12 Setembro 2022
"Ao contrário de seus predecessores, Francisco não apenas tornou essa escuta obrigatória e não puramente facultativa, mas também iniciou um processo sinodal para enfrentar a questão de como deveria ser uma Igreja verdadeiramente sinodal. Trata-se, realisticamente, de imaginar e implementar mecanismos que tornem credível essa imagem da Igreja vista como uma pirâmide invertida", escreve o teólogo basco Jesús Martínez Gordo, em artigo publicado por Settimana News, 10-09-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
A celebração de um consistório de cardeais em Roma nos dias 29 e 30 de agosto provocou muitos rumores sobre se, na realidade, estivéssemos presenciando algum tipo de ensaio geral, antes de um encontro em que - em breve - o sucessor de Francisco poderia ser eleito.
Para além dessa e de outras especulações, creio que essa convocação foi - por parte do Papa Francisco - uma espécie de "prestação de contas" perante a instituição que, escolhendo-o para essa responsabilidade em março de 2013, o encarregou de uma profunda reforma da cúria vaticana.
Os "bem informados" argumentam que os cardeais da época lhe haviam confiado essa tarefa não só pelas lutas - internas e notórias - entre as diferentes facções ou pela entrega de notícias e informações sensíveis à imprensa, mas também porque, durante os pontificados de João Paulo II e Bento XVI, a cúria havia constituído um diafragma entre o papa e os demais católicos.
E o fazia à sombra de uma releitura que - propiciada pelos dois sucessores de Pedro acima mencionados - não só dava ensejo, entre outros excessos, a um exercício de autoridade excessivamente unipessoal, mas também favorecia atitudes e comportamentos “papolátricos”.
Nada a ver com o que foi aprovado pelo Vaticano II quando afirma que o "poder supremo sobre a Igreja universal" é exercido pelo colégio dos bispos com o papa, reunidos em concílio ou dispersos pelo mundo (LG 22). Portanto, o exercício do poder não é exercido nem apenas pelo papa, nem apenas pelos bispos (e, muito menos, pela cúria), mas em conjunto.
A sempre espinhosa questão do poder na Igreja reaparecia. Os cardeais, mais atentos aos sintomas do que à causa do problema, confiaram-lhe a tarefa de uma profunda reforma da cúria para que deixasse de atuar como diafragma na relação - constitutiva - que existe entre o papa, a bispos e, por extensão, com todos os católicos.
Acredito que foi isso que Francisco fez – após nove anos de trabalho – ao convocar e celebrar este Consistório: “missão cumprida”, disse a eles.
Mas nestes anos de amadurecimento da reforma, surgiram várias questões relativas ao exercício do poder na Igreja. Vou considerar duas delas.
A primeira, ligada à necessidade - para usar a expressão do Papa Bergoglio - de uma "conversão do papado" que levasse a um exercício do mesmo "de baixo para cima", ou seja, tomar decisões ouvindo os envolvidos diretamente. Foi o que expressou no Sínodo dos Bispos de 2015, imaginando a Igreja como uma "pirâmide invertida".
Mas é uma "conversão" que mostrou seus limites, como vimos após o término do Sínodo sobre a Amazônia.
Foi então possível verificar que essa “conversão”, além de passar por um vasto processo de escuta, ainda necessitava de uma reorganização mais policêntrica da autoridade pontifícia. Pessoalmente, considero que isso possa ser feito prolongando a experiência - quase bimilenar, em alguns casos - dos mais de trinta ritos existentes hoje e tendo presente a máxima de Santo Agostinho: "unidade no que é fundamental, liberdade no que é questionável e em tudo caridade".
A segunda questão refere-se à participação no governo e no magistério eclesial dos cerca de 1.400 milhões de católicos que – como também proclama o Vaticano II – “são infalíveis quando creem”. Essa participação ocorre se forem consultados sobre questões substanciais e antes de uma decisão ser tomada.
Ao contrário de seus predecessores, Francisco não apenas tornou essa escuta obrigatória e não puramente facultativa, mas também iniciou um processo sinodal para enfrentar a questão de como deveria ser uma Igreja verdadeiramente sinodal. Trata-se, realisticamente, de imaginar e implementar mecanismos que tornem credível essa imagem da Igreja vista como uma pirâmide invertida.
Esse é o problema que está em jogo desde o ano passado e que culminará em outubro de 2023, quando se celebrará em Roma o Sínodo Mundial dos Bispos, após um longo processo de escuta, diálogo e formulação de propostas.
Então veremos qual sinodalidade se pretende realizar: aquela que está se desenvolvendo nas Igrejas latino-americanas (consulta do povo, debate e decisão dos bispos, com a ajuda dos teólogos) ou aquela implementada nos Estados Unidos, no imediato pós-concílio: ter documentos que, depois de enviados à base para serem estudados ou para propor emendas, são aprovados (ou não) pela Conferência Episcopal.
Saberemos se esta última é a sinodalidade em jogo quando, após a reunião dos bispos em outubro do próximo ano, for enviada a todas as dioceses do mundo - como declarou há pouco tempo o card. Mario Grech, secretário-geral do Sínodo - o que foi debatido e aprovado na assembleia episcopal para leitura e para receber eventuais emendas das dioceses de todo o mundo, antes de apresentar o texto definitivo a Francisco para que o ratifique, se julgar oportuno.
Terminado o tempo da primeira consulta, resta esperar sem dar peso aos rumores.
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O lastro da "papolatria". Artigo de Jesús Martínez Gordo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU