15 Abril 2025
Em 2023, o autor recebeu um convite incomum do Vaticano para acompanhar o Papa Francisco na viagem que faria à Mongólia, como parte de seus frequentes giros por países não católicos. Hesitou, mas acabou indo.
A entrevista é de Juan Cruz, publicada por Clarín-Revista Ñ, 04-04-2025. A tradução é do Cepat.
Para Javier Cercas, o resultado da viagem teve um complemento especial: queria perguntar ao Papa se lhe concederia um encontro, antes ou durante a viagem, e se quando sua mãe, radicalmente católica, morresse, teria a oportunidade de se encontrar com o marido, na vida após a morte.
Antes de seu encontro e da longa experiência que o levou até aqueles que acompanharam Francisco, o escritor ateu, que no livro se autodenomina “o louco sem Deus”, entrevistou diversos membros da Cúria Romana, entre eles, o cardeal argentino Víctor Manuel Tucho Fernández. O resultado da viagem é um relato no qual se propõe intérprete de uma jornada inusitada sobre as peripécias papais. Diz Cercas, também autor de Anatomia de um instante, sobre o golpe de Estado que colocou em risco a democracia espanhola, em 1981, que todos os seus livros, incluindo este, buscam seguir a trilha do romance.
No caso de El loco de Dios en el fin del mundo (Random House), persegue aquela missão. A presença de sua mãe, que faleceu semanas antes da publicação deste livro, é constante, de modo que, junto com o Papa, ela é também protagonista da história que se conta. A teia em torno da resposta do Papa à pergunta do escritor dura até o final, mas Cercas não quer que se adiante nada aos leitores.
Esse personagem que vai com você ver o Papa, vai até o Vaticano sem fé…
Esse sou eu, naturalmente. Vou sem nenhuma fé. Nem na Igreja, nem em nada.
Você é enviado pela sua mãe, por assim dizer… É ela que te leva para a Igreja.
Deixe-me responder com a máxima precisão. Não sou exatamente esse personagem. Na realidade, é “o louco sem Deus”. Este livro é intitulado El loco de Dios en el fin del mundo porque o Papa Francisco é o primeiro que chama a si Francisco, e Francisco por causa de Francisco de Assis, que chamava a si o louco de Deus.
Diante do louco de Deus, está o louco sem Deus, que sou eu. Que é o louco de Nietzsche, que durante o dia caminha com uma lanterna acesa gritando: “Deus está morto! Nós o matamos”. Eu sou, neste caso, o louco sem Deus. Por quê? Porque, como a imensa maioria dos espanhóis, fui educado no catolicismo, em uma família muito católica, mas depois perdi a fé ou a abandonei. No livro, não sou apenas o autor, sou um personagem, o louco sem Deus.
O personagem de um romance…
A primeira coisa que um escritor de romance faz, e este é um, é inventar um narrador. Este narrador é uma criação minha, um personagem muito parecido comigo, que faz exatamente as mesmas coisas que eu. Por isso, este livro se parece, com muitas diferenças, a outros meus, como Anatomia de um instante e O impostor, que respondem a muitos gêneros. Enganaria o leitor se dissesse que é uma reportagem ou se dissesse que é um ensaio. Enganaria se dissesse que é sobre a religião.
Este livro participa de todos os gêneros. Tem um pouco de crônica, um pouco de ensaio e de biografia, tem autobiografia, viagens etc. E com toda essa mistura, você poderia dizer, o que é? Bem, só pode ser um romance. Porque por definição o romance é o gênero que permite essa mistura de gêneros. Foi assim que Cervantes o criou, como um gênero onívoro, que tudo come, tudo pode devorar.
Então, esse livro devora tudo.
Por isso, é um romance particular, um romance sem ficção. Porque aqui não há um pingo de ficção, mas o todo é construído como um romance. O narrador, sim, é uma invenção, uma criação minha, é o louco sem Deus... Um livro não muda sua visão sobre as coisas, não é uma viagem de ônibus, em que se vai de um lugar para outro, de uma parada para a outra.
Um livro é uma aventura. E, por definição, uma aventura muda você. É como entrar na floresta, você entra no desconhecido e, neste caso, no mais desconhecido. Porque o Vaticano, para nós, para mim, é o desconhecido. Sou anticlerical e é isso que tento demonstrar neste livro, enquanto sou ateu e ele, claro, não é ateu.
O livro mudou sua visão sobre Francisco e a Igreja?
Minha visão da Igreja mudou completamente. E sobre Francisco também, absolutamente. Do catolicismo? Também modificou, absolutamente. Ou seja, tudo se tornou muito mais complexo para mim. É muito complicado dizer o que mudou em cada uma dessas linhas, porque precisei de 500 páginas para dizer isso!
Quanto ao Papa, o que mudou para você?
O Papa está no centro do livro, claro. Não é uma biografia de Francisco, mas ele está no centro do livro, de modo que há uma espécie de retrato poliédrico de sua figura. Ou seja, uma visão do personagem a partir daqueles que o rodeiam. Aqui, falam dele de um cardeal a um missionário, todos a partir de seus diferentes pontos de vista... E o que posso dizer a você sobre o Papa? Bem, ele é um personagem muito mais complexo do que eu pensava.
Como estamos falando para um meio de comunicação argentino, devo esclarecer que uma coisa é o Papa na Argentina e outra é fora da Argentina. E tem sido assim, aliás, desde o começo. Este Papa é visto, e com certa razão, como um Papa muito político. E é verdade. Quando foi eleito, foi visto como um Papa muito progressista e, se preferir, muito de esquerda. Por outro lado, na Argentina, era visto exatamente como o oposto. Foi visto como um personagem muito mais conservador e, inclusive, por alguns setores, como um Papa reacionário.
E como você o vê?
Nenhuma dessas definições está correta. Francisco não é um papa de esquerda, nem reacionário. Ambas as coisas são falsas, mas era visto assim, embora não seja mais visto dessa forma. Ele está muito ciente do que está acontecendo na Argentina, sente-se muito argentino. Embora não tenha visitado seu país como Papa, não deixou de intervir à sua maneira no que acontece lá...
A segunda parte do livro é intitulada O segredo de Francisco. Nela tento desvendar qual é o coração desse personagem, mas não vou contar aqui, pois isto daria um romance policial. Embora no livro haja uma espécie de indagação, inclusive psicológica, do personagem e do que aprendi da Igreja.
O que você aprendeu da Igreja?
Algo que me impressionou são os missionários. A parte mais saudável da Igreja, muito contrária a Roma, ao Vaticano e à pompa. Não é que os missionários sejam contra a Igreja, à qual acatam, mas são muito reticentes à vaidade, ao poder...
Um traço que define o papado de Francisco é que os missionários sentiram, em geral, que este Papa está muito mais próximo deles do que os anteriores. Sentiram-se mais protegidos, entenderam que ele é mais dos seus, e não em vão Francisco quis ser missionário. É que para ele a Igreja é missionária ou não é nada. E eu sou um exemplo disso.
Por que você é um exemplo disso?
Por que você acredita que a Igreja, ou seja, o Papa, propõe a um escritor ateu e anticlerical escrever este livro sobre a Igreja? Há uma coisa muito rara neste livro. Ninguém jamais havia tido a oportunidade de escrever um livro assim, não há outro exemplo parecido.
Não houve sequer um católico que tenha tido uma oportunidade semelhante de entrar no Vaticano e de falar com os que estavam lá dentro e de viajar com o Papa. E pediram isto, de acordo com o Papa, a um ateu e anticlerical como eu.
É que Francisco tem ido ao encontro do que não é a Igreja. Isto gera muitos protestos entre os eclesiásticos e entre os católicos em geral. E por que o Papa visita a Mongólia, onde há poucos católicos, enquanto não vem à Espanha, onde há tantos?
Por quê?
Porque vai ao encontro do que não é o catolicismo. Quer que seu diálogo seja com o alheio. E é justamente isto que o missionário faz. O missionário vai ao encontro do que não é o centro da Igreja. Foi isso que aprendi, entre muitas outras coisas.
Por exemplo, a imagem que tantas vezes se teve de que no Vaticano são celebradas missas negras ou orgias com valquírias é uma mentira. É possível que haja missas para acabar com o Papa, mas no Vaticano há muitas pessoas que trabalham e muitas pessoas que riem. Então, este livro também reflete o humor vaticano, o riso no Vaticano. E é curioso: eu não sabia que o Papa dava tanta importância ao senso de humor. Há muitas gargalhadas no Vaticano.
Durante a viagem, sua esposa lhe pergunta insistentemente se o Papa já o recrutou para o seu exército…
Para os soldados de Francisco!
E você repetidamente disse que não. Em que sentido mudou seu modo de perceber Bergoglio?
Descobri a complexidade do personagem… Não considero que tenha me recrutado por ser ateu, mas porque venho de uma cultura católica. Somos católicos de modo inapelável. Nossa filosofia, nossa política, tudo tem essa raiz, e tudo o que nos precede seria incompreensível sem o cristianismo. Contudo, é na América Latina e na África que o catolicismo ainda é tão importante. O grande fenômeno europeu é a secularização, muitos de nós somos ateus. Sendo culturalmente católicos, somos religiosamente ateus.
E o que mudou na minha visão de Francisco? Sua imagem pública não corresponde à sua imagem real. E isto é lógico. Acontece conosco, que não somos tão conhecidos quanto ele, então, imagine o que acontece com ele. Há, como ele mesmo disse, uma certa papolatria. E ele disse que detesta a papolatria. Ele é um homem comum, com seus defeitos e suas virtudes. É uma pessoa de caráter forte.
Como muitos dos que você entrevistou. E você viu uma legião deles. Como você os selecionou?
Em parte, eu os procurei e em parte foram surgindo. Eu estava em um escritório, em um corredor, conversando com algumas pessoas e outras passavam, e eu lhes perguntava sobre o Papa, sobre eles, sobre a vida, e assim as entrevistas foram acontecendo.
Fiquei impressionado com o jesuíta Antonio Spadaro, subsecretário do Dicastério para a Cultura e a Educação e conhecedor de toda a obra do Papa. É um dos seus intelectuais. Também com o já mencionado cardeal argentino. O Vaticano está cheio de pessoas únicas no mundo.
Na verdade, você estava lá esperando para que o Papa respondesse sua pergunta, cuja resposta desejava levar para sua mãe.
Sim, se ele realmente acredita, como minha mãe acreditava, na vida eterna e na ressurreição da carne… Minha mãe verá o meu pai depois de morta? Essa era a pergunta. Todos os meus romances são romances policiais. Já disse isso muitas vezes. Borges também dizia o mesmo, que seus livros eram romances policiais.
Dei algumas conferências na Oxford que depois viraram um livro, El punto ciego, sobre o enigma que sempre tento decifrar nos meus livros. Aqui, neste livro, o enigma é esse que tanto importaria para minha mãe e que é o maior enigma da história da humanidade, o enigma da ressurreição da carne e a vida eterna.
É o enigma central do livro e está escrito para que o Papa possa me responder essa pergunta. Meus pais eram muito católicos, minha mãe morreu pouco antes deste livro ser publicado, mas houve tempo para que eu explicasse a ela a resposta que o Papa me deu, que está no livro e que não vou revelar agora.
Seu pai morreu antes…
E ela acreditava, sustentava, que o veria após sua morte, porque o catolicismo havia prometido isso a ela desde a infância. Porque o credo diz: creio na ressurreição da carne e na vida eterna, e São Paulo também o disse: se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa fé. Isso que talvez para você e para mim não nos faz católicos, nisso meus pais acreditavam.
Esse enigma é o leitmotiv do livro, essa é a pergunta que o louco sem Deus tenta fazer ao louco de Deus: se minha mãe verá meu pai depois de sua morte. Ele, Francisco, era o único na terra que podia me responder esta pergunta, para que eu pudesse levá-la para minha mãe.
Então, é o livro da sua mãe.
Claro que é o livro da minha mãe. Certíssimo. Sem a menor dúvida. Esse enigma que precisa ser resolvido ou não.
Não escreveu um livro para católicos, mas para pessoas.
É isto. Todos são pessoas, não existe um louco, além do louco que faz o livro, mas pessoas que têm o direito de dizer sou um ateu e também sou uma pessoa. Por isso, é fundamental a visão do Papa, deste Papa, sobre a vida daqueles que não fazem parte da Igreja Católica, nem de qualquer outra igreja.
Há algo fundamental, que os ateus também são filhos de Deus: um ateu não vai para o inferno. Isto é uma grande revolução. Ele tem grande respeito pelas pessoas. E o Vaticano atual, e eu sou prova disso, não é contra aqueles que não acreditam.
Ah, e eu gostaria de dizer... O que honestamente sinto é inveja da minha mãe, porque ela acreditava nisto. Este livro mudou muitas coisas para mim. Continuo sendo ateu, mas continuo sentindo que a rebelião máxima é a rebelião contra a morte.