05 Abril 2025
“Um livro como esse nunca havia sido escrito, não existia! Eu não podia acreditar: o Papa, o Vaticano, a Igreja universal abrindo suas portas de par em par para um escritor ateu e anticlerical como eu. Vocês são loucos?, perguntei a Lorenzo Fazzini quando ele me propôs a ideia. Loucos e corajosos”. A poderosa risada de Javier Cercas cruza a tela do computador durante a conexão via Teams, pontuando as passagens mais incríveis de uma história surpreendentemente bela e comovente. “A aventura de um louco sem Deus em busca do louco de Deus”, repete o escritor de sua casa em Barcelona, um interior rigorosamente branco, perfeito para uma entrevista que fala de vida espiritual, morte e ressurreição da carne. Tudo se origina da visita de Francisco à Mongólia em agosto de dois anos atrás, quando Cercas é convidado a participar da viagem papal “para o fim do mundo” com os centuriões de Bergoglio e os missionários de Ulan Bator, e depois a escrever sobre isso com total liberdade, com a possibilidade de satisfazer todas as curiosidades, mesmo as mais indiscretas.
O resultado é o livro que há muito se desejava ler, tão imprevisível e irônico quanto Francisco, tão amável quanto o Papa revolucionário que nunca se deixa de amar, até mesmo escandaloso, porque “um romance sobre Bergoglio que não seja escandaloso não é um romance sobre Bergoglio” (Il folle di Dio alla fine del mondo, O louco de Deus no fim do mundo, em tradução livre, traduzido para a Guanda por Bruno Arpaia).
Il folle di Dio alla fine del mondo, de Javier Cercas (Foto: Divulgação)
A entrevista é de Simonetta Fiori, publicada por La Repubblica, 01-04-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Quatrocentas e sessenta páginas que alternam ensaio, relato, investigação, biografia e autobiografia correm com a velocidade da luz até o epílogo, batendo numa pergunta cuja resposta chega nas últimas linhas. A ressurreição da carne realmente existe?
Eu queria perguntar a Francisco, porque essa é a verdadeira essência do cristianismo. E porque eu queria transmitir sua resposta à minha mãe, uma mulher de fé íntegra, que não esperava nada mais além de rever meu pai no além.
A resposta era previsível, para um crente. O que a surpreendeu?
A reação fulminante de Francisco. Ele não hesitou nem por um milésimo de segundo, evitando se alongar em passagens bíblicas complexas, como ao contrário haviam feito muitos de seus cardeais que eu procurei. A fé de Bergoglio é irrevogável, desprovida de claros-escuros, construída em pedra. E é expressa com a simplicidade de Don Florián, o pároco do interior com quem minha mãe se confessava.
Afinal, esse é “o segredo de Francisco”, contado no final do livro: a sua humanidade.
Ele é um homem comum, é claro. E, como todos os seres humanos, ele é dotado de uma duplicidade, uma defasagem íntima, que equivale à distância que existe entre o eu social e o eu pessoal. Ele nunca fez nada para esconder sua intolerância contra a papalatria, o culto à personalidade que fatalmente envolve sua pessoa. Uma idealização que ele vive como uma agressão, um ato quase ofensivo, porque o papa não é um super-homem, mas um homem como todos os outros.
Portanto, também um pecador. Você insiste em um aspecto que parece lhe fascinar bastante.
Você já notou que muitas vezes o Papa Francisco se despede das pessoas convidando-as a rezar por ele? Bergoglio ainda é um homem em luta consigo mesmo: contra seu próprio caráter, contra suas próprias fraquezas, contra seus próprios demônios. É por isso que suas primeiras palavras na Capela Sistina após sua eleição foram: "Mesmo que eu seja um grande pecador". Mas é isso que realmente o torna um cristão sentado no trono de Pedro: porque a Igreja é aquela dos pecadores e não dos virtuosos, dos fracos e não dos fortes. Não foi o fundador da Igreja que traiu Cristo três vezes?
Mas quando você diz que o Papa Bergoglio está em guerra consigo mesmo, a que se refere?
Os jesuítas que o conheceram nas décadas de 1970 e 1980 na Argentina o descreveram como um homem de temperamento forte, não estranho à prática do autoritarismo, e não desprovido de soberba. Ora, essa imagem está muito longe do Bergoglio que nós conhecemos, o homem manso e humilde, o simples seguidor de Jesus de Nazaré. Em sua biografia, há uma cesura - o exílio em Córdoba imposto pelos jesuítas - que marca uma profunda transformação. O novo Bergoglio amansa e purifica o antigo, mas não deixa de lutar contra ele. Acredito que foi sua eleição como papa que fez com que entrasse em acordo consigo mesmo. É Francisco quem representa a versão mais bem-sucedida de Bergoglio, um Bergoglio ideal.
Até o final do livro, você reitera seu ateísmo. Mas o quanto essa viagem o mudou?
Muito mesmo. Todo livro que escrevo é uma aventura, mas desta vez foi uma aventura extraordinária. Afinal de contas, todos os meus romances são construídos em torno de um enigma, como em um romance policial. E sempre há alguém que quer decifrá-lo.
Em seus trabalhos anteriores, você se mensurou com a história, aqui com o sobrenatural.
Esse é o motivo de minha profunda mudança, que diz respeito tanto à minha pessoa quanto à minha concepção do cristianismo. Você sabe o que Hannah Arendt costumava dizer? Como são estúpidos os ateus que pensam que sabem o que não se pode saber. Depois que perdi minha fé na adolescência, sempre acreditei, junto com Nietzsche, que o cristianismo era uma visão depreciativa da vida terrena, reduzida a um vale de lágrimas à espera da redenção. No final de minha viagem dentro da Igreja, entendi que a mensagem do Evangelho contém uma celebração da vida e uma formidável rebelião contra a morte. A promessa da vida eterna é a maior revolução que se pode imaginar.
Cercas, a paixão com que você fala é impressionante. Não teve o impulso de ceder ao que você chama de “superpoder”, ou seja, a fé?
Eu adoraria tê-lo, mas o que fazer? Infelizmente, eu o perdi muitos anos atrás. É um superpoder, estou convencido disso: como aqueles missionários malucos na Mongólia conseguem viver durante os invernos de quarenta graus abaixo de zero e sofrer a solidão de serem uma minoria absoluta? Eles são a essência do cristianismo, os verdadeiros loucos de Deus.
Foram os missionários que provocaram essa mudança pessoal a que você se referia anteriormente?
Sim, o encontro com eles foi uma experiência muito séria. Há nessas pessoas uma vocação radical que é discreta, nunca exibida, louvável. Tirei disso a confirmação de que a virtude ou é secreta ou não é virtude. A energia milagrosa do Padre Ernesto, a fúria extraordinária do Padre João contra sua Igreja, o talento explosivo da Irmã Ana e da Irmã Francisca: a paixão extrema com que vivem sua missão é aquela que todo escritor deveria ter.
Você conta que se tornou escritor porque havia perdido a fé.
Sim, eu tinha me deparado com a leitura de Miguel de Unamuno, em particular seu São Manuel Bueno, mártir, a história de Emanuel que deixa de crer, mas continua a enganar seus paroquianos para deixá-los felizes. Foi assim que comecei a escorregar naquele imenso caos moral do qual nunca saí. A perda da fé significa a perda da maior segurança, que é o fato de a vida ter sentido. E fui procurar o sentido na literatura, mas foi um erro.
Por quê?
A literatura não dá certezas, pelo contrário, oferece perguntas mais que respostas. Mas quando descobri isso, era tarde demais: eu já havia me tornado um escritor.
Você entendeu por que o Vaticano o escolheu, Cercas?
É a única pergunta que nunca fiz, mas na escolha do escritor ateu vejo acima de tudo a visão deste Papa. Ir atrás dos outros, dos céticos, dos não crentes ou dos crentes em outras religiões. Não uma Igreja fechada em si mesma, mas ad gentes, projetada para as periferias, palavra-chave de sua concepção missionária.
O Papa leu o livro, agora publicado na Itália, na Espanha e na América Latina?
Acho que não, não espero que o leia. Está idoso, doente, com muito trabalho a fazer. Imagine se ele vai ter tempo para ler o meu livro.
Podemos revelar a resposta de Francisco sobre a ressurreição da carne?
É, não, esse é o final do romance. Digamos apenas que foi escandalosa. O que poderia ser mais assombroso do que a promessa de que Deus estará sempre conosco?.
***
Com uma de suas formidáveis risadas, Cercas desaparece do vídeo. E não tivemos tempo de perguntar a ele sobre sua mãe, uma figura muito presente nesse como em seus outros livros. O escritor conseguiu retornar a ela, em Barcelona, com a resposta do papa filmada de seu celular. Já não havia dúvidas, iria reencontrar seu amado marido. Quando faleceu, em dezembro do ano passado, o celular de Cercas tocou. “Alô, aqui é Bergoglio, você se lembra de mim? Estivemos juntos na Mongólia. Soube de sua mãe...”. Você se lembra de mim?, disse o papa.
E é aqui que o louco sem Deus pela primeira vez ficou sem palavras, talvez encontrando o sentido que tanto procurava.