13 Mai 2020
"O que se vislumbra, quando se olha para o mundo do trabalho, é que as medidas propostas pelo governo para enfrentamento dos problemas agravados na pandemia seguem aquelas premissas que alicerçam a “reforma” trabalhista e que, além de estarem na contramão das adotadas em outros países, são comprovadamente ineficazes", escrevem Magda Barros Biavaschi, desembargadora aposentada do TRT4 e pós doutora em Economia Social do Trabalho, e Bárbara Vallejos Vazquez, socióloga e docente da FESP/SP, em artigo publicado por A Terra é Redonda, 12-05-2020.
Luiz Gonzaga Belluzzo, questionado sobre a Medida Provisória, MP 927, disse tratar-se de verdadeiro “atentado à razão humana” [i], na medida em que, na contramão dos demais países que enfrentam a pandemia do Covid-19, deprime a renda do trabalho e suprime direitos, com forte impacto sobre a demanda por bens e serviços, alertando que, se não tomadas as medidas adequadas, os efeitos serão deletérios não apenas para a saúde dos cidadãos, mas para a própria economia que seus defensores dizem querer concretizar.
Vivem-se tempos de grandes inseguranças. A expansão da pandemia do COVID-19, a “Coronacrise [ii]”, evidenciou a fragilidade dos arranjos econômicos mundiais em tempos de capitalismo “financeirizado”, escancarando seu potencial disruptivo. No caso do Brasil, encontrou um mercado de trabalho com resilientes problemas estruturais que a chamada “reforma” trabalhista, vigente desde novembro de 2017, tratou de acirrar. Fundamentada na ideia do encontro individual e direto das vontades dos compradores e vendedores da força de trabalho como espaço prevalente da produção normativa, essa “reforma” atingiu substancialmente o sistema público de proteção ao trabalho. [iii]
Sistema esse que, neste país de capitalismo tardio [iv], não sem muita tensão e reais dificuldades, foi sendo constituído sistematicamente a partir de 1930, em meio ao processo de industrialização [v], consolidado em 1943 pela Consolidação das Leis do Trabalho, CLT [vi], e, com idas e vindas, ampliado pela Constituição de 1988 que, alicerçada nos princípios da dignidade humana e do valor social do trabalho, amálgamas da ordem social e da econômica, elevou os direitos dos trabalhadores à condição de direitos sociais fundamentais, buscando constituir o Estado Social.
É a partir desse cenário e fundamentado, sobretudo, em estudos desenvolvidos pelo GT Mundos do Trabalho: Reformas, do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho, CESIT/Unicamp [vii], que este artigo analisa a MP 927 e outras, vigentes a partir do momento em que apresentadas ao Parlamento, como a MP 936 [viii], bem como a MP 905 que, conquanto revogada pela MP 955, demanda reflexões, sobretudo em face do Projeto de Lei 1282/2020, aprovado e ainda não sancionado.
Frente a essa realidade, aprofundam-se os debates sobre os efeitos econômicos da “Coronacrise”, cujas consequências dramáticas para o mercado de trabalho já se fazem sentir, em especial nos setores de comércio e serviços, atingindo com mais força os trabalhadores informais, uberizados, precarizados, “autônomos exclusivos”, pejotizados, “empresários de si próprios”, em regra empregados disfarçados [ix], que se avolumavam a partir de 2015 e, mais velozmente, depois da “reforma” trabalhista, cuja falácia das promessas de seus defensores os dados da PNAD-C e pesquisas acadêmicas demonstram.[x]
No Brasil, apesar das dificuldades para que sejam adotadas medidas públicas eficazes de combate à crise sanitária e aos seus impactos na economia, elas são imprescindíveis para que se concretize o direito fundamental à vida dos cidadãos e para que se preserve a saúde da própria economia. No entanto, aquelas já propostas pelo governo não abrangem eficazmente as maiorias desprotegidas e, tampouco, os formalizados e, na contramão das iniciativas dos demais países, reproduzem aquela lógica que fundamentou a “reforma” trabalhista ao permitirem que, via contrato individual de trabalho, seja, por exemplo: reduzida a jornada com redução de salários; suspensos os contratos; substituída a suposta garantia de emprego por indenização de 50% dos salário devidos até o fim do período estabilitário, aprofundando desigualdades e reduzindo a renda do trabalho, sem articular os processos do mercado.
Como expresso na referida Nota Técnica do GT Mundos do Trabalho, diante da pandemia, países com governos de distintos matizes, conservadores ou não, adotaram medidas de garantia de renda e emprego como resposta imediata à crise sanitária e como meio de garantir isolamento para, assim, evitar a propagação da doença e preservar a demanda por consumo como forma de ativação da economia [xi].
A União Europeia suspendeu a disciplina orçamentária. Na França, o governo anunciou pacote de cerca de 45 bilhões de euros para assegurar os patamares salariais, proceder à ajuda a pequenas empresas, além de constituir fundos solidários para trabalhadores por conta própria. Ainda, anunciou plano de “desemprego parcial”, com suspensão do contrato de trabalho mediante pagamento compensatório pelo Estado, assegurada formação profissional. A Holanda anunciou pacote com garantia de 90% dos salários por três meses a trabalhadores de empresas com perda mínima de 20% de suas receitas, com contrapartida da garantia de emprego. Na Inglaterra, entre outras medidas de estímulo à demanda, o governo anunciou a manutenção de 80% dos salários entre março e junho. Portugal, além da proteção às empresas afetadas, autorizou layoff simplificado, com garantia de 2/3 das remunerações, sendo a maior parte coberta pela Seguridade Social. Nos EUA, houve envio de recursos diretos às famílias americanas, ampliação de acesso ao seguro desemprego e medidas de socorro às empresas, somando cerca de 2,2 trilhões de dólares. Ou seja, no cenário internacional o que se percebe é o abandono das políticas liberais. [xii]
No Brasil, com o aprofundamento do debate público sobre a insegurança a que estão expostos os trabalhadores, informais e formais, inclusive os desempregados, a equipe econômica do governo, com notória lentidão, idas e vindas, anunciou algumas propostas, insuficientes e, como sublinhado, na contramão dos demais países, entre elas: desonerações; redução da jornada com redução de salário, segundo ajuste individual; transferência do trabalhador para o teletrabalho, conforme definido no contrato individual, inclusive quanto à infraestrutura a ser fornecida; redução dos prazos para concessão de férias individuais e coletivas; intensificação do banco de horas; acordos individuais prevalentes à lei e aos instrumentos coletivos; voucher de R$ 200,00 aos trabalhadores informais.
Em 16 de março, o governo, afirmando que injetaria 147,3 bilhões de reais na economia, anunciou medidas que, reafirmando o viés liberal, buscavam rediscutir o Pacto Federativo, flexibilizando os mínimos orçamentários destinados à educação e à saúde e criando gatilhos que, quando acionados, proibiriam os entes de optar por reajustes a funcionários públicos, isenções fiscais, etc. Retomando o projeto de lei que trata da privatização da Eletrobrás, ofereceu à discussão o chamado “Plano Mansueto”, na realidade um pacote de auxílio financeiro a estados e municípios, tendo, como contrapartidas, privatizações e flexibilização dos benefícios dos servidores públicos, anunciando, inclusive, o possível fim da estabilidade. Desses valores, R$ 83,4 bilhões seriam direcionados aos trabalhadores e à população vulnerável, via transferência do PIS/PASEP para o FGTS, como incentivo a novos saques, antecipação do 13º de aposentados e pensionistas do INSS e de abono salarial, redução de juros e aumento dos prazos para empréstimos consignados e aumento de beneficiários do Bolsa Família. Ainda, R$ 59,4 bilhões seriam de desonerações referentes adiamento do recolhimento ao FGTS, Simples Nacional e contribuições ao Sistema S por três meses, além de medidas de crédito para micro e pequenas empresas e simplificação da contratação de crédito e renegociações. Além de outros aspectos, e das renúncias fiscais ou antecipação de gastos previstos, não há injeção de “dinheiro novo” na economia [xiii].
Com o recrudescimento da crise sanitária, algumas das proposições anunciadas foram encaminhadas. Uma delas é a Lei nº 13.892/2020, sancionada em 03 de abril de 2020, com três vetos [xiv]. Apesar de insuficiente, sobretudo para as necessidades dos mais vulneráveis, o governo vem mostrando insustentáveis dificuldades para efetivá-la. A proposta original era alcançar aos informais e microempreendedores individuais, MEI, o auxílio de R$ 200,00. Diante de forte demanda social e das Centrais Sindicais, os deputados oposicionistas lograram elevar esse valor para R$ 600,00, incluindo o direito às mulheres chefes de família ao valor de R$ 1.200, ampliando o acesso ao benefício a cerca de 45 milhões de brasileiros. Antes de sua sanção, o Senado expandiu o alcance do auxílio emergencial, incluindo agricultores familiares, caminhoneiros, diaristas, garçons, catadores de recicláveis, manicures, camelôs, artistas, pescadores e taxistas. É o Projeto de Lei, PL 873/2020, aprovado pelo Parlamento e remetido à sanção presidencial, cujo potencial é de aumentar o alcance aos beneficiados em até 8,4 milhões, segundo o Ministério da Economia.[xv]
Em 20 de março de 2020, o governo encaminhou a MP 927 que, incorporando grande parte das medidas anunciadas e em sintonia com documento da Confederação Nacional da Indústria, CNI, Propostas da indústria para atenuar os efeitos da crise [xvi], aprofunda o poder discricionário dos empregadores ao atribuir prevalência aos contratos individuais, inclusive sobre acordos ou convenções coletivas de trabalho, afastando os sindicatos como interlocutores dos trabalhadores. Além disso: amplia as possibilidades de uso do tele trabalho, cabendo ao empregador as determinações desse uso; autoriza o banco de horas, individual ou coletivamente, com compensação em até dezoito meses; permite ao empregador antecipar férias (sem assegurar a antecipação do adicional) e conceder férias coletivas, com comunicação ao empregado em até 48 horas de antecedência; libera os empregadores das exigências quanto às normas de saúde e segurança no trabalho e não reconhece o adoecimento no trabalho como doença ocupacional, salvo comprovado o nexo causal. Essas últimas disposições, objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade, ADI 6344, estão cautelarmente suspensas pelo Supremo Tribunal Federal, STF, como se verá.
Essa MP foi alvo de fundadas críticas, com notas de repúdio das Centrais Sindicais e entidades de representação do mundo do trabalho, dirigidas, sobretudo mas não só, ao seu artigo 18 que permitia a suspensão do contrato por quatro meses independente do pagamento de salários. Esse artigo foi revogado pela MP nº 928/2020. No entanto, as demais disposições foram mantidas, bem como a lógica do encontro direto entre vendedores e compradores da força de trabalho que, na via individual, poderão definir as regras que regerão os contratos, radicalizando, assim, a “reforma” trabalhista. E, fundamentada nesse pressuposto, a MP permite que medidas como home office, banco de horas, férias coletivas, sejam adotadas sem participação dos sindicatos e sem a contrapartida da garantia do emprego.
A Rede Sustentabilidade propôs Ação Direta de Inconstitucionalidade, ADI 6344, contra essa MP, distribuída para o relator, Ministro Marco Aurélio Mello. Indeferida a liminar, a decisão foi submetida ao Plenário do STF que, em sede cautelar, por maioria, deferiu a cautela quanto aos artigos 29 e 31. O julgamento do mérito da ADI não está pautado. Em face dessa decisão, estão cautelarmente suspensas as seguintes disposições da MP 927/2020:
[…]
Art. 29. Os casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal.
[…]
Art. 31. Durante o período de cento e oitenta dias, contado da data de entrada em vigor desta Medida Provisória, os Auditores Fiscais do Trabalho do Ministério da Economia atuarão de maneira orientadora, exceto quanto às seguintes irregularidades:
I – falta de registro de empregado, a partir de denúncias;
II – situações de grave e iminente risco, somente para as irregularidades imediatamente relacionadas à configuração da situação;
III – ocorrência de acidente de trabalho fatal apurado por meio de procedimento fiscal de análise de acidente, somente para as irregularidades imediatamente relacionadas às causas do acidente; e
IV – trabalho em condições análogas às de escravo ou trabalho infantil.
[…]
Já a MP 936/2020, Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, dirige-se aos trabalhadores formais, comprometendo-se o governo com aporte de parte dos salários dos empregados. Entre outros aspectos, essa MP introduz a possibilidade de redução da jornada com proporcional redução salarial por até 90 dias, em percentuais que variam de 25%, 50% a 70%, com pagamento, pelo governo, de benefício calculado com referência no valor do seguro-desemprego (na média dos três últimos valores) e com disposições específicas para acordos individuais e para os formulados com participação do sindicato, excluindo essa participação para os que recebem até três salários mínimos e os com mais de dois tetos previdenciários [xvii].
Ainda, autoriza suspensão do contrato de trabalho por determinado período, igualmente por acordo individual ou participação sindical, a depender dos valores salariais, podendo o período de até 60 dias ser dividido em dois de 30 dias. Em ambas as modalidades, o governo paga o benefício calculado sobre o valor do seguro desemprego, limitado a 70% para quem receber da empresa a “ajuda compensatória”, aliás, faculdade do empregador, em valor a depender do acordo formalizado, como se verá. Também, introduz suposta garantia de emprego, substituível por despedida sem justa causa, mediante indenização de 50% dos salários que seriam devidos até o final do período “estabilitário”.
Na realidade, institui arrocho salarial para aliviar a crise. Além das inconstitucionalidades apontadas por juristas e magistrados do trabalho [xviii], essa MP igualmente se fundamenta na lógica da prevalência dos ajustes individuais estruturantes da “reforma” trabalhista, colocando os trabalhadores em condição de grande fragilidade e “medo” [xix]. Ainda, atinge o instituto da negociação coletiva ao excluir a participação do sindicato para os trabalhadores com salários inferiores a três salários mínimos nacionais, ou superiores a duas vezes o máximo dos benefícios da Previdência Social [xx]. Portanto, a grande massa da classe trabalhadora.
O período para a preservação do vínculo de emprego como condicionante à adesão ao “programa” é, igualmente, insuficiente. A crise deve perdurar por mais tempo depois de superada a pandemia, quando a demanda por consumo estará em patamares bastante reduzidos – o arrocho salarial contribuirá para que isso aconteça –, podendo acarretar posteriores despedidas em massa. Ademais, a garantia de emprego que seus arautos dizem assegurar é falaciosa, eis que autoriza despedidas mediante pagamento de indenização correspondente a 50% dos salários devidos até o final do período da suposta estabilidade [xxi]. Ou seja, como afirma a Nota Técnica do GT Mundos do Trabalho, o que a MP faz é permitir ao empregador flexibilizar a gestão da força de trabalho sem garantir emprego e renda aos trabalhadores e sem minimizar os efeitos da pandemia à saúde, às relações de trabalho e à economia como um todo.
O tempo entre adesão ao “programa” e o recebimento do benefício é preocupante, podendo prejudicar ainda mais a demanda por consumo, essencial à dinamização da economia. Ainda, traz exigências excessivamente burocráticas, cabendo ao empregador, em 10 dias, contados da celebração do acordo (seja de redução da jornada e salário ou suspensão do trabalho), informá-lo ao Ministério da Economia, sendo que a primeira parcela será paga em 30 dias dessa celebração e, ainda assim, condicionado à informação prestada pelo empregador no prazo. São entraves e condicionantes que, além de suscitarem dúvidas de interpretação quanto, por exemplo, à soma ou não dos prazos, poderão estimular despedidas, ao invés de impedi-las. Por outro lado, a “ajuda compensatória” prevista no artigo 9º, acumulável com o benefício emergencial, é faculdade atribuída ao empregador que, por liberalidade, poderá alcançá-la a quem desejar, sem critério objetivo, com alto potencial discriminatório chancelado pelo contrato individual. Ademais, dada à natureza indenizatória, não será computada para cálculo de férias, 13º salário, recolhimento ao FGTS e à previdência e contribuição fiscal, podendo ser excluída do lucro líquido da empresa para fins de contribuição social e imposto de renda, ou seja, na contramão da constituição de fundos públicos que permitam a concretização dos direitos sociais inseridos no artigo 6º da Constituição Federal de 1988.
Importante assinalar que, para além das medidas de enfrentamento à pandemia, a sociedade brasileira deparou-se com a tentativa do governo de, aproveitando o cenário das votações eletrônicas, retomar a agenda de reformas liberalizantes anteriores à crise. É o caso da chamada MP da Carteira de Trabalho Verde Amarela, MP 905/2019, que, em meados de abril e prestes a perder eficácia, voltou a tramitar. Seu texto substitutivo chegou a ser aprovado pela Câmara dos Deputados em 15 de abril de 2020. De conteúdo altamente flexibilizante dos direitos trabalhistas e responsável, acaso aprovada, pela criação de duas categorias de trabalhadores, os mais e os menos protegidos, apoiava-se na errônea premissa de que a retirada da “rigidez” da legislação e decorrente redução dos custos do trabalho aumentaria os níveis gerais de emprego.
A forte pressão para que fosse rejeitada pelo Senado ou que caducasse, tributada, por um lado, às fundadas críticas de movimentos sociais, entidades de representação do mundo do trabalho e das Centrais Sindicais que, coesas, pressionaram pela rejeição e, por outro, ao momento pandêmico em que apreciada, ao exíguo tempo de discussão no Senado e às dificuldades de aprovação pelos senadores, fez com que fosse revogada pela MP 955 no último dia do prazo de vigência, 20 de abril de 20. Mas conquanto revogada, analisam-se alguns de seus aspectos, em parte recuperados em projeto de lei, PL, já aprovado e que aguarda sanção presidencial, como se verá.
Essa MP 905, além de atingir fortemente as instituições públicas do trabalho em suas atribuições constitucionais, como a Justiça do Trabalho e os sistemas de fiscalização, assegurando, inclusive, validade a acordos individuais formalizados em cartórios, mesmo que redutores de direitos, incluía, entre outras, medidas como: desoneração da folha de salários, contribuição previdenciária, salário educação e contribuição social para o Sistema S, Sebrae e Incra; redução do recolhimento ao FGTS de 8% para 2% e do adicional incidente nas despedidas sem justa causa de 40% para 20%. Dirigida aos trabalhadores com idade entre 18 e 29 anos adentrando o mercado de trabalho formal, teve seu público alvo posteriormente alargado, abrangendo trabalhadores com mais de 55 anos.
Segundo o Ministério da Economia, as desonerações reduziriam o custo da contratação em até 34%, gerando, supostamente, 1,8 milhão de novos postos de trabalho. Ou seja, as mesmas promessas que levaram à aprovação da “reforma” trabalhista em 2017 a qual, de resto, prometia criação de 6 milhões de novos postos formais, o que não se concretizou. Ao contrário, como os dados da PNAD-C demonstram e as ruas das grandes cidades escancaram, aprofundaram-se as desigualdades, o desemprego, a precarização. Essa MP trazia 188 alterações à CLT, incluídas a flexibilização do trabalho aos domingos e feriados, além de alteração em 22 leis e decretos tratando da Participação nos Lucros e Resultados, trabalho rural, microcrédito, e desregulamentação de dez categorias profissionais [xxii].
A despeito de sua revogação, o ideário que a sustentou segue fortalecido. Há risco de reedição de seu conteúdo, de forma dispersa, em outras medidas ou projetos de lei. Ilustra esse argumento a recente aprovação do PL 1282-A, que aguarda sanção presidencial. Tendo como tema central a criação de linha de crédito direcionado às empresas de pequeno porte, via Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, PRONAMPE, essa lei, ainda não sancionada, inseriu em seu texto o capítulo VI: Do estímulo ao microcrédito, que legitima a terceirização e a quarteirização em atividades-fim das instituições financeiras[xxiii], a serem realizadas por agentes de crédito, trabalhadores em correspondentes bancários, em empresas simples de crédito e em cooperativas. Ainda, apesar da similaridade das atividades realizadas, assegura não ser possível o controle da jornada desses trabalhadores, tampouco equiparar suas atividades às bancárias no que concerne a direitos trabalhistas e previdenciários, dirigindo-se, aqui, também e diretamente, à Justiça do Trabalho. É importante salientar que estudos [xxiv] mostram ser relevante tanto o número de ações trabalhistas exitosas, em que trabalhadores em correspondentes bancários pretendem que seja reconhecido o vínculo de emprego diretamente com o Banco ou pagos os direitos de bancários, quanto outras fundadas nas burlas ao artigo 224 da CLT, que assegura aos bancários a jornada de 30 horas semanais.
Ocorre que certas alterações que a MP 905/2020 introduzia foram inseridas nesse PL 1282-A, cuja tramitação foi célere, aproveitando-se das urgências da pandemia e do necessário socorro às micro e pequenas empresas. Ademais, com inclusões de temas alheios à intenção principal e que nada oferecem ao enfrentamento da calamidade pública. A pergunta que se faz é como, afinal, a inclusão na lei do não reconhecimento de direitos advindos da realização de atividades bancárias, por trabalhadores terceirizados e quarteirizados, contribuirá para combater a pandemia? Daí se inferir que, conquanto durante a crise do Covid-19 a intervenção estatal apareça como clamor quase uníssono, em especial nos aspetos da política fiscal e monetária e do socorro aos estados e municípios, quando o tema é a proteção ao trabalho e à seguridade social esse clamor silencia ou, mesmo, aparece contrário na voz de Ministros, alguns do STF, de deputados da base do governo e em certos meios de comunicação, aflorando o regresso do credo liberal [xxv].
O que se vislumbra, quando se olha para o mundo do trabalho, é que as medidas propostas pelo governo para enfrentamento dos problemas agravados na pandemia seguem aquelas premissas que alicerçam a “reforma” trabalhista e que, além de estarem na contramão das adotadas em outros países, são comprovadamente ineficazes para concretizar o dever/poder do Estado de atender às necessidades da população trabalhadora, acirrando as desigualdades sociais e não contribuindo para que o direito à vida e à saúde sejam realizados e, tampouco, para que a crise econômica seja enfrentada. Têm elas em comum incompreensões e diagnósticos equivocados, tanto no que se refere à crise sanitária, quanto à crise econômica que se aprofundará acaso não tomadas as medidas adequadas. Por outro lado, quanto às já aprovadas, as notórias dificuldades de implementação estão a evidenciar ausência ou, mesmo, omissão do Estado de cumprir com seu dever/poder de oferecer condições aptas à realização do direito à vida.
As medidas propostas pelo governo brasileiro são insuficientes para o enfrentamento das necessidades urgentes da pandemia do Covid-19, cuja crise que provoca será tanto menor quanto mais ações de proteção à vida e de incentivo à renda dos trabalhadores e, sobretudo, dos mais vulneráveis, forem tomadas. O aumento exponencial do contágio e das mortes que, a cada dia, os dados brasileiros mais estampam tem, por si só, custo humanitário e econômico elevadíssimos.
Para a saúde dos cidadãos e da economia, saídas necessárias são isolamento e prevenção, de um lado e, de outro, a planificação coordenada das ações pelo Estado, com garantia de emprego e renda para os trabalhadores, injeção de liquidez na economia, garantia dos fluxos de renda e oferta de crédito acessível aos pequenos produtores, micro e pequenos empresários, com medidas eficazes à proteção aos que trabalham nas atividades essenciais ao enfrentamento da pandemia, aos precarizados em geral, informais, “autônomos”, “empresários de si próprios”, trabalhadores domésticos e às suas famílias, incluídos os setores de comércio e serviços e a produção industrial.
A atuação enfática do Estado, via gasto público e política fiscal e monetária ativas, é essencial para se obter maior previsibilidade, confiança e, sobretudo, para ativação da demanda por consumo. É a partir dessa compreensão que o texto discute as propostas do governo brasileiro dirigidas ao trabalho, buscando, a partir da dinâmica da economia e em diálogo com o direito à vida e à saúde que o artigo 6º da Constituição de 1988 assegura, trazer elementos que contribuam para com o debate sobre a importância de políticas públicas universais, aptas à concretização dos princípios constitucionais da dignidade humana e do valor social do trabalho e à realização dos direitos à vida e à saúde que o artigo 6º da referida Constituição de 1988 elege como sociais fundamentais.
E é justo por tais medidas não assegurarem eficazmente o emprego, deprimirem a renda do trabalho e suprimirem direitos, com impacto sobre a demanda por bens e serviços e cujos efeitos poderão ser deletérios para a própria economia que seus defensores dizem querer concretizar, que se resgata o dizer de Belluzzo quando questionado sobre a MP 927: verdadeiro “atentado à razão humana”. De fato, está em questão a transformação do papel do Estado para que os indivíduos e as instituições não sucumbam “ao assalto de moinhos satânicos”, na clássica expressão de Polanyi.
Notas:
[i] Tutaméia, 23 de março/2020. Disponível aqui.
[ii] Termo utilizado no Boletim nº9 de Conjuntura, do Centro de Conjuntura da UNICAMP, CECON.
[iii] Consultar “Dossiê Reforma Trabalhista”, GT Reforma Trabalhista, CESIT/Unicamp, set.2017. Disponível aqui.
[iv] CARDOSO DE MELLO, João Manuel. O capitalismo tardio. 1ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1982.
[v] Ver BIAVASCHI, Magda Barros. O direito do trabalho no Brasil – 1930-1942. São Paulo, LTr, 2007.
[vi] COLLOR, Lindolfo. Origens da legislação trabalhista brasileira. Porto Alegre: Fundação Paulo de Couto e Silva, 1990.
[vii] Nota técnica “Emprego, trabalho e renda para garantir o direito à vida”, GT Mundos do Trabalho: Reformas, Cesit/Unicamp, abril/2020. Disponível aqui.
[viii] Essas MPs estão prestes a serem votadas pelo Parlamento brasileiro.
[ix] Consultar: FILGUEIRAS, Vitor Araújo; CAVALCANTE, Sávio Machado. What has changed: a new farewell to the working class?. Rev. bras. Ci. Soc. [online]. 2020, vol.35, n.102. Epub Mar 02, 2020. ISSN 0102-6909. Disponível aqui.
[x] Remete-se a: KREIN, José Dari; GIMENEZ, Denis Maracci; SANTOS, Anselmo Luis dos (org.) Dimensões críticas da reforma trabalhista no Brasil, Campinas, SP: Curt Nimuendajú, 2018.
[xi] GT Mundos do Trabalho: Reformas, CESIT/Unicamp. Nota técnica: “Emprego, trabalho e renda para garantir o direito à vida”, abril/2020.
[xii] Consultar: DIEESE, Nota Técnica nº 224, 23 de março/20. Disponível aqui.
[xiii] DIEESE. Nota Técnica n 223, 17 de março/20: A pandemia do coronavírus e a anemia da economia brasileira. Disponível aqui.
[xiv] Um veto foi à ampliação do Benefício de Prestação Continuada, BPC, expandido para 50% do SM.
[xv] Consultar estudos de MANZANO, Marcelo e BORSARI, Pietro. Disponível aqui.
[xvi] CNI: Novas propostas da indústria para atenuar os efeitos da crise. Abril, 2020. Disponível aqui.
[xvii] Conferir estudo de MANZANO, Marcelo e BORSARI, Pietro, já citados (nota 16).
[xviii] Disponível aqui.
[xix] Disponível aqui.
[xx] R$3.135 e R$ 12.202,00, respectivamente.
[xxi] Vale notar que 84% das empresas tem até 9 empregados e, em geral, são empresas com menor capacidade de amortecer choque de demanda na crise. É razoável supor que a medida será ineficaz, eis que, ao não assegurar de forma eficaz o emprego, empresas em baixo nível de atividade produtiva poderão optar pelas despedidas, em especial dos trabalhadores menos qualificados, para substituí-los ou recontratá-los quando a economia for retomada.
[xxii] Lei nº 10.101/2000 – PLR; Lei nº 13.636/2018 – Microcrédito; Lei nº 13.846/2019 -Benefícios e Perícias INSS; Lei nº 12.682/2012 – arquivamento, meios eletromagnéticos; Lei nº 7.855/1989 – multas trabalhistas; Lei nº 9.601/1998 – contrato a prazo determinado; Lei nº 5.889/1973 – trabalho rural; Lei nº 12.023/2009 – movimentação de mercadorias e trabalho avulso; alterações nas categorias de arquivista, artista, atuário, jornalista, publicitário, radialista, secretário, sociólogo, corretor de seguros e guardadores de carro.
[xxiii] Relaciona-se: I –recepção e encaminhamento de propostas de abertura de contas de depósitos à vista, de conta de poupança, de microsseguros e de serviços de adquirência; II – recepção e encaminhamento de propostas de emissão de instrumento de pagamento para movimentação de moeda eletrônica aportada em conta de pagamento do tipo pré-paga; III – outros serviços e produtos desenvolvidos e precificados para o desenvolvimento da atividade produtiva dos microempreendedores, conforme o art. 1º desta Lei; IV – cobrança não judicial; V – realização de visitas de acompanhamento, de orientação e qualificação, e elaboração de laudos e relatórios; VI – digitalização e guarda de documentos, como fiel depositário.
[xxiv] Vazquez, Bárbara V. Correspondentes bancários e terceirização: o subterrâneo das relações de trabalho no setor financeiro no Brasil . Dissertação de mestrado apresentada ao IE/Unicamp, em 28 de fevereiro de 2018. Disponível aqui.
[xxv] Em referência ao termo utilizado por Karl Polanyi, na Grande Transformação (1944).
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As medidas para o trabalho no contexto da pandemia configuram um atentado contra a razão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU