Legalidade, solidariedade: justiça. 'Uma cristologia que não é cruzada pelas cruzes da história torna-se retórica'. Discurso de Dom Domenico Battaglia

Foto: Wikimedia Commons

06 Dezembro 2025

"Legalidade não é uma obsessão dos magistrados, não é uma fixação dos professores, não é uma mania dos prefeitos. Legalidade é a gramática mínima para morar junto. É a coragem de dizer que a lei não pertence aos astutos, mas aos frágeis. Não é uma cerca dos fortes, é proteção dos fracos.

"Solidariedade não é uma emoção sazonal, é um princípio estrutural. Não é um "extra", é a espinha dorsal de uma sociedade justa.

"A justiça não é um tribunal abstrato, não é uma escala perfeita desenhada em códigos. É a maneira concreta pela qual um povo decide quem conta e quem não conta, quem pode levantar a voz e quem deve permanecer em silêncio, quem tem direito a um futuro e quem pode ser sacrificado."

O discurso a seguir, feito pelo Cardeal Dom Domenico Battaglia, foi discurso inaugural do ano acadêmico da Faculdade Pontifícia de Teologia do Sul da Itália, Seção de São Tomás - PFTIM. O evento contou também com a presença do Presidente da República. O discurso foi publicado em Chisesa di Napoli, em 27-11-2025.

Segundo o cardeal, "uma Igreja neutra é uma Igreja infiel ao seu Deus. Uma Igreja que permanece em silêncio diante da corrupção, violência, discriminação, tortura, guerras apresentadas como "operações especiais", fronteiras que se tornam armadilhas mortais, não é prudente: é cúmpliceUma teologia que observa tudo isso com o distanciamento do estudioso não é neutra: está do lado do status quo".

Eis o discurso.

"Senhor Presidente da República,

Vossas Excelências, irmãos bispos,

Reverendo Diretor, Reverendo Deans,

Autoridades civis,

Prezados professores, queridos alunos, amigos,

Hoje à noite não estamos inaugurando um ano acadêmico. Estamos saindo do lugar comum. De fora parece uma cerimônia: cumprimentos, siglas, faixa tricolor, algumas fotos.

Mas se você ouvir com atenção, sob protocolo pode ouvir outra coisa: como o som de um canteiro de obras começando. Martelos na realidade. Pregos cravados na carne viva do país. Poeira no ar.

O título que escolhemos – "Legalidade, solidariedade: justiça" – não é um slogan. É um interruptor. Se você abaixá-lo, a luz da sala desliga. Se você o eleva, percebe que a luz que entra não é gentil: é a luz bruta do feridas abertas.

Olhe as palavras. Há uma vírgula, depois um dois-pontos. Nem pensar. Nunca é.

A vírgula é um suspiro contido: legalidade, solidariedade. Como dois soldados esperando a ordem, em pé, em posição de sentido, com as mochilas nos ombros.

Os dois pontos, por outro lado, são uma porta escancarada: a justiça. Como se as duas primeiras palavras precisassem de algo para julgá-las, superá-las, colocá-las à prova.

Hoje à noite, gostaria de partir daí: daquela vírgula hesitante até os dois pontos que não dão escapatória. Porque o mundo fora desta câmara não é neutro. E nós também não, mesmo quando fingimos ser. Fora daqui, a história, neste momento, tem o som de sirenes e a cor da poeira.

Na Ucrânia, as janelas vibram não pela passagem dos trens, mas pelas explosões. Toda criança sabe distinguir, de ouvido, o som de um míssil do de uma tempestade.

Em Gaza, as casas não desmoronam em documentários: elas caem agora, enquanto falamos, e levam consigo cozinhas fixas, cadernos abertos, fotografias penduradas com fita adesiva.

No Sahel, em áreas da África que voltaram a aparecer em branco nos mapas das notícias, pessoas desaparecem entre guerras esquecidas e mudanças climáticas que não queríamos ver. Lá, a palavra "crise humanitária" há muito deixou de ser notícia: saiu de moda.

E o Mediterrâneo, esse mar que insistimos em chamar de "nosso", continua fazendo um trabalho sujo: não apenas o berço da civilização, mas um cemitério líquido. Um cemitério sem túmulos, sem nomes, sem data de nascimento e falecimento. Só números, coordenadas, estatísticas.

Sabemos de tudo isso. E removemos tão rápido quanto passamos o dedo pela tela. Vinte segundos de indignação, depois um vídeo de gatinhos, um anúncio, um meme.

Mas a teologia – se é teologia – não tem o direito de fluir. Ela é chamada para parar, olhar, recordar, a ser memória obstinada das vítimas. 

Caso contrário, vira um luxo: música de fundo para quem já tem tudo. 

E enquanto o mundo arde em chamas, a Itália não está isenta, Nápoles não está. Esta está isenta, este Sul que poderia ser um laboratório do futuro e, em vez disso, muitas vezes é um laboratório de injustiça experiente, refinada e normalizada.

Aqui, a palavra legalidade tem sido um tabu por anos, uma palavra para conferências, faixas, desfiles escolares.

Enquanto isso, organizações criminosas sentavam-se em boas mesas, assinavam contratos, forneciam "serviços", distribuíam trabalho, regras, até mesmo uma forma de assistência social paralela. Eles aprenderam a se disfarçar de sistema, de normalidade. Não mais só armas, mas canetas. Não são mais apenas ameaças, mas sorrisos.

A doutrina social da Igreja, quando fala de estruturas de pecado, fala precisamente disso: o mal que não tem mais apenas o rosto do indivíduo, mas se encarna em circuitos, costumes, línguas. É o "Così fan tutti" que se torna lei não escrita. É o "sempre foi assim" que se torna justificativa universal.

Então, vamos deixar claro: legalidade não é uma obsessão dos magistrados, não é uma fixação dos professores, não é uma mania dos prefeitos. Legalidade é a gramática mínima para morar junto. É a coragem de dizer que a lei não pertence aos astutos, mas aos frágeis. Não é uma cerca dos fortes, é proteção dos fracos.

Mas não basta elogiar a legalidade. Isso seria conveniente demais. Porque até a lei pode ser injusta. Sabemos bem que existem páginas de códigos que humilharam a dignidade da pessoa, muitas vezes no silêncio ensurdecedor das instituições e, às vezes, até das Igrejas.

É por isso que a tradição cristã, quando fala de legalidade, não se ajoelha diante de toda norma. Ele sabe que a última palavra pertence à consciência.

E ela sabe que há momentos em que a fidelidade a Deus exige desobediência às leis dos homens.

Não basta "respeitar a lei" para estar do lado certo da história. É possível violar a justiça respeitando cada parágrafo. Pode-se ser perfeitamente ordeiro e profundamente injusto.

Mas há outra palavra, após a vírgula: solidariedade. Nós a domesticamos, a reduzimos a uma caixa com o logo, a uma foto no jornal, a um evento beneficente de Natal. Solidariedade se tornou a palavra boa para limpar a consciência. Uma coleta é feita, um concerto é organizado, cobertores são recolhidos: tudo, possivelmente, cuidadosamente documentado nas redes sociais.

Mas a doutrina social da Igrejamudou o eixo há muito tempo: solidariedade não é uma emoção sazonal, é um princípio estrutural. Não é um "extra", é a espinha dorsal de uma sociedade justa.

Quando falamos de desigualdade, não estamos falando de gráficos. Estamos falando de pessoas que trabalham em tempo integral e continuam pobres. De jovens que nascem em bairros que não são subúrbios: eles são condenações. Onde a escola é cansativa, o trabalho é ilegal, a saúde está longe, o Estado é uma memória desbotada.

Solidariedade, então, não é apenas a mão estendida. 

É a política que assume o controle. 

É a economia que se permite ser julgada. 

É a cultura que para de contar o conto de fadas de que "se você quiser, pode fazer", como se o início não valesse nada, como se não houvesse inclinações verticais, paredes invisíveis, portas fechadas.

Solidariedade. Nós a domesticamos, a reduzimos a uma caixa com o logo, a uma foto no jornal, a um evento beneficente de Natal. Solidariedade se tornou a palavra boa para limpar a consciência. Uma coleta é feita, um concerto é organizado, cobertores são recolhidos: tudo, possivelmente, cuidadosamente documentado nas redes sociais – Dom Domenico Battaglia

Existe uma solidariedade com selfies, e ela precisa ser desmascarada. Existe uma solidariedade que não toca privilégios e deve ser convertida. Existe uma solidariedade que não entrega mudanças e defende bens, e ela deve ser denunciada.

O Evangelho não conhece esse truque.

Quando Jesus diz: "Eu era um estrangeiro e vocês me acolheram", ele não está falando de uma campanha de conscientização, mas da vida cotidiana, cruzada, mesclada, complicada.

A acolhida verdadeira tem custos reais: tempo, espaço, conflitos, correções, fadiga. É a solidariedade que quase sempre não custa nada, não vale nada.

E então os dois pontos. E depois dos dois pontos, a palavra que mantém tudo unido e derruba tudo: justiça.

Os profetas nos recordam: a justiça não é um tribunal abstrato, não é uma escala perfeita desenhada em códigos. É a maneira concreta pela qual um povo decide quem conta e quem não conta, quem pode levantar a voz e quem deve permanecer em silêncio, quem tem direito a um futuro e quem pode ser sacrificado.

Quando as Escrituras falam da justiça de Deus, falam de um Deus que toma uma posição. Não é neutro. Ele toma partido com a viúva, com o órfão, com o estrangeiro, com o pobre, olha a história pela borda, pela periferia, por baixo.

Se quisermos ser honestos, este é o escândalo: continuamos a imaginar Deus acima, lá em cima, bem longe. As escrituras sistematicamente O devolvem isso abaixo, abaixo, próximo, ajoelhado ao lado dos que estavam no chão.

Então, sejamos honestos:

 

Uma Igreja neutra é uma Igreja infiel ao seu Deus. Uma Igreja que permanece em silêncio diante da corrupção, violência, discriminação, tortura, guerras apresentadas como "operações especiais", fronteiras que se tornam armadilhas mortais, não é prudente: é cúmplice.

Uma teologia que observa tudo isso com o distanciamento do estudioso não é neutra: está do lado do status quo.

Justiça, hoje, significa ter coragem de nomeá-lo:

Existem sistemas econômicos que matam, políticas migratórias que matam, comportamentos individuais que matam. E não só o corpo. Eles matam esperanças, palavras, possibilidades. Eles matam a confiança, que é o sangue vital de toda democracia.

E nós, aqui, esta noite, quem somos nós em tudo isso? Uma Faculdade de Teologia. No sul da Itália. Em Nápoles.

Podemos nos considerar um detalhe marginal. No entanto, acredito que um jogo sério está sendo jogado aqui. Porque teologia, nestes tempos, deveria significar algo muito concreto: pensar em Deus com as feridas do mundo sobre a mesa. Não em um canto. Não em um parágrafo final intitulado "actualizações pastorais". Na mesa. No centro. Ao lado da Bíblia, dos Padres, dos textos do Concílio, das grandes encíclicas sociais.

Uma cristologia que não é cruzada pelas cruzes da história torna-se retórica.

Uma eclesiologia que não escuta os silêncios das comunidades feridas torna-se um exercício de estilo.

Uma moral social que não é medida pela evasão fiscal "normal", pela corrupção "óbvia", pelo racismo "irônico", pelo machismo "tradicional", pelo populismo "instintivo", é uma teoria inofensiva. E não podemos nos dar ao luxo de teorias inofensivas.

O Evangelho não foi dado à Igreja para tranquilizar o pensamento certo, mas para desarmar as injustiças.

É aí que entra a responsabilidade desta casa.

Quero falar francamente com vocês, professores. Você têm uma ferramenta explosiva na mão: a palavra. Cada conceito que você explica, cada texto que comenta, cada exame que você prepara, pode se tornar um tranquilizante ou um detonador.

Peço que não domestiquem a doutrina social da Igreja. Não a relegue a um curso opcional, não o trate como um anexo, como um apêndice, como um "extra" para os poucos interessados. Faça disso um horizonte, uma linguagem, um contexto que percorra os tratados: Deus, Cristo, Igreja, sacramentos, moralidade, tudo.

Todo sacramento tem uma face social. 

Cada página de teologia tem uma consequência política.

Todas as definições soam, lá fora, na vida concreta das pessoas. 

Ao explicar o que é consciência, pense em objeções corajosas e confortáveis.

Quando você fala em liberdade religiosa, pense nas Igrejas perseguidas e também nas Igrejas que perseguem.

Quando você abordar o tema do pecado, não se esqueça dos pecados das estruturas, não apenas dos indivíduos.

Para vocês, estudantes, gostaria de dizer apenas o seguinte: não sejam espectadores.

Não vivam esses anos como um estacionamento esperando pela "vida real".

Deixem os rostos que vocês encontram entrarem aqui: o do prisioneiro que você olhou nos olhos pela primeira vez, o da mulher explorada, o do homem sem-teto deitado na frente da sua paróquia, o do garoto estrangeiro sentado no fundo da sala que entende metade das palavras.

Também analise as notícias que tiraram seu sono. Traga sua raiva, seu descontentamento, seu cansaço aqui. Deus não tem medo das suas perguntas. Nem mesmo teologia, se é que faz jus ao nome.

E agora deixe-me usar uma imagem.

Nápoles, afinal, é uma ótima estrada.

Uma rua onde as coisas não acontecem "em teoria", elas realmente acontecem.

Onde legalidade e ilegalidade andam lado a lado, muitas vezes na mesma faixa.

Onde a solidariedade pode ser vista em pratos de massa compartilhados, mas também nos silêncios que cobrem negócios sujos.

Onde a justiça não é um conceito abstrato, é a diferença entre aqueles que vão para casa à noite e aqueles que não vão.

Imaginamos a sociedade como uma estrada assim.

Legalidade são as placas: limites de velocidade, passagens de pedestres, semáforos. Pequeno, irritante, aparentemente inútil. No entanto, se desaparecerem, a estrada vira uma pista de aterrisagem.

Solidariedade é o gesto que nenhum código prescreve: diminuir a velocidade para que um idoso atravesse, parar quando alguém cair, colocar no carro aqueles que ficaram presos na chuva.

Justiça é a decisão de não aceitar que existem faixas de primeira e segunda classe, calçadas para os privilegiados e valas para outros. É rejeitar a ideia de que alguém vale menos só porque chegou tarde, nasceu em outro lugar, cometeu um erro uma vez.

Agora amplie a imagem:

O mundo inteiro é uma estrada planetária.

Comboios de armas e comboios de ajuda humanitária passam por ele.

Influenciadores e refugiados, gerentes e agricultores, generais e enfermeiros cruzam essa área.

Nossas casas, nossas escolas, nossas paróquias, nossas faculdades têm vista para esta estrada.
A pergunta é simples, brutal, inevitável:

Que língua queremos ensinar àqueles que caminharão depois de nós?

A linguagem do medo ou a da fraternidade?

A gramática da resignação ou a da indignação?

O alfabeto cínico de "salve minha vida e o resto não me diz respeito" ou o desconfortável de "ninguém é salvo sozinho"?

Este ano letivo que está começando pode ser muitas coisas. Pode ser uma entre muitas, com suas aulas, sessões de exames, suas teses encadernadas em azul.

Ou pode ser – mesmo que um pouco – um ano em que esta Faculdade decide não se limitar a falar sobre legalidade, solidariedade, justiça, mas começar a falar com ela com sua própria vida, sua própria organização, suas próprias escolhas.

Um ano em que a teologia, pelo menos aqui, à nossa maneira, para de andar na calçada e vai para as ruas. Com toda cautela, é claro. Mas sem o álibi da neutralidade.

Porque uma coisa, pelo menos, precisa ficar clara: a neutralidade, hoje, não é mais uma opção inocente.

Diante de guerras, migração, pobreza estrutural, crescentes desigualdades, violência de gênero, democracias vazias, uma teologia neutra não é imparcial: está do lado daqueles que sempre vencem. Então, em nome do Evangelho que proclamamos, temos o dever de ser um pouco menos prudentes e um pouco mais proféticos. Livre. Mais real. Mais exposto.

Confiemos essa coragem ao Deus que derruba os poderosos de seus tronos e levanta os humildes, que enche os famintos com coisas boas e manda os ricos embora de mãos vazias. Ao Deus que chamamos de Pai e que sonha para seus filhos não com obediência temerosa, mas com a liberdade dos justos.

Que "Legalidade, solidariedade: justiça" não permaneça o título elegante de uma palestra, mas se torne, dia após dia, a língua materna desta casa, de nossas comunidades, de nossas cidades.

Que assim seja.

E obrigado."

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