As tentações do ministério [3]: a hipocrisia. Artigo de Domenico Marrone

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12 Mai 2023

"Vício da incoerência moral e da mesquinhez existencial, a hipocrisia tem uma longa história. A palavra 'hipocrisia' vem do grego 'hypókrisis' e do verbo 'hypokrínomai', que significa 'interpretar um papel'. E, originalmente, o termo "hypokrités" pertence à linguagem do teatro[1]. De fato, em uma representação teatral acontece que, por exemplo, um ator, que pode ser ignorante, apareça no palco como um sábio", escreve Domenico Marrone, teólogo e padre italiano, professor no Instituto Superior de Ciências Religiosas de Bari, na Itália, em artigo publicado por Settimana News, 11-05-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.

Leia o primeiro artigo da série "As tentações do ministérioaqui e o segundo aqui.

Eis o artigo.

Um dos comportamentos que mais prejudicam a Igreja e muitas pessoas de boa vontade é a hipocrisia, que resulta ser mais frequente do que imaginamos. Tão frequente que nós, como hipócritas, nem mesmo nos damos conta das insistentes doses de hipocrisia que falsificam muitas de nossas decisões e comportamentos.

Comportamentos dos quais muitas vezes até nos orgulhamos, quando, na verdade, o que fazemos é transformar a vida, a convivência e sobretudo a religiosidade em uma mentira, que, se analisada a fundo, deveria nos causar rejeição e vergonha pelo que fazemos, falamos e desejamos.

As palavras, a vida

Nos ambientes eclesiásticos, as pessoas têm dificuldades para serem coerentes com o que afirmam e alinhadas com quem supõem ser. A hipocrisia, aqui, parece ser a arma a ter sempre à mão para manter os privilégios e, se for possível, aumentá-los, contando com a boa fé e o espírito de tolerância dos outros.

A sua função torna-se o seu fingimento e esta alimenta e sustenta o seu lugar e a sua autoridade eclesial. O medo de se revelar pelo que são - criaturas pobres e frágeis como todas as outras - faz com que se identifiquem cada vez mais com a função que desempenham, até a prevalência definitiva da função. São hipócritas de função: pessoas com elevado poder de decisão.

Ao aumentar o valor dos colaboradores, eles os impulsionam para metas improváveis que exigem enormes esforços. Declaram-se disponíveis e abertos a discutir reconhecimentos e recompensas com cada um, sem que isso depois aconteça. Sua máscara serve apenas para alcançar posições mais gratificantes ou de maior poder e peso.

A pessoa é substituída pela suposta superioridade impositiva farisaica, refratária à consciência decisória do interlocutor, considerado abstratamente, sem história ou uma situação própria para gerir autonomamente.

Assim, pouco a pouco, tudo é pensado e vivido tendo em vista o fim a que se propuseram, o decoro da religião, e isso acaba por legitimar até comportamentos injustos, mas considerados necessários para dar glória a Deus a todo o custo; justificam tudo com a glória que cabe a Deus e, tendo-se tornado cegos (cf. Mt 23,16), não veem que, na realidade, dão glória apenas a si mesmos.

A tentação farisaica do ministério

É a tentação do fariseu que reivindica o privilégio de ser a voz de Deus, para justificar o exercício monocrático do poder, que, por interesse próprio, assume também o uso legítimo da mentira. A concepção autoritária ainda se vale da dependência conformista, revivida nos nossos dias na curvada, irresponsável, obediência acrítica ou obediencialismo. Portanto, o farisaísmo se mascara com a hipocrisia do rito religioso (culto), da lei (justiça), do rigor (misericórdia), do conhecimento (verdade), do poder (autoridade).

Vício da incoerência moral e da mesquinhez existencial, a hipocrisia tem uma longa história. A palavra "hipocrisia" vem do grego "hypókrisis" e do verbo "hypokrínomai", que significa "interpretar um papel". E, originalmente, o termo "hypokrités" pertence à linguagem do teatro[1]. De fato, em uma representação teatral acontece que, por exemplo, um ator, que pode ser ignorante, apareça no palco como um sábio.

