15 Mai 2020
"Todos nós sabemos que há uma crise global há muito, muito tempo, gerando cadáveres que vão se empilhando à porta da nossa institucionalidade, cadáveres subnotificados que não podem ser reconhecidos ou enterrados", escreve Angélica de Freitas e Silva, doutora em epistemologias decoloniais pela Escola de Direito da Universidade de Westminster, Londres, professora sênior e pesquisadora na Westminster Business School, e professora convidada na Escola de Direito da mesma universidade, em artigo publicado por Outras Palavras, 13-05-2020.
Na quarentena, primeiro vem o medo. Depois, a raiva por outra crise capitalista, seguida de lúcido momento de resolução: nenhuma vacina pode consertar um sistema que hierarquiza vidas. Será necessário construir uma nova ética.
Eu ouvi que não há volta para a normalidade. Que tudo será diferente após a pandemia do Coronavírus. Que o mundo está aprendendo que é possível trabalhar remotamente, que todas as pessoas do planeta estão conectadas de alguma forma, que precisamos da ciência para salvar todos nós, e que precisamos de solidariedade. Essa consciência é o primeiro passo para a mudança. É uma tarefa agora entender como a humanidade percebe formas de produção e reprodução da vida.
Isso é uma percepção ética: como produzimos a vida, bem como a importância da influência das vidas coletivas na vida individual, subjetiva. A capacidade de produzir e reproduzir vida é hierarquizada, evidenciando o gradiente entre viver uma vida plena e sobreviver.
O sistema ético em que vivemos trivializa a exaustão das vidas de alguns para que outras possam, de fato, ser produzidas e reproduzidas. A hierarquização de pessoas, ecossistemas, e conhecimentos propicia que certo sujeito ético prevaleça sobre os outros.
A pandemia é uma fotografia do sistema. Esse é um sistema ético de exaustão, que deixa claro que precisamos de uma mudança ética. Não há futuro possível no sistema ético da exaustão. A vacina pode ser uma solução para o Coronavírus, mas não para esse sistema de vidas descartáveis.
Eu estou passando por fases durante a quarentena.
Houve o momento da negação. Não a negação sobre a gravidade da pandemia, mas a negação dos tempos que estamos vivendo. “Vamos superar essa crise”, eles disseram.
Então houve o momento do medo. Não o medo da morte em si, mas o medo de outra crise econômica sem precedentes. “É a pior crise econômica de todos os tempos!” Eles não se referiam ao medo de uma pandemia.
Então houve o momento da raiva. Minha raiva. Raiva de outra crise capitalista. Raiva da invisibilidade das vítimas antes da tragédia. Raiva da ignorância de que esse sistema precisa das vítimas.
Então houve os momentos de resolução. Era o momento de dizer o inevitável: nós sabíamos que isso aconteceria. Nós não queremos produzir e reproduzir a vida. Não há uma vontade geral de preservar a vida. Isso é uma pandemia no sistema ético da exaustão. A mudança vem de lugares que não se beneficiam desse sistema. Lugares decoloniais.
Tudo tem sido uma mistura de negação, medo, raiva e resolução, coexistindo como um longo período de 40 dias.
Sinto que estamos exaustas.
Gostaria de compartilhar um monólogo sobre o desconforto dos meus momentos de raiva para provocar uma discussão.
Após esse momento de “solidariedade de home office”, é presumível que o principal objetivo seja voltar a tentar viver mais confortavelmente novamente.
Será que esse “home office altruísta” o um-pelo-outro que Levinas sugeriu para confrontar o Daisen Heideggeriano?
Ou será que é a negação da diferença sub-ontológica do sujeito colonial?
Bem, para o sujeito colonial (os sujeitos racializados, generificados) “a morte não é um fator tão individualizante como uma característica constitutiva de sua realidade”.
E nós sabemos disso.
Vamos parar com esse “ninguém está salvo”, ou esse “a crise nos deixou vulneráveis no mesmo nível”. Parecemos estar numa chapação coletiva.
Nós sabemos que essa crise sem precedentes não é tão sem precedentes como estamos dizendo.
Todos nós sabemos que há uma crise global há muito, muito tempo, gerando cadáveres que vão se empilhando à porta da nossa institucionalidade, cadáveres subnotificados que não podem ser reconhecidos ou enterrados.
Todos nós conhecemos esses cadáveres.
Eles são os walking dead, os zumbis, as criaturas que vivem ao lado da morte na lavoura, nos navios negreiros, nos chãos de fábrica, nas terras indígenas, nos escritórios, nas start-ups, nos Ubers, nas entregas da Amazon, nos quartinhos de limpeza dos hospitais, nas cadeias.
Nós também sabemos como é temer uma pandemia – antes, durante e depois – desde pelo menos a peste. Sim, eu disse: a peste. A mesma peste que a Modernidade veio superar, esquecer, deixar no passado, derrotando demônios medievais com o direito de propriedade, o estado soberano absolutista, o contrato social, e a promessa de uma vida melhor no futuro. A Modernidade prometeu que o sacrifício de hoje propiciará uma vida melhor amanhã. E que devemos deixar o passado para trás. Sem passado e com um presente Moderno miserável, a única opção é o futuro Moderno.
Alguém poderia me interromper agora e dizer:
- Mas os tempos são outros!
- Os meios de produção são diferentes!
- As sociedades são diferentes!
- Vivemos num mundo globalizado! A internet mudou tudo!
- Como você pode não reconhecer a severidade do momento?
- Como você pode não entender a gravidade da presente ameaça?
Ah, como eu odeio a dificuldade em entender uma tragédia anunciada.
Vivemos nossas vidas como Chichikov, esperando fortuna da coleção de almas mortas, para que consigamos um empréstimo com o crédito adquirido da compra de almas de servos mortos. Não seria esse o propósito da vida capitalista?
Gerar dinheiro do nada: o dinheiro está grávido!
Onde queremos chegar com isso? É impossível pensar que não estávamos esperando.
Fome, crise de imigração, guerras, perseguição, tomada de terras, encarceramento em massa, crise climática, catástrofes ambientais causadas pela exploração de petróleo e minerais, acumulação de capital e… Bilionários!
Quando escolhemos a vida que vencerá, estamos produzindo e reproduzindo morte, na expectativa de que no futuro Moderno fetichizado vamos produzir e reproduzir vida. É o sacrifício de salvação na esperança que teremos nossas vidas menos vilipendiadas quando atingirmos algum conforto: menos sobrevivência e mais vivência.
Estamos trocando almas mortas pela possibilidade do futuro moderno fetichizado.
A vida do trabalhador, a vida do planeta. É impossível viver uma vida plena. A boa economia de hoje (também conhecida como a economia sem a crise) somente é possível em função da pilha de cadáveres à nossa porta.
As mortes excedentes, as mortes “não previstas”, as mortes da pandemia – essas são consequências previsíveis indesejadas.
Nosso sistema mundo, o sistema-mundo moderno-colonial, é viável em função da vida das vítimas. Esse é o sistema ético dos últimos 500 e poucos anos – o primeiro sistema ético global.
As vítimas não são um infortúnio ou uma incoerência do sistema, elas são fundamentais para a possibilidade de gerar lucro. A abiogênese de capital é falsa, claro. A hierarquização de corpos, lugares e conhecimentos permite que alguns doem vida para que outros ascendam hierarquicamente. Isso se torna sistêmico à medida em que é naturalizado, trivializado.
Nós já esperávamos um colapso nos sistemas de saúde. Sistemas de saúde são também negócios, mesmo os públicos. Esses sistemas criam intervenções irreversíveis na sociedade: os “merecedores”, que pagam impostos ou podem bancar, aqueles que têm abrigo e alimento, que não estão fugindo de suas terrais natais por conta de conflitos. Os merecedores terão certos padrões de saúde. O negócio dos sistemas de saúde tem por objetivo produzir lucro. Os meios para a produção de lucro – exploração dos trabalhadores, destruição ambiental, ciência voltada para o lucro – são necessários para o sucesso dos negócios. Na ética da exaustão, esses “inconvenientes” são necessários, portanto naturalizados e, então, invisíveis. As vítimas não são perceptíveis antes da pandemia, mas são fundamentais – co-constitutivas – para a implementação do negócio da saúde. Assim, o lucro a partir dos sistemas de saúde somente existe em função do sacrifício das vítimas. A naturalização da hierarquização do acesso à saúde como um “sacrifício de salvação” transforma o caráter predatório da atividade na única forma possível de se ter acesso à saúde na sociedade. Essa naturalização é epistemologicamente violenta. Epistemologias violentas são formas coercitivas diretas de imposição de significados para legitimar agendas que garantem posições de poder. Quando há um colapso na saúde, o número de vítimas é maior, mas as vítimas – as pessoas e o meio ambiente – já eram parte imprescindível dos negócios.
O colapso do sistema “parece diferente”, parece que não é intencional, parece um acidente, a vontade de Deus – la maison dieu. O colapso não traz o lucro esperado, interfere na normalidade dos negócios de forma local e global. Nesse sentido, o colapso de sistemas de saúde não é parte dos negócios, portanto não é naturalizado como o “sacrifício de salvação”. A violência intrínseca que existe na imposição de fabricantes de medicamentos em larga escala, ou na imposição de hospitais e planos de saúde privados é epistemologicamente naturalizada e suavizada até tornar-se imperceptível. As consequências previsíveis, mas indesejadas dos negócios da saúde são intencionalmente separadas das consequências previsíveis e desejadas: que nem todo mundo terá acesso à saúde, nem todo mundo terá alimento, abrigo, meios para sobreviver com dignidade. É como cometer um crime em que o agente não somente produz o resultado desejado inicialmente, mas vai além e produz o pior resultado.
Como num crime preterdoloso, o dono do negócio teve a intenção de criar vítimas, mas não teve a intenção de perder capital. Claro, o capitalismo transforma crise em oportunidade. Quando as vítimas são criadas sem gerar lucro, os resultados parecem acidentais. O “acidente” é sobre dinheiro, não sobre as vítimas. As vítimas são fundamentais para o sucesso dos negócios. Logo, eles darão um jeito de transformar as vítimas em lucros também. Os donos de negócio que incorporarem crise como oportunidade sairão dessa como os vencedores: ações de hospitais vão subir exponencialmente, os acionistas da Bayer medicamentos farão fortunas em vacinas. Dinheiro será investido em pesquisas para que seus resultados sejam negociados a preços caríssimos. Ah, “como eu amo o cheiro de pandemia pela manhã”, diz o lobo capitalista nesse Apocalypse Now.
Como é possível que neste mundo não há teto para todas as pessoas, quando há prédios desocupados e terra improdutiva? Como é possível que toneladas de alimento são jogadas fora todos os dias, quando há mais de 800 milhões de pessoas passando fome no mundo? Como podemos pensar que a academia é um lugar livre de coerção para produzir pensamento legítimo e transformador, se dependemos da internet para compartilhar dados?
É o sacrifício de salvação… É o que tem pra hoje, é o que é possível de se fazer. Nossas vidas são uma fotografia de colonialidade de ser e colonialidade de saber simplesmente observada quando checamos nossos e-mails antes de ir dormir e assim que acordamos, ou quando jogamos as embalagens plásticas das entregas da Amazon na lixeira de recicláveis.
Estamos investindo no sacrifício de salvação das ininterruptas longas horas de trabalho para fazer parte de um sistema de hierarquias. É aquele conto do desenvolvimento dos pobres. Ou aquele da meritocracia, ou da ridícula mão invisível… seja lá como se queira denominar.
Precisamos mudar…
Mas alguém poderia dizer:
- Uma coisa positiva que podemos pensar sobre a presente crise global é que temos tempo para parar e pensar.
- A natureza está sendo capaz de ter uma pausa da avidez humana de destruição de tudo.
- As coisas nunca mais serão como antes. Estamos mudados.
- Oh, como eu odeio ainda mais esse otimista-good-vibes-mindful-yoga-vegano-branco-liberal-redefinindo-relações-a-partir-da-crise-capitalista-porque-o-poder-está-em-todo-lugar! Meus olhos se reviram tanto que talvez eu nunca mais seja capaz de desvirá-los. Chega de aplauso!
Essa é a minha Crítica da Crítica Crítica, em que a “sagrada família” é a nossa família, nós mesmos – a academia cínica que finge que as vítimas não estavam ali antes, e tenta empoderá-las sem identificar que nem mesmo a academia existiria sem elas.
Eles dizem que estamos salvos graças à internet. E, graças à internet, podemos esperar menos impacto durante a crise e visualizar a luz no fim do túnel.
Mas o quão ingênuos podemos ser?
A luz é um trem, pronto para nos massacrar. Quem é dono da internet? Ah, faça-me o favor!
A internet não é sobre as lives “together at home” no Instagram, levantando uma grana para ajudar os pobres (mas muito obrigada por isso, Lady Gaga). Internet é sobre o sistema financeiro. E essa é a diferença do presente tempo e da presente crise: que os meios de produção reverenciam a juros compostos e taxas de retorno em escala global. Capitalismo é transnacional e financeiro, e também a internet.
- A pandemia irá passar.
- O sistema ético não mudará.
- Precisamos de mais que uma vacina.
- Não podemos pensar que trabalhar remotamente muda o sistema de exploração do trabalho ou de destruição ambiental. Essa forma pela qual as pessoas estão todas conectadas é sobre a expansão de mercados, não sobre o suporte de comunidades.
- A “salvação pelo desenvolvimento científico” é uma velha história. É uma perigosa falsa salvação. Ciência também é negócio, um colonial, predatório e violento negócio. Isso não significa negar a ciência, mas compreender a violência epistemológica intrínseca na detenção do monopólio do conhecimento legítimo. A ciência pode manufaturar consentimento para garantir agendas de poder.
- Essa dita crise sem precedentes do sistema capitalista está novamente nos levando a buscar crescimento econômico, aumentar o IDH, aumentar investimentos, depender de bancos nacionais e investimento estrangeiro direto. Essa pressão torna ainda mais difícil a vida daqueles no espectro “sobrevivendo” do gradiente ético.
- Isso é o oposto de solidariedade.
- Precisamos de um sistema ético que almeje abundância, ao invés de exaustão.
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A Ética da Exaustão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU