19 Março 2024
"É inegável a necessidade de algumas leis, como qualquer família necessita, mas também compreendemos que a amplitude de nosso código é inversamente proporcional à ausência de confiança e amor. O homem que precisa constantemente se ater às leis para nos seguir é um indivíduo que tem medo de nós porque, antes de tudo, tem medo de si mesmo. Ele não tem confiança nos valores humanos, não acredita em sua dignidade e não reconhece a impressão que Deus imprimiu nele. O confessor mais implacável é aquele que sofreu mais a influência distorcida do pecado".
A opinião é de Domenico Marrone, teólogo e padre italiano, professor no Instituto Superior de Ciências Religiosas de Bari, Itália, em artigo publicado por Settimana News, 15-03-2024.
Se muitas vezes a atitude dos crentes parece melancólica e severa. Isso se deve a uma abordagem doutrinária frequentemente impregnada de moralismo. Nessa perspectiva, a fé se configura como um catálogo de proibições, onde o moralismo supervaloriza a moral, considerando o Evangelho como um código rígido de conduta virtuosa.
O moralismo se manifesta como um excessivo conformismo às normas, revelando traços de legalismo e juridicismo, e se expõe em julgamentos que podem levar à desumanização moral. Às vezes, ocorre uma fusão acrítica entre o valor moral de uma norma jurídica e um ditame religioso, resultando em desumanização ou em uma condenação rígida, às vezes hipócrita, dos outros.
A concepção de Deus, no entanto, escapa de ser aprisionada ou limitada por doutrinas e leis. Não pode ser assimilada a uma ideologia moralista repleta de preceitos e detalhes tão exagerados a ponto de parecerem ridículos. Sua grandeza não pode ser comprimida pelas volúveis ideologias de nossa mente. O dom divino não pode ser sufocado por um moralismo clerical opressivo.
O Papa Francisco está profundamente ciente desses significados e repetidamente condenou em diversos discursos o difundido "modo de ser" que permeia principalmente o clero, chamando aqueles que estão afligidos por isso de "eticistas" [1]. Ele enfatiza que o cristianismo não pode ser reduzido a uma casuística de preceitos, pois essa perspectiva dificulta a compreensão e a experiência da alegria e da magnanimidade de Deus.
As pessoas por ele rotuladas como "hipócritas da casuística" ou "intelectuais sem talento" [2] são criticadas por falta de sabedoria ao encontrar e explicar Deus com inteligência. Esses indivíduos, segundo o papa, impõem numerosos preceitos que levam o povo de Deus a um beco sem saída.
O papa não parece considerar todos os presbíteros como legalistas e moralistas, nem nós o consideramos, mas honestamente destaca que muitos deles, ao se considerarem fiéis intérpretes da moral católica, assumem o papel de sábios capazes de indicar o caminho certo. Manifestam a presunção de serem os únicos depositários da verdade, como ministros de Deus, negligenciando buscar a verdade junto aos outros e ignorando que os valores não cristãos também têm importância.
Essa grande presunção é acompanhada pela ilusão de possuir o conhecimento completo das questões éticas, incluindo as mais íntimas da vida. Dessa forma, esquecem a lei da reciprocidade das consciências, como enfatizado pelo Concílio Vaticano II, que convida os cristãos a se unirem aos outros para buscar a verdade e resolver os problemas morais compartilhados na vida privada e social. "Na fidelidade à consciência, os cristãos se unem aos outros homens para buscar a verdade e resolver, segundo a verdade, numerosos problemas morais, que surgem tanto na vida privada quanto na vida social" (GS 16).
Para o Concílio, o aspecto crucial no diálogo com os não cristãos é representado pela questão da consciência individual. O que cria um vínculo entre cristãos e não cristãos não é a posse absoluta da verdade, mas o compromisso compartilhado na busca da verdade. O uso do termo "busca" enfatiza que a consciência não é uma realidade imune ao erro.
Segundo essa perspectiva, os presbíteros não são chamados a ser moralistas, mas sim companheiros de viagem na vida das pessoas. A Igreja deve ser um lugar acolhedor para todos, exigindo que os presbíteros estejam profundamente sintonizados com as questões das pessoas, sentindo-as como suas próprias. A oferta de ensinamentos morais deve derivar de um contexto de amizade autêntica; caso contrário, corre o risco de degenerar em moralismo. A tentação teológica de cair no moralismo representa um dos desafios aos quais os presbíteros lutam para resistir.
A estrutura básica do moralismo se manifesta na convicção de que o Evangelho pode ser reduzido a um conjunto de preceitos e leis. O ímpeto do moralista reduz a mensagem de Jesus Cristo a um manual de códigos comportamentais, substituindo o cerne do Evangelho por uma instrução moral rígida.
O moralista negligencia o fato de que há mais de dois mil anos, em um mundo imerso na confusão e no cansaço, surgiu uma esperança nova e cativante. Na Palestina, um homem de origem judaica surgiu, portador de palavras divinas. Ele estava impregnado pela potência e beleza de uma tradição religiosa sem igual, tanto no Oriente quanto no Ocidente. Ele escapava da mesquinhez dos fanáticos religiosos e não se submetia aos interesses de uma única nação ou raça específica. Seu sangue pulsava com a mesma paixão de Abraão e Davi, a mesma linfa que continuaria a fluir nas veias do povo judeu através dos séculos.
Os olhos desse homem repousavam com compaixão sobre qualquer pessoa que sofresse, enquanto suas mãos curativas se estendiam à mulher fraca e pecadora, ao leproso marginalizado pela sociedade, ao cego tornado insuportável até mesmo para amigos e parentes com seus lamentos. Aqueles que estavam deprimidos, ao ouvi-lo, sentiam um súbito sussurro de energia dentro de si. Os culpados, diante dele, começavam a se respeitar novamente como seres humanos.
Contagiado por esse encanto, Paulo, em sua Carta aos Romanos, afirmou que o homem foi "libertado da lei" e agora poderia viver através do poderoso sopro do espírito do amor. Com isso, ele não pretendia abolir a lei religiosa, mas sim enfatizar que o homem, em suas angústias pessoais, não deveria mais depender apenas de regras frias a serem aplicadas em cada situação. O homem poderia ser um indivíduo porque agora podia conhecer um Deus pessoal que se recusava a ser confinado em um único ritual religioso ou julgado inapelavelmente por um sumo sacerdote.
O homem não podia mais aceitar relegar a ideia de Deus ao nível de ídolos inertes, destinados apenas a preservar o orgulho e a mesquinhez humanos. Ele não podia mais confinar Deus aos confortáveis arquivos construídos à semelhança de seus semelhantes. Nesse novo contexto, nenhuma estátua poderia conter sua majestade, e nenhuma lei ou código poderia ditar com precisão os detalhes das condições da misericórdia e do amor divino.
Deus, livre de limites, não pode ser restringido pela cegueira ou egoísmo dos homens amedrontados. Apesar dos esforços de Cristo para pôr fim às angústias religiosas e apesar dos avisos e reformas ao longo da história, não faltam entre os homens da Igreja aqueles que tentam circunscrever e conter Deus. Eles iludem-se ao conhecer os limites de seu amor, os limites de sua paciência. Com leis pretensiosas e sem fundamento, tentam sacrilegamente impor limites ao divino.
O ideal do amor cristão, desejado pelos discípulos de Jesus, às vezes foi distorcido por uma lei implacável em uma vida tornada impossível. Como pudemos abraçar uma religião legalista e moralista, quando Cristo prometeu derrubar tais padrões?
A teologia deveria constituir uma disciplina que instrua o homem de qualquer época sobre a maneira mais proveitosa de amar o seu Deus. Deveria pegar os tesouros do Evangelho e transformá-los em palavras e conceitos capazes de explicar ao homem contemporâneo como viver e amar. No entanto, com demasiada frequência, a nossa teologia se transformou em um exercício acadêmico estéril. Tornou-se um código de regras originadas de guerras insensatas desencadeadas por rancores religiosos.
Representa uma coleção de verdades murchas que servem apenas para privar o homem de sua responsabilidade pessoal e relegá-lo a um estado de indiferença típico dos escravos aterrorizados. Deve-se ressaltar que estou ciente dos sofrimentos de muitos presbíteros que desaprovam a mentalidade restrita que descrevi, mas muitas vezes não encontram as palavras ou a coragem para enfrentá-la abertamente.
Precisamos nos emancipar de um sistema moralista que submete nossas vidas. Devemos nos libertar de um legalismo que transforma a pureza de um amor pessoal e cristão em um mundo de medo e culpa. Muitos cristãos não aprenderam como buscar a Deus; eles apenas foram instruídos a respeitar as leis, evitar o pecado, temer o inferno e carregar uma cruz autoimposta.
É necessário desenvolver uma fé que nos liberte do legalismo, que enterrou nossa consciência sob o peso da culpa e do terror, privando-nos do nosso Deus. Precisamos de uma fé renovada em nós mesmos, na semelhança com Deus que carregamos em nossos corpos e corações. Desejamos aprender a arte do amor, nós que aprendemos apenas a respeitar rituais e regras.
Lembra as sábias palavras de Pasternak quando afirmava com sagacidade: "Se a besta que jaz no íntimo do homem pudesse ser contida por ameaças - qualquer ameaça, seja prisão, seja retribuição após a morte - então o mais alto símbolo da humanidade seria o domador de leões no circo, com o chicote, em vez do Profeta que se sacrificou". É evidente que o legalismo não será a nossa salvação.
É imperativo libertar-se de um ministério ordenado que se manifesta com arrogância e não reconhece outro caminho senão o da lei. É um exercício pretensioso que mantém um vasto número de filhos constantemente à espera de sua autoridade. É uma prática orgulhosa que fecha os ouvidos e não dá ouvidos a milhões de vozes cheias de sofrimento. É um estilo que sufoca os ideais evangélicos sob uma massa de leis, um ministério prejudicial que perdeu a confiança na humanidade, uma maneira de agir irascível, propensa à condenação. No entanto, não podemos ficar em silêncio quando vemos o amor essencial relegado a um papel secundário em relação à lei.
A sedução do moralismo constitui a linfa vital de sua potência. Somos facilmente induzidos a acreditar que podemos obter toda a aprovação de que precisamos por meio de nosso comportamento. Naturalmente, para ceder a essa sedução, devemos concordar com um código moral que defina um comportamento aceitável, com numerosas brechas: a maioria dos moralistas não aspira a estar isenta de pecado, mas simplesmente a estar acima do escândalo, considerando isso suficiente.
A influência do moralismo permeia todos os aspectos da vida presbiteral, infundindo-se em meu comportamento no confessionário, difundindo-se em cada ato de ensino e animando todo o trabalho pastoral.
Não é possível receber confissões agindo como um guardião rígido preocupado exclusivamente com a observância da lei. A vida presbiteral não pode prescindir de uma atitude de misericórdia e amor pessoal, nem pode ignorar a verdadeira missão do presbítero. Não é mais aceitável ser juízes ou carcereiros, ritualistas ou pregadores de palavras gastas, defensores de uma tradição chamada a escolher entre reformar-se e perecer.
É inegável a necessidade de algumas leis, como qualquer família necessita, mas também compreendemos que a amplitude de nosso código é inversamente proporcional à ausência de confiança e amor. O homem que precisa constantemente se ater às leis para nos seguir é um indivíduo que tem medo de nós porque, antes de tudo, tem medo de si mesmo. Ele não tem confiança nos valores humanos, não acredita em sua dignidade e não reconhece a impressão que Deus imprimiu nele. O confessor mais implacável é aquele que sofreu mais a influência distorcida do pecado.
O paradoxo emerge na tentativa de mascarar a corrupção na alma sacerdotal através da exibição de um moralismo mais rígido, especialmente severo para com os outros. Dessa forma, como afirma o Papa, em vez de persuadir as pessoas sobre o amor e o perdão divinos, nós as assustamos. O sinal claro dessa erosão, quando assume o controle, é facilmente identificável. As palavras e ações evangélicas, ou seja, o que Jesus ensina a seus discípulos a dizer e fazer, acabam por nos parecer excêntricas.
O legalista mais inflexível é aquele que mostra a maior inclinação para violar a lei. Ele também carece de confiança em sua própria humanidade, o que implica uma admissão tácita de que o mundo está destinado ao fracasso. Esta é uma fé de natureza neurótica.
É o moralismo que permite a muitos presbíteros pregarem sem preparação, confessarem com tom arrogante, se regozijarem com elogios não merecidos, ignorarem críticas, persistirem em seu infantilismo, nutrirem suas ambições, evitarem responsabilidades, atrofiarem intelectualmente, congelarem emocionalmente, se autoindulgenciarem na compaixão por si mesmos e ignorarem as ansiedades e sentimentos de seus fiéis.
A mentalidade legalista se caracteriza por sua mesquinhez e estreiteza, incapaz de avançar sem a orientação de diretrizes jurídicas que aprovem até mesmo o menor progresso de seu pensamento. Ela não se contenta em seguir as regras do amor cristão ou em descobri-las na aventura de uma vida dedicada.
O legalista recebe com um sorriso a perspectiva dessa busca, considerando a honesta busca por Deus como uma atitude egoísta e negligente. Ele conhece apenas o caminho da lei, convencido de que é o único caminho, mesmo quando milhões de pessoas gritam sua dor.
"Quão magnífica é a liberdade, a magnanimidade e a esperança de um homem ou uma mulher da Igreja! Em contraste, quão feio e prejudicial é o rigor de um membro do clero, o rigor clerical, que é desprovido de esperança" [3].
Para os presbíteros, é sempre uma realidade que o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado? Ou, em muitas circunstâncias, prevalece o legalismo com sua doutrina e códigos, deixando de lado qualquer referência ao espírito, apesar da ênfase neste último?
O moralismo, ao apresentar o cristianismo através do filtro da legalidade, pode parecer vital, mas na realidade já está desprovido de vida. A transformação da adesão a Cristo em um mero dever marca o fim do verdadeiro discipulado cristão. As consequências disso são claras: a proposta evangélica é percebida como um fardo. Diante desse peso, a tentação é reduzi-lo ou, pelo menos, interpretá-lo de forma que seja menos pesado.
Uma série ininterrupta de lembretes e decretos emitidos pela autoridade testemunha a pervasividade desse moralismo tornou-se insustentável. Continuamente enfatiza-se o que é certo ou errado, o que é autêntico e o que é muito pessoal.
Uma lista prolongada de preceitos é imposta para cada ato e gesto da vida cristã, seja na liturgia, na moralidade, na família, na arte, na música e assim por diante, com destaque especial: o próprio moralismo é suscetível a interpretações, tanto por parte de quem o impõe quanto por parte de quem o sofre. O moralismo constitui a sepultura de toda fé, especialmente em contextos pouco entusiastas, onde é fácil apelar para leis e regulamentos. Desta forma, perde-se a dimensão da esperança e diminuem-se as perspectivas de entusiasmo.
Até mesmo Cristo foi objeto do moralismo de seus concidadãos; não apenas isso, ele experimentou a rejeição de sua proposta com indiferença, egoísmo e ódio.
Além disso, se nos aprofundarmos demais nos detalhes, há o risco de cair em prescrições excessivas que hoje estão em vigor e amanhã podem não estar; hoje podem ser consideradas graves, enquanto ontem não o eram, ou vice-versa. Por fim, o moralismo obstrui qualquer diálogo autêntico. Ao fixar os limites rígidos da ortodoxia, ele impede a possibilidade de ouvir, refletir e ajustar a própria fé.
Nota-se que a principal atenção não está tanto na vida quanto na organização. Cria-se um organograma que não deixa nada ao acaso, aparentemente estruturado para a verdade, mas na verdade destinado ao controle. O dom da unidade e da comunhão é certamente precioso, mas é necessário evitar impô-lo excessivamente. Um excesso de zelo pode gerar uma submissão passiva, baseada em uma adaptação externa e formal.
Na presença de uma pressão autoritária excessiva, tendências anárquicas são ativadas porque cada um, diante dessa coerção, tende a definir autonomamente sua própria síntese. Tudo isso é resultado da obsessão pela unanimidade, como se ser fiel a Cristo e membro de um presbitério exigisse uma só mente e um só coração.
A ausência de uma verdadeira comunhão é um efeito prejudicial do moralismo que permeia tudo. Quanto mais se enfatiza a unidade, menos se sente um sentido de comunhão. Falta a coragem de um confronto autêntico, forte e leal, baseado em escolhas compartilhadas que derivam da escuta e da reflexão. Prefere-se uma pseudounidade, optando por caminhos (de espiritualidade, de pastoral, de governo) que são resultado de compromissos.
Dessa forma, manifesta-se não tanto autoridade quanto autoritarismo. No entanto, no contexto do cristianismo, o autoritarismo não é possível, pois diante de Deus, todos somos servos inúteis, incapazes de interpretar sua mensagem. Cada um tem o direito, mas também o dever, de aprofundar sua própria dimensão decorrente da graça do relacionamento com Deus. Um excesso de ordem emana uma aura de morte, uma espécie de lastro que impede o Espírito de soprar onde quer. A fraqueza da proposta cristã no Ocidente gerou aparatos burocráticos, tornados onipresentes, complexos e negativos [4].
Eliminar moralismos, preconceitos, indolência, sede de poder e todas as pesadas cargas estranhas à fé é essencial para tornar o catolicismo mais acolhedor para os homens contemporâneos. Nos tempos atuais, há uma extrema necessidade de santidade, pois diante da mercantilização do homem, ela representa a única condição capaz de devolvê-lo à extraordinária grandeza para a qual foi criado. A santidade não é uma rendição inerte, mas sim uma força de plenitude, uma maneira de ser que abraça a totalidade dos pensamentos e sentimentos do homem, permitindo-lhe realizar cada ato na luz do amor.
[1] Cf. Francisco, Homilia na Santa Marta de 19 de junho de 2013.
[2] Cf. Francisco, Homilia na Santa Marta de 21 de fevereiro de 2014.
[3] Francisco, Homilia na Santa Marta, 14 de dezembro de 2015.
[4] Cf. V. Albanesi, Os três males da Igreja na Itália, Âncora, Milão 2012, p. 113-117.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Padres entre o moralismo e o legalismo. Artigo de Domenico Marrone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU