. E os ministros da Igreja devem ser, acima de tudo, ministros de misericórdia. O confessor, por exemplo, corre sempre o risco de ser ou demasiado rigorista ou demasiado laxista. Nenhum dos dois é misericordioso, porque nenhum dos dois toma verdadeiramente a seu cargo a pessoa. O rigorista lava as mãos porque remete-o para o mandamento. O laxista lava as mãos dizendo simplesmente ‘isto não é pecado’ ou coisas semelhantes. As pessoas têm de ser acompanhadas, as feridas têm de ser curadas.”
“Como estamos tratando o povo de Deus? Sonho com uma Igreja Mãe e Pastora. Os ministros da Igreja devem ser misericordiosos, tomar a seu cargo as pessoas, acompanhando-as como o bom samaritano que lava, limpa, levanta o seu próximo. Isto é Evangelho puro. Deus é maior que o pecado. As reformas organizativas e estruturais são secundárias, isto é, vêm depois. A primeira reforma deve ser a da atitude. Os ministros do Evangelho devem ser capazes de aquecer o coração das pessoas, de caminhar na noite com elas, de saber dialogar e mesmo de descer às suas noites, na sua escuridão, sem perder-se. O povo de Deus quer pastores e não funcionários ou ‘clérigos burocratas’. Os bispos, especialmente, devem ser homens capazes de apoiar com paciência os passos de Deus em seu povo, de modo que ninguém fique para trás, assim como acompanhar o rebanho, com seu olfato para encontrar pastagens novas”.
“Em vez de ser apenas uma Igreja que acolhe e recebe, tendo as portas abertas, procuremos ser uma Igreja que encontra novos caminhos, que é capaz de sair de si mesma e ir ao encontro de quem não a frequenta, de quem a abandonou ou lhe é indiferente. Quem a abandonou fê-lo, por vezes, por razões que, se forem bem compreendidas e avaliadas, podem levar a um regresso. Mas é necessário audácia, coragem.”
Recolho o que o Santo Padre está dizendo para falar daqueles cristãos que vivem situações irregulares para a Igreja, ou diversas situações complexas; cristãos que, de um modo ou de outro, mantêm feridas abertas. Penso nos divorciados em segunda união, em casais homossexuais e em outras situações difíceis. Como fazer pastoral missionária nestes casos? Onde encontrar um ponto de apoio? O Papa dá a entender com um gesto que compreendeu o que quero dizer e me responde:
“Temos que anunciar o Evangelho em todas as partes, pregando a boa notícia do Reino e curando, também com a nossa pregação, todo tipo de ferida e qualquer doença. Em Buenos Aires recebia cartas de pessoas homossexuais que são verdadeiros ‘feridos sociais’, porque me dizem que sentem que a Igreja sempre as condenou. Mas a Igreja não quer fazer isso. Durante o voo em que voltava do Rio de Janeiro disse que se uma pessoa homossexual tem boa vontade e busca a Deus, quem sou eu para julgá-la? Ao dizer isto disse o que diz o Catecismo. A religião tem o direito de expressar suas próprias opiniões a serviço das pessoas, mas Deus, na criação, nos fez livres: não é possível uma ingerência espiritual na vida pessoal. Certa vez uma pessoa, para me provocar, me perguntou se eu aprovava a homossexualidade. Eu, então, lhe respondi com outra pergunta: ‘Me diz, Deus, quando olha para uma pessoa homossexual, aprova sua existência com afeto ou a rechaça e a condena?’. Devemos sempre ter presente a pessoa. E aqui entramos no mistério do ser humano. Nesta vida Deus acompanha as pessoas e é nosso dever acompanhá-las a partir de sua condição. Devemos acompanhá-las com misericórdia. Quando isso acontece, o Espírito Santo inspira ao sacerdote a palavra oportuna”.
“Esta é a grandeza da confissão: que se avalie caso a caso, que se pode discernir o que é o melhor para uma pessoa que busca a Deus e sua graça. O confessionário não é uma sala de tortura, mas aquele lugar de misericórdia em que o Senhor nos impele a fazer o melhor que podemos. Estou pensando na situação de uma mulher que tem nas suas costas o fracasso de um casamento em que se deu também um aborto. Depois daquilo esta mulher se casou novamente e agora vive em paz com cinco filhos. O aborto pesa enormemente e está sinceramente arrependida. Gostaria de retomar a vida cristã. O que faz o confessor?”
“Não podemos seguir insistindo apenas em questões referentes ao aborto, ao casamento homossexual ou ao uso de anticoncepcionais. É impossível. Eu falei muito sobre estas questões e recebi reprovações por isso. Mas quando se fala destas coisas é preciso fazê-lo em um contexto. Além disso, já conhecemos a opinião da Igreja e eu sou filho da Igreja, mas não é necessário estar falando destas coisas sem cessar”.
“Os ensinamentos da Igreja, sejam dogmáticos ou morais, não são todos equivalentes. Uma pastoral missionária não deve ficar obcecada para transmitir de modo desestruturado um conjunto de doutrinas para impô-las insistentemente. O anúncio missionário se concentra no essencial, no necessário, que, por outro lado, é o que mais apaixona e atrai, o que mais faz arder o coração, como aos discípulos de Emaús”.
“Temos, portanto, que encontrar um novo equilíbrio, porque de outra maneira o edifício moral da Igreja corre o risco de cair como um castelo de cartas, de perder o frescor e o perfume do Evangelho. A proposta evangélica deve ser mais simples, mais profunda e irradiante. Só desta proposta surgem depois as consequências morais.”
“Digo isto pensando também na pregação e nos conteúdos da nossa pregação. Uma boa homilia, uma verdadeira homilia, deve começar com o primeiro anúncio, com o anúncio da salvação. Não há nada mais sólido, profundo e seguro que este anúncio. Depois virá uma catequese. Depois se poderá extrair algumas consequências morais. Mas o anúncio do amor salvífico de Deus é prévio à obrigação moral e religiosa. Hoje parece, às vezes, que prevalece a ordem inversa. A homilia é a pedra de toque se se quer medir a capacidade do encontro de um pastor com seu povo, porque quem prega tem que reconhecer o coração da sua comunidade para buscar onde permanece vivo e ardente o desejo de Deus. Por isso, a mensagem evangélica não pode ficar reduzida a alguns aspectos que, mesmo sendo importantes, não manifestam sozinhos o coração do ensinamento de Jesus”.
O primeiro papa religioso após 182 anos...
O Papa Francisco é o primeiro Pontífice que provém de uma ordem religiosa depois do camaldulense Gregório XVI, eleito em 1831, há 182 anos. Assim, pois, pergunto: “Que lugar específico ocupam, hoje, na Igreja, os religiosos e as religiosas?”.
“Os religiosos são profetas. São os que escolheram um modo de seguir Jesus que imita sua vida com a obediência ao Pai, a pobreza, a vida de comunidade e a castidade. Neste sentido, os votos não podem acabar se convertendo em caricatura, porque quando isso acontece, por exemplo, a vida de comunidade se torna um inferno e a castidade uma vida de solteirões. O voto de castidade deve ser um voto de fecundidade. Na Igreja os religiosos são chamados especialmente a ser profetas que dão testemunho de como se vive Jesus neste mundo, e que anunciam como será o Reino de Deus quando chegar a sua perfeição. Um religioso nunca deve renunciar à profecia. O que não significa atitude de oposição à parte hierárquica da Igreja, embora função profética e estrutura hierárquica não concordem. Estou falando de uma proposta positiva, que não deve ser realizada com temor. Pensemos no que fizeram tantos grandes santos da vida monástica, religiosos e religiosas, desde os tempos de Santo Antonio Abade. Ser profeta implica, às vezes, fazer barulho, não sei como dizer... A profecia cria alvoroço, estrondo, alguém diria que cria ‘grande confusão’. Mas, na realidade, seu carisma é se fermento: a profecia anuncia o espírito do Evangelho”.
Dicastérios romanos, sinodalidade, ecumenismo
Partindo da alusão à hierarquia, neste momento pergunto ao Papa: “O que pensa dos dicastérios romanos?”
“Os dicastérios romanos estão a serviço do Papa e dos bispos: têm que ajudar as Igrejas particulares e as conferências episcopais. São instâncias de ajuda. Mas, em alguns casos, quando não são bem entendidos, correm o risco de se converterem em organismos de censura. Impressiona ver as denúncias de falta de ortodoxia que chegam a Roma. Penso que quem deve estudar os casos são as conferências episcopais locais, às quais Roma pode servir de valiosa ajuda. A verdade é que os casos são tratados melhor no próprio local. Os dicastérios romanos são mediadores, não intermediários nem gestores.”
Lembro ao Papa que em 29 de junho passado, durante a cerimônia de bênção e imposição dos pálios aos 34 arcebispos metropolitanos, definiu “a via da sinodalidade” como o caminho que leva à Igreja unida “a crescer em harmonia com o serviço do primado”. Em consequência, minha pergunta é esta: “Como conciliar harmonicamente primado e solidariedade? Que caminhos são praticáveis, inclusive na perspectiva ecumênica?”.
“Devemos caminhar juntos: as pessoas, bispos e o Papa. devemos viver a sinodalidade em vários níveis. Talvez seja tempo de mudar a metodologia do sínodo, porque a atual parece-me estática. Isto poderá também ter valor ecumênico, especialmente com os nossos irmãos ortodoxos. Deles se pode aprender mais sobre o sentido da colegialidade episcopal e sobre a tradição da sinodalidade. O esforço de reflexão comum, vendo o modo como se governava a Igreja nos primeiros séculos, antes da ruptura entre Oriente e Ocidente, dará frutos a seu tempo. Nas relações ecumênicas isto é importante: não só conhecer-se melhor, mas também reconhecer o que o Espírito semeou nos outros como um dom também para nós. Quero prosseguir a reflexão sobre como exercitar o primado petrino, já iniciada em 2007 pela Comissão Mista, e que levou à assinatura do documento de Ravena. É preciso continuar neste caminho.”
Procuro captar como o Papa vê o futuro da unidade da Igreja. Ele me responde: “Temos que caminhar unidos nas diferenças: não existe outro caminho para nos unirmos. O caminho de Jesus é esse”.
E o papel da mulher na Igreja? O Papa referiu-se mais de uma vez a este tema diversas oportunidades. Em uma entrevista afirmou que a presença feminina na Igreja apenas se faz notar, porque a tentação do machismo não deixou espaço para tornar visível o papel que corresponde à mulher na comunidade. Retomou o tema durante a viagem de volta do Rio de Janeiro, afirmando que ainda não se fez uma teologia profunda da mulher. Pergunto-lhe: “Qual deve ser o papel da mulher na Igreja? O que fazer hoje para lhe dar maior visibilidade?”.
“É necessário ampliar os espaços de uma presença feminina mais incisiva na Igreja. Temo a solução do “machismo de saias”, porque, na verdade, a mulher tem uma estrutura diferente do homem. E, pelo contrário, os argumentos que ouço sobre o papel da mulher são muitas vezes inspirados precisamente numa ideologia machista. As mulheres têm vindo a colocar perguntas profundas que devem ser tratadas. A Igreja não pode ser ela própria sem a mulher e o seu papel. A mulher, para Igreja, é imprescindível. Maria, uma mulher, é mais importante que os bispos. Digo isto, porque não se deve confundir a função com a dignidade. É necessário, pois, aprofundar melhor a figura da mulher na Igreja. É preciso trabalhar mais para fazer uma teologia profunda da mulher. Só realizando esta etapa se poderá refletir melhor sobre a função da mulher no interior da Igreja. O gênio feminino é necessário nos lugares em que se tomam as decisões importantes. O desafio hoje é exatamente esse: refletir sobre o lugar específico da mulher, precisamente também onde se exerce a autoridade nos vários âmbitos da Igreja.”
O Concílio Vaticano II
O que fez o Concílio Vaticano II? O que foi, na realidade? Dirijo-lhe esta pergunta à luz das afirmações que acaba de fazer, imaginando uma resposta longa e organizada. E, no entanto, tenho a impressão de que o Papa considera o Concílio um fato tão incontestável que não vale a pena dedicar muito tempo confirmando sua importância.
“O Vaticano II supôs uma releitura do Evangelho à luz da cultura contemporânea. Produz um movimento de renovação que vem simplesmente do próprio Evangelho. Os frutos são enormes. Basta recordar a liturgia. O trabalho de reforma litúrgica prestou um serviço ao povo, relendo o Evangelho a partir de uma situação histórica completa. Sim, há linhas de continuidade e de descontinuidade, mas uma coisa é clara: a dinâmica de leitura do Evangelho atualizada para hoje, própria do Concílio, é absolutamente irreversível. Em seguida, existem algumas questões concretas, como a liturgia segundo o “Vetus Ordo”. Penso que a decisão do papa Bento foi ditada pela prudência, procurando ajudar algumas pessoas que tem essa sensibilidade particular. O que considero preocupante é o perigo de ideologização, de instrumentalização do “Vetus Ordo”.
Procurar e encontrar Deus em todas as coisas
O discurso do papa Francisco se inclina para a abertura, quando fala dos desafios que enfrentamos hoje. Há alguns anos, escrevia que para ver a realidade é preciso um olhar de fé, porque, de outro modo, contempla-se uma realidade fragmentada, dividida. Este é um dos temas da encíclica “Lumen fidei”. Tenho presente algumas passagens dos discursos do papa Francisco durante a Jornada Mundial da Juventude, no Rio de Janeiro. Cito-as: “Deus é real, caso se manifesta em nosso hoje”, “Deus está em todas as partes”. São frases que fazem eco da expressão inaciana “procurar e encontrar Deus em todas as coisas”.
Pergunto ao Papa: “Santidade, como se faz para procurar e encontrar Deus em todas as coisas?”
“O que eu disse no Rio tem um valor temporal. É verdade que temos a tentação de procurar Deus no passado ou no que acreditamos que possa ocorrer no futuro. Certamente, Deus está no passado porque está nas pegadas que foi deixando. E está também no futuro como promessa. Porém, o Deus ‘concreto’, para dizer assim, é hoje. Por isso, as lamentações jamais nos ajudam a encontrar a Deus. As lamentações que se ouvem hoje sobre como vai este mundo ‘bárbaro’ acabam gerando na Igreja desejos de ordem, entendido como pura conservação, como defesa. Não: é preciso encontrar Deus em nosso hoje”.
“Deus se manifesta numa revelação histórica, no tempo. É o tempo que inicia os processos, o espaço os cristaliza. Deus se encontra no tempo, nos processos em curso. Não se deve dar preferência aos espaços de poder frente aos tempos, às vezes longos, dos processos. Devemos colocar em marcha processos, mais do que ocupar espaços. Deus se manifesta no tempo e está presente nos processos da história. Isto nos faz preferir as ações que geram novas dinâmicas. E exige paciência e espera”.
“Encontrar Deus em todas as coisas não é um “eureka” empírico. No fundo, quando desejamos encontrar Deus, gostaríamos de constatá-lo imediatamente pelos meios empíricos. Contudo, assim, não se encontra Deus. Ele é encontrado na brisa rápida de Elias. Os sentidos capazes de perceber Deus são aqueles que Inácio chama de ‘sentidos espirituais’. Inácio quer que nos abramos à sensibilidade espiritual, para assim encontrarmos Deus para além de um contato puramente empírico. É preciso uma atitude contemplativa: é o sentimento daquele que vai pelo bom caminho da compreensão e do afeto frente às coisas e as situações. Os sinais de que estamos nesse bom caminho são a paz profunda, a consolação espiritual, o amor de Deus e de todas as coisas em Deus”.
Certezas e erros
Se o encontro com Deus em todas as coisas não é um “eureka empírico” – digo ao Papa – e se, portanto, trata-se de um caminho que vai lendo a história, é possível cometer erros...
“Sim, este buscar e encontrar Deus em todas as coisas deixa sempre uma margem à incerteza. Deve deixá-la. Se uma pessoa diz que encontrou Deus com uma certeza total e nem lhe surge uma margem de incerteza, algo não caminha bem. Eu tenho isto como uma chave importante. Se alguém tem respostas para todas as perguntas, estamos diante de uma prova de que Deus não está com ele. Quer dizer que é um falso profeta, que usa a religião em benefício próprio. Os grandes guias do povo de Deus, como Moisés, sempre deram espaço à dúvida. Temos que ter espaço para o Senhor, não para nossas certezas, devemos ser humildes. Em todo discernimento verdadeiro, aberto à confirmação da consolação espiritual, está presente a incerteza”.
“O risco que existe, pois, no buscar e encontrar Deus em todas as coisas, está nos desejos de ser muito explícito, de dizer com certeza humana e com arrogância: ‘Deus está aqui’. Assim, encontraríamos somente um Deus à nossa medida. A atitude correta é a agostiniana: buscar a Deus para encontrá-lo, para buscá-lo sempre. Esta é a experiência dos grandes Pais da fé, nosso modelo. É necessário reler o capítulo 11 da Carta aos Hebreus. Abraão, pela fé, partiu sem saber para onde ia. Todos nossos antepassados na fé morreram tendo diante dos olhos os bens prometidos, mas muito distante... A vida não nos foi entregue como um roteiro no qual tudo já está escrito, mas consiste em andar, caminhar, fazer, buscar, ver... É preciso embarcar na aventura da busca do encontro e do deixar-se buscar e deixar-se encontrar por Deus”.
“Porque Deus vem primeiro, vem sempre primeiro, Deus “primerea”. Deus é um pouco como a flor da amendoeira de sua Sicília, Antonio, que é sempre a primeira a aparecer. Assim o lemos nos profetas. Portanto, a Deus se encontra caminhando, no caminho. E ao ser ouvido por alguém, poderia se dizer que isto é relativismo. É relativismo? Sim, caso se entenda no sentido bíblico, segundo o qual Deus é sempre uma surpresa e jamais se sabe onde e como encontrá-lo, porque não é você quem fixa o tempo, nem o lugar para encontrar-se com Ele. É preciso discernir o encontro. E, por isso, o discernimento é fundamental”.
“Um cristão restauracionista, legalista, que deseja tudo claro e seguro, não irá encontrar nada. A tradição e a memória do passado têm que nos ajudar a reunir o valor necessário para abrir novos espaços para Deus. Aquele que hoje sempre busca soluções disciplinares, aquele que tende à ‘segurança’ doutrinal de modo exagerado, o que busca obstinadamente recuperar o passado perdido, possui uma visão estática e involutiva. E assim a fé se torna uma ideologia entre tantas outras. De minha parte, tenho uma certeza dogmática: Deus está na vida de toda pessoa. Deus está na vida de cada um. E mesmo se a vida de uma pessoa foi um desastre, mesmo que os vícios, a droga ou qualquer outra coisa a tenham destruído, Deus está presente. Pode-se e deve-se buscar a Deus em qualquer vida humana. Ainda que a vida de uma pessoa seja um terreno cheio de espinhos e ervas daninhas, sempre abriga um espaço onde pode crescer a boa semente. É necessário confiar em Deus”.
Devemos ser otimistas?
Estas palavras do Papa me recordam algumas reflexões suas de tempos atrás, nas quais o então cardeal Bergoglio escrevia que Deus vive já na cidade, misturado vitalmente com todos e unido com cada um. É outro modo de dizer, parece-me, o que escreve santo Inácio nos Exercícios Espirituais, quando diz que Deus “trabalha e labora” em nosso mundo. Pergunto-lhe: “Devemos ser otimistas? Que sinais de esperança há no mundo atual? Como fazemos para ser otimistas num mundo em crise?”
“Não gosto muito da palavra ‘otimismo’ porque expressa uma atitude psicológica. Gosto mais de usar a palavra ‘esperança’, tal como se lê no capítulo 11 da Carta aos Hebreus que citei mais acima. Os Padres persistiram caminhando em meio a grandes dificuldades. A esperança não engana, conforme lemos na Carta aos Romanos. Pense no primeiro enigma da ópera de Turandot, de Puccini”, disse-me o Papa.
Nisto, fiz memória, para recordar, dos versos daquele enigma da princesa, que tem como solução a esperança: ‘Na escuridão da noite voa um irisado fantasma./Sobe e abre as asas/Sobre a negra infinita humanidade./Todos o invocam/e todos o imploram./Porém, o fantasma desaparece com a aurora/Para renascer no coração./Toda noite nasce/e todo dia morre!’ São versos que revelam o desejo de uma esperança que, no entanto, é um fantasma irisado que desaparece com a aurora.
“Pois bem – prossegue o papa Francisco -, na esperança cristã não é um fantasma e não engana. É uma virtude teologal e, em definitivo, um presente de Deus que não pode ser reduzida a um otimismo meramente humano. Deus não frauda a esperança, nem pode trair a si mesmo. Deus é todo promessa”.
A arte e a criatividade
Fiquei tocado pela alusão do Papa a Turandot, falando do mistério da esperança. Gostaria de compreender um pouco mais quais são suas coordenadas artísticas e literárias. Recordo-lhe que, em 2006, dizia que os grandes artistas sabem como apresentar com beleza as realidades trágicas e dolorosas da vida. E pergunto-lhe quais são seus artistas e escritores preferidos, se possuem algo em comum...
“Sou apaixonado por autores muito diferentes entre si. Amo muitíssimo Dostoievski e Hölderlin. De Hölderlin gosto de recordar aquela poesia tão bela para o aniversário da avó, que me fez tanto bem espiritual. É aquela que termina com o verso ‘Que o homem mantenha o que o garoto prometeu’. Impressionou-me porque queria muito bem minha avó Rosa e nessa poesia Hölderlin coloca sua avó junto a Maria, a gerou Jesus, que é considerado por ele o amigo da terra que não considerou estrangeiro a nenhum vivente. Li “I Promessi sposi” três vezes e agora o tenho sobre a mesa para voltar a ler. Manzoni me deu muito. Minha avó me fazia, quando menino, memorizar o início de “I Promessi sposi”: ‘Quel ramo del lago di Como, che volge a mezzogiorno, tra due catene non interrotte di monti...’. Também gosto muito de Gerard Manley Hopkins”.
“Na pintura admiro Caravaggio: suas telas me falam. Porém, também Chagall com sua ‘Crucifixão branca’...” (Ilustração: http://migre.me/g9fSw)
“Na música, amo Mozart, obviamente. Aquele ‘Et Incarnatus est’ da sua Missa em Dó é insuperável: leva-o a Deus! Encanta-me Mozart interpretado por Clara Haskil. Mozart me enche: não posso pensá-lo, preciso senti-lo.
A Beethoven gosto de escutar, mas prometeicamente. E o intérprete mais prometeico para mim é Furtwängler.
E, depois, as Paixões de Bach. A passagem de Bach que gosto muito é o “Erbarme Dich”, o pranto de Pedro da Paixão segundo São Mateus. Sublime.
Depois, em nível diferente, não da mesma intimidade, gosto de Wagner. Gosto de escutá-lo, mas não sempre. A Tetralogia do anel, dirigida por Furtwängler, na Scala, no ano de 1950, é o que há de melhor. Sem esquecer Parsifal, dirigido em 1962, por Knappertsbusch”.
“Deveríamos começar a falar de cinema. “La Strada” de Fellini é talvez o filme que eu mais tenha gostado. Identifico-me com esse filme, no qual há uma referência implícita a são Francisco. Depois, creio ter visto todos os filmes de Anna Magnani e Aldo Fabrizi, quando tinha entre 10 e 12 anos. Outro filme que gostei muito foi “Roma cittá aperta”. Devo minha cultura cinematográfica, sobretudo, aos meus pais, que nos levavam muito ao cinema”.
“Em geral posso dizer que gosto dos artistas trágicos, especialmente os mais clássicos. Há uma bela definição que Cervantes coloca na boca do bacharel Carrasco fazendo o elogio da história de Dom Quixote: ‘Os meninos a possui nas mãos, os jovens as leem, os adultos a entendem, os velhos a elogiam’. Esta pode ser para mim uma boa definição do que são os clássicos”.
Percebo que todas estas citações do Papa me absorvem e que gostaria de entrar em sua vida pela porta de suas preferências artísticas. Seria, imagino, um longo itinerário. Incluiria o cinema, desde o neorrealismo italiano a “Festa de Babette”. Vem-me à mente outros autores e outras obras que ele citou em outras ocasiões, talvez menores ou menos conhecidas ou locais, de “Martín Fierro” de José Hernández à poesia de Nino Costa, como “O grande êxodo” de Luigi Orsenigo. Penso também em Joseph Malègue e José María Pemán. E obviamente em Dante e Borges, como também em Leopoldo Marechal, o autor de “Adán Buenosayres”, “El Banquete de Severo Arcángelo” e “Megafón ou a guerra”.
Penso em Borges porque Bergoglio, então professor de literatura aos vinte e oito anos no Colégio da Imaculada de Santa Fé, conheceu-o pessoalmente. Bergoglio ensinava nos dois últimos anos do liceu, quando iniciou seus alunos na escrita criativa. Eu mesmo tive uma experiência parecida à sua, quando tinha sua idade, no Instituto Massimo de Roma, fundando “BombaCarta”, e conto para ele. Por fim, peço ao Papa que narre a sua experiência.
“Foi uma coisa um pouco atrevida – responde -. Queria encontrar uma maneira para que meus alunos estudassem “El Cid”. Contudo, não agradava os meninos. Pediam-me para ler García Lorca. Então, decidi que estudassem “El Cid” em casa e que na sala eu falaria dos autores que mais gostassem. Naturalmente, os meninos queriam ler obras literárias mais ‘picantes’, contemporâneas, como “La casada infiel” ou clássicas, como “La Celestina” de Fernando de Rojas. Entretanto, lendo estas coisas que eram mais atrativas para eles, passavam a gostar de literatura e poesia em geral, e iam para outros autores. Para mim foi uma grande experiência. Pude concluir o programa, embora de forma não estruturada, ou seja, não segundo a ordem prevista, mas seguindo o que ia aparecendo com naturalidade, a partir da leitura dos autores. Esta modalidade me cabia muito bem: não era de meu agrado fazer uma programação rígida, mas de saber mais ou menos onde gostaria de chegar. E, então, comecei a fazer-lhes escrever. Por fim, decidi pedir para Borges que lesse duas narrativas escritas por meus meninos. Conhecia a sua secretária, que me havia dado aulas de piano. Borges gostou muito e se propôs a escrever a introdução de uma coletânea”.
“Então, Santo Padre, para a vida de uma pessoa é importante a criatividade?”, pergunto-lhe. Sorri e me responde: “Para um jesuíta é enormemente importante! Um jesuíta deve ser criativo”.
Fronteiras e laboratórios
Criatividade, pois, é importante para um jesuíta. O papa Francisco, quando recebeu os padres e colaboradores de “La Civiltà Cattolica”, havia enunciado outras três características importantes para o trabalho cultural do jesuíta. Retorno à lembrança daquele dia, 14 de junho passado. Recordo que, então, na conversa que tivemos, prévio ao encontro com todo o grupo, já havia me anunciado: diálogo, discernimento e fronteira. E tinha insistido, em especial, no último ponto, citando-me Paulo VI, que num famoso discurso havia falado sobre os jesuítas: “Onde quer que, na Igreja, também nos campos mais difíceis e de vanguarda, nas encruzilhadas das ideologias e nas trincheiras sociais, tenha havido e haja o confronto entre as exigências ardentes do homem e a mensagem perene do Evangelho, lá estiveram e estão presentes os jesuítas”.
Peço ao papa Francisco que me esclareça um pouco: Tem nos pedido que estejamos atentos para não cair ‘na tentação de domesticar as fronteiras: é preciso ir ao encontro das fronteiras, e não trazer as fronteiras para casa para lhe dar um verniz e domesticá-las’. Ao que se referia? O que queria nos dizer exatamente? Esta entrevista surgiu de um acordo entre um grupo de revistas dirigidas pela Companhia de Jesus: deseja lhes fazer algum convite especial? Quais devem ser suas prioridades?”
“As três palavras-chave que dirigi a “La Civiltà Cattolica” podem ser estendidas para todas as revistas da Companhia, talvez com acentos diferentes próprios de sua natureza e seus objetivos. Quando insisto na fronteira, de um modo especial, refiro-me à necessidade que tem o homem de cultura de estar inserido no contexto em que atua e sobre o qual reflete. O perigo de viver num laboratório sempre nos espreita. A nossa fé não é uma fé-laborátório, mas uma fé-caminho, uma fé histórica. Deus se revelou como história, não como um compêndio de verdades abstratas. Os laboratórios me causam medo porque no laboratório os problemas são tomados e levados para casa, fora de seu contexto, para domesticá-los, para dar-lhes um verniz. Não se deve levar a fronteira para casa, mas viver na fronteira e ser audazes”.
Pergunto ao Papa se pode apresentar-me algum exemplo a partir de sua experiência pessoal.
“Quando se fala de problemas sociais, uma coisa é reunir-se para estudar o problema da droga de uma vila miséria, e outra coisa é ir lá, viver lá e captar o problema a partir de dentro e estudá-lo. Há uma carta genial do padre Arrupe para os Centros de Investigação e Ação Social (CIAS) a respeito da pobreza, em que diz claramente que não se pode falar de pobreza, caso não seja experimentada, com uma inserção direta nos lugares onde se vive essa pobreza. A palavra ‘inserção’ é perigosa, porque alguns religiosos a tomaram como uma moda, e ocorreram desastres por falta de discernimento. No entanto, é verdadeiramente importante”.
“E as fronteiras são muitas. Pensemos nas religiosas que vivem nos hospitais: vivem nas fronteiras. Eu mesmo estou vivo graças a elas. Na ocasião de meu problema de pulmão, no hospital, o médico me prescreveu penicilina e estreptomicina em certa quantidade. A irmã que estava de guarda a triplicou porque tinha olho clínico, sabia que tinha que fazer porque estava com os enfermos cotidianamente. O médico, que verdadeiramente era um bom médico, vivia em seu laboratório, a irmã vivia na fronteira e dialogava com a fronteira todos os dias. Domesticar as fronteiras significa se limitar a falar a partir de uma posição à distância, fechar-se nos laboratórios, que são coisas úteis. Contudo, a reflexão, para nós, deve partir da experiência”.
Como o homem compreende a si mesmo
Pergunto ao Papa se isto tem validade também, e de que forma no caso de uma fronteira tão importante como é a do desafio antropológico. A antropologia que a Igreja tomou tradicionalmente como ponto de referência e a linguagem com a qual se expressou continuam sendo referência sólida, fruto de uma sabedoria e experiência seculares. E, no entanto, o homem para qual a Igreja se dirige parece já não compreender essa antropologia e essa linguagem, nem considerá-las suficientes. Começo expondo o fato de que o homem está interpretando a si próprio de modo diferente de como fez no passado, com categorias diferentes. E isto em razão, também, das grandes mudanças na sociedade e de um estudo mais profundo de si mesmo.
O Papa, neste momento, se levanta e vai pegar seu Breviário na mesa de trabalho. É um Breviário em latim e já muito manuseado. Abre-o pelo Ofício de Leitura da Feria sexta, ou seja, da sexta-feira, da semana XXVII. Lê uma passagem do “Commonitorium Primum” de são Vicente de Lerins: “Ita etiam christianae religionis dogma sequatur has decet profectuum leges, ut annis scilicet consolidetur, dilatetur tempore, sublimetur aetate (O mesmo dogma da religião cristã deve se submeter a estas leis. Progride, consolidando-se com os anos, desenvolvendo-se com o tempo, fazendo-se mais profundo com a idade)”.
E prossegue o Papa: “São Vicente de Lerins compara o desenvolvimento biológico do homem com a transmissão do depositum fidei de uma época para outra, que cresce e se consolida com o passar do tempo. Certamente, a compreensão do homem muda com o tempo e sua consciência de si mesmo se torna mais profunda. Pensemos em quando a escravidão era coisa admitida e quando a pena de morte era aceita sem problemas. Portanto, cresce-se na compreensão da verdade. Os exegetas e os teólogos ajudam a Igreja a amadurecer seu próprio julgamento. As demais ciências e sua evolução também ajudam a Igreja a aumentar a compreensão. Há normas e preceitos eclesiais secundários, já eficazes, mas agora sem valor, nem significado. É equivocada uma visão monolítica e sem matizes da doutrina da Igreja”.
“Ademais, em cada época o homem tenta compreender e expressar melhor a si próprio. E, portanto, o homem, com o tempo, muda seu modo de se perceber: uma coisa é o homem que se expressa esculpindo a “Nike de Samotracia”, outra a de Caravaggio, outra a de Chagall e, ainda, outra a de Dalí. As mesmas formas de expressão da verdade podem ser múltiplas, e isto é necessário para a transmissão da mensagem evangélica em seu significado imutável”.
“O homem está à procura de si mesmo, e é natural que nesta procura cometa erros. A Igreja viveu tempos de genialidade como, por exemplo, o do tomismo. Porém, também vive tempos de decadência do pensamento. Por exemplo: não devemos confundir a genialidade do tomismo com o tomismo decadente. Eu, infelizmente, estudei a filosofia em manuais de tomismo decadente. Em seu pensamento sobre o homem, a Igreja deveria tender à genialidade, não à decadência”.
“Quando uma expressão do pensamento deixa de ser válida? Quando o pensamento perde de vista o humano, quando o homem lhe causa medo ou quando se deixa enganar sobre si mesmo. Podemos representar o pensamento enganado na figura de Ulisses diante do canto das sereias, ou como Tannhäuser, rodeado de uma orgia de sátiros e bacantes, ou como “Parsifal”, no segundo ato da ópera wagneriana, no palácio de Klingsor. O pensamento da Igreja deve recuperar genialidade e entender cada vez melhor a maneira como o homem compreende a si próprio hoje, para desenvolver e aprofundar seus próprios ensinamentos”.
Orar
Lanço ao Papa uma última pergunta sobre seu modo preferido de orar.
“Rezo o Ofício todas as manhãs. Gosto de rezar com os Salmos. Depois, imediatamente, celebro a missa. Rezo o Rosário. O que verdadeiramente prefiro é a Adoração vespertina, inclusive quando me distraio pensando em outras coisas ou quando chego a dormir rezando. À tarde, portanto, entre as sete e as oito, estou diante do Santíssimo em uma hora de adoração. Porém, rezo também em minhas esperas ao dentista e em outros momentos do dia”.
“A oração é para mim sempre uma oração ‘memoriosa’, cheia de memória, de lembranças, inclusive de minha história ou do que o Senhor fez em sua Igreja ou numa paróquia concreta. Para mim, trata-se da memória de que fala santo Inácio na primeira Semana dos Exercícios, no encontro misericordioso com Cristo Crucificado. E me pergunto: ‘O que eu fiz por Cristo? O que faço por Cristo? O que devo fazer por Cristo?’. É a memória da qual santo Inácio também fala na “Contemplação para alcançar amor”, quando nos pede que tragamos à memória os benefícios recebidos. Porém, sobretudo, sei que o Senhor me tem em sua memória. Eu posso me esquecer Dele, mas eu sei que Ele jamais se esquece de mim. A memória funda radicalmente o coração do jesuíta: é a memória da graça, a memória da qual o Deuteronômio menciona, a memória das ações de Deus que estão na base da aliança entre Deus e seu povo. Esta é a memória que me faz filho e que me faz também ser pai”.
Dou-me conta de que este diálogo iria longe, entretanto, sei que, como disse o Papa certa vez, não é preciso “maltratar os limites”. No total, dialogamos durante mais de seis horas ao longo de três encontros, nos dias 19, 23 e 29 de agosto. Preferi organizar a redação sem divisões, para que não perdesse a continuidade. O nosso encontro foi mais uma conversa do que uma entrevista: as perguntas constituíram uma espécie de telão de fundo que não impunha rígidos parâmetros pré-definidos. Inclusive, do ponto de vista lingüístico, passamos com liberdade do italiano para o espanhol, muitas vezes sem advertir sobre a transição. Não houve nada de mecânico, e as respostas nasciam do diálogo e dentro de um equilíbrio que procurei refletir aqui, de modo sintético, como pude.
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“Procuremos ser uma Igreja que encontra caminhos novos”. Entrevista com o Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU