Francisco, a voz da dissidência. Artigo de Jesús Martínez Gordo

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11 Agosto 2022

 

"A sua é uma voz dissidente. E é, porque está convencido de que a única saída é 'parar e negociar', dado que 'alguns poderosos decidem e enviam milhares de jovens para lutar e morrer', tornando-os 'cúmplices do mal'. Não me surpreende que essa posição desagrade profundamente muitas pessoas e instituições, visto os muitos interesses em jogo. E não me surpreende que essas palavras de Francisco, como outras do tipo, tenham bem pouca cobertura midiática", escreve o teólogo basco Jesús Martínez Gordo, doutor em Teologia Fundamental e professor da Faculdade de Teologia de Vitoria-Gasteiz e do Instituto Diocesano de Teologia e Pastoral de Bilbao, em artigo publicado por Settimana News, 10-08-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

Não me surpreende, vendo os interesses que também movem a mídia, que a guerra na Ucrânia passou para o segundo plano, assim como as posições que - politicamente atípicas - continuam a ter, entre outros, o intelectual e cientista político estadunidense Noam Chomsky [1]; o coronel do exército suíço, especialista em inteligência e vice na OTAN por 5 anos, Jacques Baud e, em especial, o Papa Francisco.

 

Francisco não se deixa contender

 

Nunca deixa de me surpreender que o papa adie os repetidos convites dirigidos a ele por Volodimir Zelensky, suponho porque ele não quer ficar enredado no discurso desse presidente ucraniano desmedidamente midiático e um tanto frívolo.

 

Prova disso é que Francisco deu uma resposta que não agradou a quase ninguém na Ucrânia e que, até onde sabemos, não foi bem recebida na Rússia: ele gostaria de ir primeiro a Moscou e depois a Kiev.

 

O arcebispo Paul Richard Gallagher, secretário para as Relações com os Estados - algo como o ministro das Relações Exteriores do Vaticano - relatou, alguns dias depois, algumas reações bem conhecidas a esse desejo papal, de que o bispo de Roma poderia ir à Ucrânia em agosto ou setembro, depois de avaliar sua condição de saúde após a viagem ao Canadá.

 

Suponho, novamente, que seja possível que a reação do arcebispo católico de rito latino em Lviv, Mieczysław Mokrzycki, tenha muito a ver com esse repensamento do Vaticano - mas não papal -: "Seria um desastre - declarou - se ele visitasse primeiro a Rússia e depois a Ucrânia”. "Os nossos fiéis dizem que é necessário dirigir-se primeiro à vítima do acidente, a quem sofre, e só depois àquele que causou o acidente".

 

Parar e negociar

 

Pois bem, agora que terminou a "peregrinação penitencial" ao Canadá - como o papa definiu sua última viagem - ficamos sabendo que ele irá ao Cazaquistão de 13 a 15 de setembro, mas nada da intenção de ir a Moscou e / ou Kiev.

 

Eu entendo, ouvindo suas declarações no avião que o traz de volta do Canadá, que ele mantém a posição anunciada. Recordou-o novamente em 31 de julho: "Se você olhar a realidade com objetividade - lembrou -, levando em conta os danos que cada dia de guerra acarreta para aquela população, mas também para o mundo inteiro, a única coisa razoável a fazer seria parar e negociar".

 

São palavras que considero perfeitamente em sintonia com aquelas formuladas pouco antes, no dia 3 de julho: "O mundo precisa de paz". Não aquela baseada "no equilíbrio das armas, no medo mútuo", mas aquela construída sobre "um projeto de paz global" entre povos e civilizações que dialogam entre si e se respeitam.

 

E considero-as particularmente coerentes com as dirigidas aos participantes na "Conferência Europeia da Juventude", realizada em Praga de 11 a 13 de julho: "Todos devemos empenhar-nos em pôr fim a essas devastações da guerra, onde, como sempre, poucos poderosos decidem e mandam milhares de jovens para lutar e morrer. Em casos como este é legítimo rebelar-se!”.

 

O exemplo de Franz Jägerstätter

 

E, se alguém tinha dúvidas sobre o que ele quis dizer, deu um exemplo, o de Franz Jägerstätter, um jovem agricultor austríaco, casado e com três filhos, que se opôs - movido por sua fé católica à ordem de jurar fidelidade a Hitler e ir para a guerra.

 

“Quando o chamaram – continuou Francisco – ele se recusou, porque achava injusto matar vidas inocentes. Essa decisão despertou reações duras em relação a ele de parte de sua comunidade, do prefeito e até de seus familiares. Um padre tentou dissuadi-lo para o bem da família. Todos estavam contra ele, exceto sua esposa, Francisca, que, bem ciente dos terríveis perigos, sempre permaneceu do lado do marido e o apoiou até o fim. Apesar das tentativas de persuasão e das torturas, Franz preferiu ser assassinado a matar. Ele considerou a guerra totalmente injustificada. Se todos os jovens convocados às armas tivessem feito como ele, Hitler não teria conseguido realizar seus planos diabólicos. O mal precisa de cúmplices para vencer.”

 

A sua é uma voz dissidente. E é, porque está convencido de que a única saída é “parar e negociar”, dado que “alguns poderosos decidem e enviam milhares de jovens para lutar e morrer”, tornando-os “cúmplices do mal”.

 

Não me surpreende que essa posição desagrade profundamente muitas pessoas e instituições, visto os muitos interesses em jogo. E não me surpreende que essas palavras de Francisco, como outras do tipo, tenham bem pouca cobertura midiática.

 

É preferível parar, por exemplo, que especular sobre quando ele vai renunciar ou sobre o porquê Dona Letizia não faz o sinal da cruz ou se entregar a relatar os xingamentos que alguns meios de comunicação lhe fazem enquanto está em curso uma "terceira guerra em pedaços”, como ele denunciou.

 

Eu não acredito que deem a ele o Prêmio Nobel da Paz, embora ele o mereça. Fico feliz que não o acusem - como Sócrates - de corromper os jovens ou que não lhe deem uma dose substancial de cicuta antes que ele anuncie sua renúncia que, esperamos seja o mais distante possível.

 

Nota

[1] É um filósofo estadunidense, linguista, acadêmico, cientista cognitivo, teórico da comunicação, ativista político e ensaísta.

 

 

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