16 Novembro 2024
“Num testemunho angustiante aos deputados britânicos na terça-feira, 12 de novembro, Nizam Mamode disse que de todos os conflitos em que trabalhou, incluindo o genocídio em Ruanda, ele e outros colegas experientes ‘nunca, nunca viram nada nesta escala’ como em Gaza”. A análise é de Dania Akkad, em artigo publicado originalmente no Middle East Eye, e reproduzido por Voces del Mundo, 13-11-2024. A tradução é do Cepat.
Dania Akkad é editora-chefe de pesquisa, especializada em questões relacionadas às mulheres, aos direitos humanos, à energia e à tecnologia. Em 2022, ganhou o prêmio de melhor reportagem por sua investigação sobre a legislação catari e a situação das mulheres no emirado no Prêmio Write To End Violence Against Women.
Um cirurgião aposentado do Serviço Nacional de Saúde (NHS), do Reino Unido, que acabou de retornar do trabalho num hospital de Gaza declarou que tratou crianças “dia após dia” que tinham sido deliberadamente alvo de drones israelenses após ataques com bombas.
Num testemunho angustiante aos deputados britânicos na terça-feira, 12 de novembro, Nizam Mamode disse que de todos os conflitos em que trabalhou, incluindo o genocídio em Ruanda, ele e outros colegas experientes “nunca, nunca viram nada nesta escala” como em Gaza.
Ele afirmou que “incidentes com vítimas em massa” ocorriam pelo menos uma ou duas vezes por dia, o que significa que entre 10 e 20 pessoas eram mortas e até 40 gravemente feridas. Ele calculou que pelo menos 60% das pessoas tratadas nesse período eram mulheres e crianças.
“Os drones desciam e matavam civis e crianças”, explicou Mamode aos membros da Comissão Internacional de Desenvolvimento numa audiência focalizada na situação humanitária em Gaza.
“Esta situação não é uma coisa ocasional. Isso aconteceu dia após dia, com crianças que diziam: ‘Eu estava deitado no chão depois que uma bomba caiu e aquele quadricóptero desceu, pairou sobre mim e me alvejou’”.
Mamode trabalhou no Hospital Al Nasser, no sul de Gaza, durante um mês, entre agosto e setembro, para a instituição de caridade britânica Medical Aid for Palestine (MAP).
Explicou que passou o mês inteiro no hospital, em parte porque não era seguro deslocar-se, mas também porque Israel bombardeou a casa de hóspedes do MAP no sul de Gaza em janeiro, um ato que Mamode acredita ter sido deliberado.
“Todas essas casas de hóspedes estão no sistema do exército israelense e são designadas como casas seguras, então presumo que foi um ataque deliberado e que o objetivo é impedir a vinda de trabalhadores humanitários”, disse Mamode.
Mamode atribuiu o mesmo objetivo a cinco ataques israelenses a comboios da ONU, um deles durante a sua permanência em Gaza.
A deputada trabalhista e presidenta da comissão, Sarah Champion, pediu a Mamode que esclarecesse se se referia a atiradores de elite que atiravam em veículos blindados.
“Não, não”, respondeu. “Tratava-se do exército israelense se aproximando como uma unidade e atirando deliberadamente”.
Mamode disse que recebeu “instruções muito claras” sobre o que fazer quando viajava num comboio da ONU enquanto estava em Gaza.
“As portas estarão trancadas quando saírem. Não as destranquem se o exército atirar em vocês e ordenar que saiam. Não saiam do veículo”, disse.
“Era um comboio da ONU. Tem o termo ONU em letras garrafais na lateral do veículo e, duas vezes por semana, transporta cerca de 30 a 40 trabalhadores humanitários de diferentes organizações”.
Mamode disse que teve que escolher entre dormir num quarto quente dentro do hospital ou nas escadas, onde era mais fresco, mas onde os drones “podiam me atingir”.
Em seguida, Mamode acrescentou: “Meu maior medo enquanto estive lá era que os israelenses me matassem”.
O cirurgião, de 62 anos, se pós a chorar três vezes durante o seu depoimento enquanto fazia relatos detalhados de seus pacientes, incluindo uma menina de 8 anos que, segundo ele, estava sangrando até a morte durante uma cirurgia no sábado à noite.
“Pedi um cotonete e eles disseram: ‘Não tem mais cotonetes’”, disse, momentaneamente incapaz de falar.
Mamode explicou que a falta de suprimentos médicos como resultado de Israel não permitir a entrada de ajuda em Gaza inclui luvas esterilizadas, panos e analgésicos, mas também itens básicos como sabonete e xampu, levando a condições anti-higiênicas.
“Vi não sei quantas bicheiras. Um dos meus colegas tirou larvas da garganta de uma criança em cuidados intensivos”, explicou. “Havia moscas na sala de cirurgia pousando nas feridas”.
Ele e seus colegas estavam especialmente preocupados com um padrão de ferimentos – três ou quatro ferimentos à bala nos lados esquerdo e direito do peito e também na região da virilha – provocados por drones.
“Isso nos pareceu ser uma evidência prima facie de que se tratava de um drone autônomo ou semiautônomo, porque um operador humano não seria capaz de disparar com esse grau de precisão tão rapidamente”, declarou Mamode.
Mas ele também disse que os projéteis disparados pela maioria dos drones eram mais destrutivos do que as balas, que atravessavam o corpo. Os chumbinhos, ao contrário, ricocheteavam dentro dos corpos.
Um menino de sete anos – um dos que contaram a Mamode que havia participado de um bombardeio e depois foi deliberadamente atingido por um drone – chegou ao hospital com as tripas penduradas para fora e outros ferimentos no fígado, baço, intestino e artérias.
“Ele sobreviveu e saiu uma semana depois”, explica. “Se ele ainda está vivo, não sei”.
Quando um deputado perguntou a Mamode se havia visto o Hamas enquanto aí trabalhava, o médico riu.
“Eu rio porque foi uma pergunta que fiz quando cheguei lá. ‘O Hamas está no hospital?’ Eles riram de mim”, disse.
“Eles me disseram: ‘O Hamas não está aqui. Existem alguns combatentes escondidos em túneis. Mas o Hamas nunca esteve no hospital. Todo mundo odeia o Hamas”.
Mamode disse que em outras zonas de conflito, os combatentes muitas vezes entram ostensivamente armados.
“Nunca vimos nada parecido. Eles nos deixavam ir para onde quiséssemos no hospital”, disse.
“Pode ter havido um túnel por baixo. Quem vai saber? Mas se o Hamas estivesse entrando e saindo do hospital, seria bastante óbvio”.
Os seus colegas palestinos disseram a Mamode que quando as forças israelenses atacaram o hospital em fevereiro, matando funcionários e colocando-os numa vala comum com os pacientes, muitos outros colegas foram levados e presos.
Entre eles estava um ateu. “Ele odiava o Hamas e, antes da guerra, era muito veemente em relação a essas coisas. Pensava que o Islã era estúpido e o Hamas era estúpido”, disse Mamode que lhe contaram.
“Eles o pegaram e mataram. É isso que está acontecendo. Pelo que vejo, não importa quem você é em Gaza. Se você é um palestino em Gaza, você é um alvo”, disse.
Champion disse que o testemunho de Mamode foi “profundo e profundamente arrepiante”.
E acrescentou: “Com base nestas evidências, o Reino Unido deve levar a sério a possibilidade de que o direito humanitário internacional tenha sido flagrantemente violado em Gaza”.
A audiência da comissão ocorreu dentro do prazo de 30 dias que o governo dos EUA estabeleceu no mês passado para Israel garantir a entrada de mais ajuda humanitária em Gaza, e as ONG alertaram que a situação no norte de Gaza é “ainda mais grave hoje do que há um mês”.
Horas depois dos comentários de Mamode, a Administração Biden disse que não limitaria as transferências de armas para Israel, como tinha ameaçado fazer, afirmando que Israel tinha tomado “uma série de medidas” para responder às exigências que tinha colocado.
Neste momento não fizemos nenhuma avaliação para ver se os israelenses estão violando a lei dos EUA”, disse o porta-voz do Departamento de Estado, Vedant Patel. “Continuaremos a avaliar a sua conformidade com a legislação dos EUA. Vimos algum progresso. Gostaríamos de ver mais mudanças”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Drones israelenses atiram deliberadamente contra crianças de Gaza ‘dia após dia’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU