Guiné-Bissau junta-se aos países do "cinturão de golpes militares" do Sahel e da África Ocidental

Bandeira de Guiné-Bissau | Foto: natanaelginting/Canva

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28 Novembro 2025

Desde 2020, vários países da região sofreram golpes de Estado e forças militares tomaram o poder no Mali, Níger, Burkina Faso, Guiné, Chade e, a partir desta quarta-feira, na Guiné-Bissau.

A reportagem é de Soraya Aybar Laafu, publicada por El Diario, 27-11-2025.

Na quarta-feira, 26 de novembro, tiros ecoaram no coração de Bissau, confirmando um golpe de Estado na Guiné-Bissau, três dias após as eleições gerais. Isso marcou a entrada do país na lista de outros na região do Sahel e ao longo da costa oeste da África que seguiram o mesmo caminho desde 2020 .

Um grupo de oficiais, apresentando-se na televisão estatal como Alto Comando Militar para a Restauração da Ordem Nacional, anunciou a prisão do presidente do país, Umaro Sissoco Embaló, o fechamento de instituições públicas, a suspensão do processo eleitoral, o fechamento das fronteiras e um toque de recolher. Nesta quinta-feira, a junta militar instalou o general Horta N'ta como chefe de um novo governo militar, enquanto Embaló fugiu para o Senegal, segundo o governo daquele país, que faz fronteira com a Guiné-Bissau.

O golpe ocorreu apenas três dias após as eleições legislativas de 23 de novembro, cujos resultados oficiais ainda não haviam sido divulgados, enquanto o próprio Embaló e o candidato da oposição, Fernando Dias da Costa, já se haviam declarado vencedores antecipadamente.

O contexto que envolve o golpe inclui a exclusão do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), partido histórico do país, das eleições; a dissolução do Parlamento em 2023 pelo presidente Embaló; e um clima hostil marcado pela prisão de figuras da oposição e acusações de abuso de poder por parte do governo. Embora os militares afirmem ter agido para "restaurar a ordem", permanecem dúvidas sobre as verdadeiras motivações por trás da sua intervenção.

Mapa de Guiné-Bissau. (Foto: Wikimedia Commons)

Um ciclo que se repete

A Guiné-Bissau não chegou a este ponto repentinamente. Desde a sua independência de Portugal, em 1974, o país africano vivenciou quatro golpes de Estado bem-sucedidos, além de uma série de tentativas de golpe. Levantes, crises militares e assassinatos políticos nos mais altos escalões do governo ocorreram em 2003, 2010, 2012 e 2020.

Em 2022, no auge do ataque ao palácio presidencial, Embaló afirmou ter frustrado uma tentativa de golpe “muito séria”, declaração que a oposição da época denunciou como uma manobra política para consolidar seu poder. Desde então, a politização do exército, as lutas internas pelo poder e a infiltração de atividades criminosas, especialmente redes de narcotráfico, criaram um cenário de fragilidade no equilíbrio institucional.

O mais recente episódio militar na Guiné-Bissau não pode ser dissociado do contexto regional. Desde 2020, a África Ocidental e a região do Sahel têm testemunhado golpes militares no Mali, Guiné, Burkina Faso, Níger, Chade e Gabão. Como apontam os analistas, essa sequência enfraqueceu a capacidade de dissuasão da Comunidade dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e fortaleceu outros agrupamentos político-militares, como a Aliança dos Estados do Sahel (AES).

A área em laranja abrange o território do Sahel. (Mapa: stepmap.de)

As causas subjacentes do golpe

Em entrevista ao elDiario.es, o especialista em geopolítica internacional Sani Ladan explica que a crise atual “não começou em 26 de novembro”, mas sim decorre de um sistema político que tem sido “muito frágil e personalizado desde a independência”, onde as instituições não funcionam como um freio ao poder e as elites historicamente operam de forma informal. Segundo Ladan, a Guiné-Bissau combina três fatores estruturais: um exército altamente politizado, uma classe política ligada a redes econômicas opacas e uma carência crônica de instituições independentes.

As eleições de 23 de novembro já ocorreram em circunstâncias instáveis, marcadas pela exclusão da principal coligação da oposição (a Plataforma Aliança InclusivaA Terra Começa), um clima de acusações de fraude e dois candidatos declarados vencedores antes do anúncio oficial. Segundo Ladan, isso tornou as eleições “altamente contestadas e carentes de credibilidade”.

O golpe ocorreu apenas um dia antes da Comissão Eleitoral publicar os resultados oficiais. Os generais apareceram então na televisão alegando que estavam agindo para impedir a “manipulação da contagem”. No entanto, como argumenta o analista, “a suspensão do processo eleitoral, o bloqueio da internet e a paralisia da comissão responsável pela apuração dos votos parecem mais uma tentativa de congelar um momento politicamente desconfortável do que uma medida para proteger a transparência”.

Uma narrativa militar credível?

A versão oficial do exército, de que interveio para "restaurar a ordem", tem, nas palavras de Ladan, "credibilidade limitada". O especialista em política africana sugere que, se a prioridade fosse realmente garantir a integridade do processo eleitoral, a ação lógica teria sido assegurar a segurança da Comissão Eleitoral e dos observadores internacionais, e não prender o presidente e suspender a contagem dos votos.

Além disso, a União Africana, a CEDEAO e as Nações Unidas descreveram o movimento como uma violação da ordem constitucional: "Ninguém que observa o processo no terreno acredita na ideia de um golpe em prol da democracia", destaca Ladan.

Nesse cenário, o Exército não aparece como um árbitro neutro, mas sim como “uma das facções que disputam o controle do regime em um momento de máxima incerteza”, aponta Ladan. Além disso, ele enfatiza que o golpe atual não pode ser dissociado das manobras anteriores do governo: “A presidência de Embaló recorreu repetidamente à tática de temer um golpe, prendendo comandantes militares, denunciando conspirações e fechando espaços políticos. A linguagem da ameaça constante tornou-se uma ferramenta de poder.”

Em outubro, semanas antes das eleições, as autoridades prenderam vários oficiais acusados ​​de conspirar para um golpe de Estado. Esse padrão, segundo Ladan, demonstra uma “normalização do estado de exceção”. O clima de repressão usado para justificar medidas extraordinárias tomadas por aqueles no poder gerou uma crise persistente, como apontam diversos depoimentos na publicação Jeune Afrique.

As consequências do golpe

Ao argumentar que o golpe interrompeu deliberadamente o processo democrático, Sani Ladan identifica duas consequências previsíveis. A curto prazo, ele aponta para a concentração de poder nas mãos dos militares, prisões seletivas de pessoas ligadas à oposição, restrições às liberdades, controle da mídia e pressão sobre a sociedade civil. A população já utiliza VPNs para contornar a censura.

A nível regional, espera-se uma forte resposta. A CEDEAO já suspendeu o país, tal como fez com o Mali, o Burkina Faso e o Níger, e está também a ponderar a aplicação de sanções. Outras organizações multilaterais e parceiros internacionais irão rever a sua cooperação e financiamento: “Para um país pequeno e empobrecido, dependente de ajuda externa, o impacto será imediato e a população sofrerá”, salienta Ladan.

Por outro lado, a médio prazo, o país poderá entrar numa fase de governação mínima, em que o novo governo terá pouca legitimidade interna e externa. A falta de instituições e de continuidade política poderá agravar as redes informais de tráfico de droga e levar a Guiné-Bissau a tornar-se um “narcoestado”.

O país africano é o país com o litoral mais próximo da América Latina e, desde meados dos anos 2000, tem sido um dos principais pontos de trânsito de cocaína destinada à Europa. Em 2008, uma tonelada de cocaína proveniente da Guiné-Bissau com destino à Europa valia 60 milhões de dólares, o equivalente a 6,5% do PIB do país.

Segundo Ladan, a única maneira realista de o país sair dessa situação é estabelecer um quadro de transição claro, supervisionado pela sociedade civil e pela CEDEAO, com uma data definitiva para a renúncia dos militares ao poder. Esse processo deve incluir uma reestruturação das principais instituições e o abandono da abordagem "tudo ou nada" por parte dos partidos políticos.

O elemento decisivo é a reforma do setor de segurança. A Guiné-Bissau precisará redefinir o papel do exército e pôr fim à manipulação mútua do poder militar e político. Sem isso, Ladan alerta que o país permanecerá preso aos mesmos padrões: “Se os incentivos para as Forças Armadas não forem reformados e sua cadeia de comando não for profissionalizada, estaremos aqui novamente falando de golpes de Estado, tentativas de golpe ou simulações de golpe.”

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