O sociólogo canadense E. Goffman em "A representação do Eu na vida cotidiana" argumenta que o mundo é uma grande representação teatral. Nela, cada um veste uma máscara e assume um papel, de acordo com os diferentes contextos; cada um cria uma imagem de si para representar, muitas vezes diferente do que realmente sente e sabe sobre si mesmo.

Na convicção de que, na grande representação que é o nosso mundo, é preciso fingir para obter vantagens, ou mais simplesmente para deixar a vida fluir com mais facilidade, sem sobressaltos e reviravoltas. Cenários semelhantes são abertos pelas palavras de Pirandello em "Um, nenhum e cem mil": “Ao longo do teu caminho conhecerás, todos os dias, milhões de máscaras e pouquíssimos rostos”.

O Papa Francisco falou de máscaras: “O hipócrita é uma pessoa que finge, lisonjeia e engana porque vive com uma máscara no rosto e não tem coragem de se confrontar com a verdade (…). Pode-se dizer que é medo da verdade. O hipócrita tem medo da verdade. Prefere-se fingir em vez de ser si mesmos. É como maquiar a alma, maquiar-se nas atitudes, maquiar-se no modo de proceder: não é a verdade. ‘Tenho medo de proceder como eu sou e me maquio com essas atitudes’. E o fingimento impede a coragem de dizer a verdade abertamente e assim escapa-se facilmente à obrigação de a dizer sempre, em todo lado e apesar de tudo. O fingimento leva a isto: a meias-verdades (…). O hipócrita é aquele que finge, bajula e engana porque vive com uma máscara no rosto, e não tem coragem de se confrontar com a verdade. Por isso não é capaz de amar realmente - um hipócrita não sabe amar -, limita-se a viver do egoísmo e não tem forças para mostrar o seu coração com transparência (...). A hipocrisia na Igreja é particularmente detestável e, infelizmente, a hipocrisia existe na Igreja, e há muitos cristãos e muitos ministros hipócritas"[2].

Dom Lorenzo Milani – estamos no centenário de seu nascimento – escreveu uma carta apaixonada em 1958 na qual afirmava que o seminário deve formar seminaristas sinceros: dispostos a todo custo a passar por cima das regras da educação, da etiqueta, da vida tranquila, do pensamento conformista, das pessoas que importam, enfim, de seu próprio benefício, para não faltar com a verdade[3].

E em outro texto acrescenta: “Criticaremos nossos bispos e cardeais com serenidade, visto que nas leis da Igreja não está escrito que não possa ser feito... Criticaremos nossos bispos porque queremos o seu bem, isto é, que se tornem melhores... Nenhum bispo pode se gabar de não ter nada para aprender. Talvez ele precise mais do que todos nós devido ao isolamento a que o próprio cargo o obriga"[4].

Infelizmente, no clima eclesial atual, por um lado, exalta-se a categoria da sinodalidade, por outro, recorre-se astutamente ao bicho-papão da fofoca para sufocar e culpabilizar quem ousa exercer o direito de crítica. São também essas formas de autoritarismo e clericalismo, disfarçadas de espiritismo.

Para tomar consciência do nosso nível de autenticidade e credibilidade, é necessária a referência a três parâmetros ético-sociais fundamentais[5].

Perfis de autenticidade

O primeiro parâmetro é aquele interpessoal. É nas relações com o outro que podemos medir o nosso empenho e testemunhar as nossas convicções. Só através dos outros - de quem nos aproximamos conforme a situação - é que podemos tornar concreta a nossa disponibilidade e dedicação. O resto é retórica.

O segundo parâmetro é aquele da estrita correlação entre conhecimento e existência. Conhecimento e vida devem se espelhar, senão é hipocrisia.

O terceiro parâmetro é o da estreita interconexão entre a vida social, a vida religiosa e o aspecto ético. Trata-se da estreita interconexão entre a nossa liberdade e o senso de responsabilidade. Entre essas duas dimensões do nosso ser deve poder existir um espelhamento constante. Caso contrário, somos hipócritas.

A autenticidade de uma pessoa é aquela que, na sociedade, se mostra como ela é, sem fingimento ou hipocrisia. Também me fazem pensar as palavras de São Paulo “a caridade não deve ter fingimentos”, ou seja, o mesmo amor a Deus implica que se tenha uma vida linear com o próximo, não dupla, sem simulações oportunistas. Não é por acaso que Dante confia no amor para superar "adulação com simonia impura, Hipócritas, falsários, feiticeiros, Rufiães e outros dessa laia escura"[6].

Para esse fim, acho interessante o que Bento XVI afirma sobre si mesmo: “Eu sou o que sou. Eu não tento ser outro [...]. Eu não tento me tornar algo que não sou."[7].

O Papa Francisco, na mesma linha, confidencia que busca sempre “a autenticidade: percebi que nunca teria feito nada que não fosse autêntico, nem mesmo para comprar amor e estima do próximo. Eu também lutei contra a sociedade das aparências e continuo a fazê-lo aceitando-me tal como sou [...]. A verdade sempre tem duas caras. E a autenticidade é a via para se salvar [...]. Ser amados é uma das consequências da autenticidade"[8].

A autenticidade é sempre uma vantagem! É possível ser si mesmos, lutar para alcançar os objetivos mesmo sem subterfúgios mentais e sem submeter a nossa personalidade a nenhuma máscara. A hipocrisia é um subterfúgio infantil estressante para angariar aceitação e posse que, a longo prazo, nunca compensa.

A hipocrisia, a meu ver, é sobretudo a ocultação da própria pessoa, que, em vez de se manifestar na sua genuinidade ou naturalidade, tal como é, prefere, por interesses consolidados, esconder-se, especialmente, em ideologias, estruturas de poder, sistemas de vida ultrapassados! A hipocrisia é uma característica que esconde, por trás das aparências amigáveis, um desejo de poder voltado para outra coisa. Essa outra coisa pode ser: a posse de um bem, a obtenção de um cargo, a conquista da benevolência. Em todos esses casos, o objetivo real não é o declarado primário. O hipócrita, portanto, dissimula e disfarça suas verdadeiras intenções.

Sinceridade a cultivar

De minha parte, aprecio muito mais uma pessoa sincera. Sinto incômodo, mal-estar em lidar com gente hipócrita, que faz jogo duplo, que posa com fingimento. Tentam te enganar com um sorriso nos lábios, talvez exibindo, ocasionalmente, afetações empoladas religiosas de alta teologia ou vibrante espiritismo!

“Como os portões do Hades me é odioso aquele homem que esconde uma coisa na mente, mas diz outra. Pela minha parte direi aquilo que me parecer melhor” Aquiles responde com raiva a Odisseu quando o rei de Ítaca tenta convencê-lo a voltar a lutar após a desfeita de Agamenon[9]. Uma referência antiga para uma atitude que nunca saiu de moda: a da hipocrisia.

Por outro lado, o encontro com pessoas genuínas (apesar dos inevitáveis defeitos de cada um de nós) é um prazer, um suspiro de alívio, uma saudável lufada de ar fresco. Quero ficar perto delas, certo de que não estarei falando com figurantes, mas com pessoas naturais, autênticas, "simples como as pombas" (Mt 10,16), refratárias a toda recitação hipócrita.

A este propósito, soam esclarecedoras as palavras com que o Papa Francisco recorda uma memória juvenil: “Lembro-me, quando era estudante de filosofia, um idoso jesuíta, manhoso, bom, mas meio ardiloso, que me aconselhou: se queres sobreviver na vida religiosa, pensa claro, sempre; mas sempre fala obscuro. É uma forma de hipocrisia clerical, por assim dizer. Não, eu penso assim, mas tem o bispo, ou tem aquele vigário, tem aquele outro... melhor ficar quieto... e depois acerto tudo com os meus amigos"[10].

Considero que o modelo evangélico, o protótipo, que assume valor emblemático, no que diz respeito à genuinidade da pessoa, é Natanael. Acho-o claro, transparente, com uma franqueza simpática, que, sem hesitar, diz o que pensa, sem dissociação entre o interior e o exterior da pessoa. Não há nele nenhuma dissimulação da personalidade entre as quais entram as várias formas de reticências dos subordinados face ao poder, e que resulta oposta à franqueza, isto é, a "dizer tudo o que se pensa".

Ele é o homem simples e equilibrado, "em quem não há falsidade" (Jo 1,47). Interessante, do ponto de vista da autenticidade, é também João Batista, que duvida sinceramente da identidade messiânica de Jesus, ainda vivendo segundo o Antigo Testamento. Dele, porém, Jesus diz: "Entre os nascidos de mulher não surgiu outro maior" (Mt 11,11).

A teatralidade enganosa é frequente na vida. Mas no comportamento religioso ela ocorre e se reproduz com mais frequência e de forma mais perigosa. Porque no campo da religião os "ritos" são decisivos. Porque no comportamento religioso o primordial é o "rito", não o "ethos", a ética, a conduta. E "um rito é uma sucessão de ações que, pela estrita observância de regras, se tornam um fim em si mesmas"[11].

Por isso, precisamente por isso, a fiel observância religiosa pode tornar-se- e geralmente se torna - um engano e um perigo. O rito, bem executado, tranquiliza a consciência, mas não melhora o comportamento.

Ao contrário da inquietação que caracteriza a vida do não-hipócrita. Ele não diz o que os outros querem ouvir. Com sua liberdade e coerência, coloca em dificuldade aqueles que se alimentam de aparência interessada e dificilmente cria consenso sincero ao seu redor. O não-hipócrita sente dirigidas, em primeiro lugar para si mesmo, as palavras de Jesus, que considera a hipocrisia como uma categoria (i)moral: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que sois semelhantes aos sepulcros caiados, que por fora realmente parecem formosos, mas interiormente estão cheios de ossos de mortos e de toda a imundícia”. (Mt 23,27).

A cara do Filho

Alain de Lille, monge cisterciense que viveu no início do século XIII, comparava os hipócritas aos avestruzes: têm um corpo grande, cheio de penas e também têm asas, mas, por serem pesados, não podem voar; assim o hipócrita que, segundo ele, parece ter tantas virtudes que se assemelha aos santos, mas não sabe voar para Deus[12]. Muito resumidamente, o hipócrita usa as palavras dos santos, mas não tem a sua vida; seu empenho não é oferecer-se a Deus, mas expor-se à vista dos homens[13].

O ministério sagrado é o oposto da hipocrisia. O trabalho de um bom ator é representar bem o personagem que ele interpreta; quanto melhor for, de fato, melhor sabe fazê-lo, escondendo a si mesmo. O cristão, pelo contrário, nunca transforma a sua numa apresentação teatral, mas empenha-se em torná-la vida real.

Os ministros ordenados são chamados a mostrar o rosto de Cristo: esse é o significado do agere in persona Christi. Essa não é a máscara usada em alguns momentos de suas vidas, um truque que dura o tempo de um rito litúrgico. Mas a verdade de sua vida todos os dias.

Notas

[1] Cfr. H. Giesen, Christliches Handeln. Eine redaktionskritische Untersuchung zum “diakonische” Begriff in Mattheusevangelium – EHS XXIII – 181, Frankfurt am M, 1982, 216-219).

[2] Francisco, audiência em 25 de agosto de 2021.

[3] Cfr. Cf. M. Landi, “Tutto al suo conto”. Don Lorenzo Milani con Dio e con l’uomo, San Paolo, Cinisello Balsamo (MI), 2023, p. 47

[4] Cf. L. Milani Tutte le opere, Mondadori, Milão 2017, pp. 683-695.

[5] Cf. C. Mandia, L’ipocrisia. Il fariseismo ieri e oggi, Moralcchi Editore U.P., 2019, p. 10.

[6] Dante, Inferno, XI, 58-60.

[7] Bento XVI, Luz do mundo, LEV, Cidade do Vaticano, 2010, (or. it. p. 162).

[8] Francisco, Deus é jovem, Piemme, Milão, 2018, (or.it. p. 78-79, 107-108).

[9] Cf. Homero, Ilíada, IX, 312-313.

[10] Francisco, Encontro com sacerdotes, religiosos, seminaristas do seminário regional e diáconos permanentes, Bolonha, 1 de outubro de 2017.

[11] G. Theissen, La religione dei primi cristiani, Claudiana, Turim 2004, p. 162.

[12] Cf . Distinct. Dict. Theol. H: PL 210, 810.

[13] Cf. Isidoro de Sevilha, Sententiae XXIV, 1-2: PL 83, 699.

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