“A concentração de riqueza que temos hoje é incompatível com a democracia”. Entrevista com Juan Torres López

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28 Novembro 2025

Juan Torres López se aposentou em 1º de outubro como professor de Economia Aplicada da Universidade de Sevilha, após mais de 40 anos de docência, mas não perdeu o entusiasmo em estudar e analisar o mundo ao seu redor. Em seu livro mais recente, Cómo sobrevivir al trumpismo y a la economía de la motosierra (Editorial Deusto), expressa sua preocupação com o cenário econômico e político global, após a chegada da ultradireita de Trump ao poder e alerta que “a humanidade enfrenta problemas que a colocam em perigo”. Como bom professor e intelectual, Juan Torres López não só faz um diagnóstico da situação, como também oferece alternativas para avançar rumo a um sistema econômico mais empático.

A entrevista é de Jorge Otero, publicada por Rebelión, 26-11-2025. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

“Estou completamente convencido de que a humanidade enfrenta problemas que a colocam em perigo”, escreve em seu livro. Pode nos detalhar esses problemas?

Para começar, a ameaça climática se tornou um problema existencial para o planeta. Além disso, as dificuldades econômicas, comerciais e financeiras levaram a condições geopolíticas complicadas, com o envolvimento de potências nucleares, o que implica um claro risco bélico. A tudo isso, é necessário acrescentar que a quantidade de dinheiro investido em setores econômicos frágeis, voláteis e, quase ousaria dizer, explosivos, é tão imensa hoje que qualquer perturbação terá consequências incomparáveis em relação a qualquer uma das crises que vivemos antes.

No livro, você projeta uma visão do futuro. O que você vê?

Não posso antecipar o futuro, mesmo assim, prevejo uma situação de enorme conflito. As ciências sociais nos ensinam que a desigualdade excessiva leva ao colapso das sociedades, e hoje temos a maior desigualdade da história. Apesar disso, a humanidade tem ainda em suas mãos a possibilidade de organizar a vida econômica e social de forma pacífica e democrática. No entanto, existem grupos muito minoritários, mas muito poderosos, que manipulam para criar impedimentos. Vamos nos mover nessa tensão. Sim, tenho a impressão de que temos pela frente um caminho de muita desordem e muito conflito. Transitaremos bem na beira do precipício.

E nesse caminho repleto de tensão, surge Donald Trump. Seu surgimento é o presságio de uma mudança de era?

A chegada de Trump é a expressão exagerada de problemas que são exagerados: exclusão, pobreza, espoliação… Seu surgimento se explica pelo nascimento de um novo tipo de capitalismo que busca implodir as instituições e a democracia, e para isso nada melhor do que pessoas como o presidente dos Estados Unidos, um autêntico incendiário que carrega consigo um discurso de demolição descontrolada. Trump é a consequência do que está acontecendo agora no mundo, não a causa.

O trumpismo e essa economia da motosserra colocam a democracia em perigo?

A democracia está em perigo porque um capitalismo com a concentração de riqueza que temos hoje é materialmente incompatível com a democracia. Os grandes grupos de tecnologia, esses novos senhores feudais que operam no mundo, precisam de muita liberdade de ação, e a liberdade que reivindicam é incompatível com um sistema democrático. A democracia implica contrapesos, concessões e equilíbrio. Não é que ela esteja em perigo; é que a democracia está em estado de demolição.

Como, então, podemos explicar o apoio das classes mais desfavorecidas a Trump, Milei, Vox e a defensores desse capitalismo predatório?

Qualquer grupo que queira dominar precisa capturar a vontade daqueles que domina. O capitalismo de nossa época tem sido extraordinariamente bem-sucedido em fazer o que disse Margaret Thatcher, em sua época, quando afirmou que o importante não é a economia, mas mudar a alma e o coração das pessoas.

Como foi esse processo? Como o capitalismo conquistou a alma das pessoas?

Fez isso com uma teoria econômica que é a maior fraude intelectual de todos os tempos: o neoliberalismo. Tudo isso recheado com um aparato midiático e uma estratégia cultural digna de ser aplaudida, não fosse o fato de que, por trás dela, esconde-se uma mentira da mesma proporção da imensa concentração de renda e poder econômico que os grandes capitalistas estão acumulando. Eles souberam capturar as vontades e dar uma falsa sensação de segurança aos despossuídos.

A ultradireita tem um discurso enganoso, astucioso e manipulador porque não informa as pessoas sobre as consequências reais de suas propostas. Contudo, quando você está desesperado e acredita que nada funciona, vai com quem coloca a mão em seu ombro e demonstra empatia. Nada disso teria sido possível se, ao mesmo tempo, não tivesse acontecido um fracasso histórico e brutal da esquerda.

Qual foi a falha da esquerda no momento de enfrentar Donald Trump ou Javier Milei?

Os movimentos progressistas foram incapazes de oferecer um senso de compreensão e de cumplicidade aos grupos sociais que estão sendo espoliados. A esquerda se divorciou da sociedade, do coração e da alma das pessoas, deixando o caminho livre para a direita e, o que é pior, para a extrema direita, que é quem fala diretamente às pessoas hoje. Nesse sentido, o exemplo da recente eleição de Zohran Mamdani como prefeito de Nova York é muito sintomático: quando a esquerda fala às pessoas, também obtém êxito.

Você acredita que a esquerda está em crise?

Nos últimos anos, a esquerda se uniu em torno de partidos cesaristas que perderam a organização, a militância e até o agito da sociedade. Está claro que os partidos de esquerda precisam reagir.

O Estado e as políticas públicas podem exercer um contrapoder frente a essa onda ultradireitista?

O Estado desempenha um papel tão fundamental na economia que nem mesmo os anarcoliberais o renunciam. Quem deseja fazer qualquer tipo de política econômica precisa do Estado. Outra coisa é pensar que o Estado, como aparato administrativo, é o que pode resolver os problemas. Não é assim. Penso que as fórmulas que permitem efetivar uma atividade econômica alternativa ao modelo atual têm mais a ver com o protagonismo coletivo, com o desenvolvimento de projetos comuns e com o cuidado das pessoas. O Estado deve ser um instrumento de cidadania, de descentralização e de uma nova forma de expressão da vontade coletiva.

Você não acha que, mais cedo ou mais tarde, a ultradireita mostrará sua verdadeira essência?

A direita, na realidade, não precisa ser coerente. Assume um discurso político que é instrumental e está a serviço de outros interesses. A direita só precisa convencer as pessoas de que reduzir os impostos é bom ou que as aposentadorias privadas garantirão que as pessoas serão felizes na velhice. Não precisa dar mais explicações; trata-se simplesmente de convencer as pessoas por todas as vias, porque é para isso que grupos financeiros muito poderosos a pagam.

Para conseguir convencer dessa forma, construiu-se um modelo de conhecimento que, insisto, é a maior fraude intelectual da história. As teorias neoliberais são um véu que encobre a realidade, quando o que se quer é concentrar a renda de modo extraordinário em um grupo muito pequeno da população. E conseguiram. Essa fraude permeou de tal maneira o fazer das instituições e dos governos, que fracassam constantemente em suas previsões.

Essa fraude intelectual é deliberada ou inocente?

Não sei; só sei que é uma fraude. Dou um exemplo: o Fundo Monetário Internacional que, possivelmente, é a instituição mais poderosa do mundo da economia internacional, onde trabalham economistas que se supõe que são os mais sábios, mais bem remunerados, mais bem informados, que possuem mais meios ao seu alcance, falha constantemente em suas previsões: de 3.200 prognósticos, acerta apenas 6%, e de 153 recessões econômicas, só foi capaz de prever cinco. Em nenhum outro âmbito da vida econômica ou social seria permitido que pessoas com tão pouco êxito estivessem no comando da nave. Erram constantemente, mas, na verdade, não se importam.

O pior está por vir?

Não tenho certezas, mas meu olfato, se me permite a expressão, tem me preocupado bastante nas últimas semanas. Há movimentos na economia internacional que são muito preocupantes. Acredito que haverá uma crise gigantesca, brutal, dolorosa e muito destrutiva. Isto é absolutamente certo. O mérito não é prever a crise, mas dizer quando vai acontecer.

Como será essa crise?

Terá uma dimensão diferente, mas muito maior do que a crise de 2008. Agora, estão acontecendo movimentos no setor de tecnologia que podem provocar um problema em cadeia em outras atividades e setores econômicos. Estou me referindo ao desenvolvimento da Inteligência Artificial (IA). A aposta na IA está sendo realizada com uma engenharia financeira, com condições de uso de energia e com uma aceleração que nos colocam em um cenário não apenas insustentável, mas irrealista.

O financiamento circular, por exemplo, entre as empresas que estão desenvolvendo os chips, está fadado a ser rompido por algum lado, mais cedo ou mais tarde. E se isso acontecer, envolverá quantias que seguramente nunca vimos antes em termos proporcionais. Uma paralisação de projetos desse tipo poderia ser muito grave. Além disso, é necessário acrescentar que não estamos vivendo o desenvolvimento da tecnologia em um espaço geopolítico homogêneo, mas em um conflito entre os Estados Unidos e a China. Caso desate, a crise terá consequências verdadeiramente impressionantes.

De qualquer modo, o desenvolvimento da Inteligência Artificial parece inevitável.

Não tenho a menor dúvida de que a Inteligência Artificial desempenhará um papel fundamental no modo de produzir, distribuir e consumir bens e serviços. Seu desenvolvimento é certamente inevitável e acontecerá de qualquer forma. É uma tecnologia que sabemos que se prolongará, que se projetará e à qual teremos acesso, mas está sendo implementada de forma exagerada e, como disse antes, por meio de procedimentos que não se baseiam na realidade, nem possuem suporte suficiente para evitar a queda.

Existe alternativa ao capitalismo atual? Um capitalismo mais humano, por assim dizer?

Na realidade, e não por modéstia, mas por realismo, não proponho alternativas; antes, observo o mundo e comprovo que existem formas alternativas de organizar a vida econômica que não respondem à lógica do mercado, nem à lógica capitalista, e que inclusive funcionam melhor. O mundo pode funcionar de outra maneira; vemos isto em uma extraordinária variedade de iniciativas cidadãs e, inclusive, nas políticas públicas.

Então, ainda há tempo para o mundo mudar para melhor?

Não vamos acordar e nos encontrar, de um dia para o outro, em um mundo diferente, com forças políticas diferentes, com uma forma alternativa de fazer política ou com empresas que funcionem com os nossos critérios. Não, as coisas não são assim. As sociedades não funcionam assim. Os processos de transformação social são muitas vezes sutis. Se você não analisar bem como as coisas estão evoluindo, é muito difícil que se possa intervir com sucesso na evolução desses processos.

Para mim, não ficou claro se você é otimista ou pessimista em relação ao futuro.

O que eu tenho é esperança, porque a esperança é o sonho dos seres despertos. Agora, a esperança não significa a falta de consciência sobre os riscos e perigos que temos pela frente.

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