Níveis históricos de pobreza entre os trabalhadores começam a ser registrados e também projetados. Dois dias antes do Dia Internacional dos Trabalhadores, a Organização Internacional do Trabalho – OIT divulgou um estudo que estima que a crise do coronavírus está deixando 1,6 bilhão de trabalhadores em todo o mundo com rendas insuficientes para a subsistência. O coronavírus, em poucos meses, acentuou o aumento da desigualdade e expôs a fragilidade em que se encontra a grande massa de trabalhadores do mundo.
Nos trabalhos formais algumas saídas foram encontradas, no entanto com medidas que pesam sobre o elo mais fraco das relações de trabalho. Porém, ao mesmo tempo que algumas saídas eram possíveis para alguns, centenas de milhares de trabalhadores estão perdendo seus vínculos com as economias confinadas, e se projeta até 436 milhões de empresas em alto risco de interrupção de atividades.
Trabalhadores informais e desempregados sofrem mais com o desamparo de ações do Estado para garantir não apenas a renda de sobrevivência, como também direitos básicos, de proteção social, saúde e saneamento diante de uma pandemia.
Nesse momento de aprofundamento das contradições do capitalismo, são diversas as reflexões sobre qual será o futuro deste sistema, que tem no seu cerne a exploração do trabalho, ao mesmo tempo que é incapaz de mantê-lo estável. Confira na sequência algumas dessas reflexões publicadas pela IHU On-Line no período da pandemia.
Imagem: Wagner F. Azevedo | IHU
Quando a covid-19 começava a se espalhar intensamente em todo o Brasil, um trabalhador do Metrô de São Paulo escreveu um depoimento relatando o cheiro de morte que os trens carregavam. Em meados de março, quando o número de infectados no país era de 1.600, ele afirmava que “manter o Metrô aberto nestas condições é irresponsável, pois estamos contribuindo ativamente para a disseminação do vírus. É urgente um plano de contingenciamento do serviço para atender apenas o essencial, garantindo a segurança de todos”. Em 01-05-2020, o número de infectados aumenta em mais de 7 mil novos casos a cada 24 horas.
As consequências do coronavírus para a saúde e para o sistema saúde já eram conhecidas em março, pelas experiências europeia e chinesa. A política de confinamento era uma resposta à exponencialidade com que ocorre o contágio, mas que também evidenciava previamente as perdas econômicas que ocorreriam.
O sociólogo e diretor técnico do Dieese, Clemente Ganz Lúcio, em artigo publicado em 13-03-2020, alertava que “Na medida que o vírus se espalha em mais da metade dos países, o travamento vai se ampliando, sem data para acabar. O destravamento é complexo e levará tempo. Os impactos sobre os empregos e a renda dos trabalhadores serão severos, além dos riscos sobre a saúde e a vida.”
Foto: Fernando Frazão | Agência Brasil
Em reportagem do jornal italiano La Repubblica, publicada em português pela IHU On-Line, Ernesto, um metalúrgico italiano, descrevia a angústia que hoje impacta o Brasil e a maior parte dos trabalhadores do mundo: “aqui o trabalho a distância não faz sentido: nos departamentos colocaram os dispensadores de desinfetantes, dobraram os turnos de limpeza nos banheiros, introduziram o escalonamento também na cantina, mas nos sentimos numa armadilha: 'por que estou aqui? Por que não organizam o trabalho de forma diferente?”.
O artista italiano Moni Ovadia, em artigo, também questionava a condição dos operários: “Por que só os operários podem ficar desprotegidos ou menos protegidos? Por que o pensamento ao direito a estar protegido do contágio não se estende automaticamente aos operários? Por que são necessários protestos, greves e duras declarações sindicais para que a questão entre na pauta do dia?”. A resposta para ele era simples: “Porque a classe operária é tratada como a casta dos párias, a classe que é a espinha dorsal da economia produtiva [...] agora que todo o país precisa ser realmente posto sob segurança, mais uma vez os últimos aos quais se pensa em estender o direito à segurança no local de trabalho são os trabalhadores industriais”.
E aos trabalhadores informais a ordem para trabalhar partia da necessidade própria e do desamparo das políticas públicas. Em reportagem do site Ponte, reproduzida pela IHU On-Line, entregadores de aplicativo relatavam a falta de auxílio das plataformas ao serviço. João Vitor, entregador da Rappi, expõe “tem que trabalhar, a dívida não espera. Independente do vírus, tem que pagar as contas. Vem o banco e toma a moto, toma tudo. Estou tocando mais entrega para fazer mercado hoje”.
Foto: Fotos Públicas | Roberto Parizott
As diferenças que a pandemia coloca ao mundo trabalho é o que motiva o artigo de Dominique Lhuilier, psicóloga do trabalho, professora emérita no Conservatório Nacional de Artes e Ofícios. Lhilier avalia que a crise de saúde gera transformações na divisão do trabalho. Para ela, o confinamento gerou a categoria dos desempregados anteriores à crise, os desempregados pelo confinamento – que intensificam as contradições do trabalho doméstico e divisão por gênero –, os trabalhadores em teletrabalho e os trabalhadores com “sobretrabalho” – os mal pagos de atividades essenciais à vida.
Para Lucas Hertzog, sociólogo e pesquisador do Centre for Social Science Research - CSSR, na Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul, o confinamento exigido pela pandemia acentua a divisão do trabalho digital e deixa evidentes as etapas do processo de produção. Na entrevista concedida à IHU On-Line, Hertzog explica que “engenheiros de software com altas remunerações dirigindo seus carros elétricos Tesla em Palo Alto (Santa Clara - Califórnia, EUA) estão na mesma rede de mineradores congoleses que extraem coltan em minas deploráveis e sob regimes de trabalho degradantes”.
O sociólogo aponta que se “formam novas embalagens e novos meios para velhas formas de exploração”. Assim é o trabalho digital que, para ele, “consolida uma gramática que compactua com a flexibilização das leis trabalhistas e zomba da importância dos direitos do trabalhador. A ironia é que esta gramática sempre foi dominante em termos estatísticos no país. Nunca chegamos a consolidar uma rede de proteção efetiva a todos trabalhadores. Agora essa gramática ganha novos termos, alguns importados, como “home office” e “self branding”, e passa a ditar as lógicas de novos espaços de trabalho. São apenas novas embalagens e novos meios para velhas formas de exploração.
O professor Henrique Amorim, da Sociologia da Unifesp, e Felipe Moda, mestrando do PPGCS da Unifesp, escrevem que o coronavírus está agravando a precariedade do trabalho de entregadores por aplicativos. A chamada uberização força esses trabalhadores a escolherem entre a subsistência e a saúde, formando “uma síntese da informalidade contemporânea”. “Arriscam a saúde. Ganham misérias. Não têm direitos, segurança ou futuro. O capital quer que, breve, todos sejamos assim”, analisam os autores.
Foto: Gilson Abreu | AEN | Governo do Paraná
Para Cesar Sanson, professor de Sociologia do Trabalho da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, “a pandemia do coronavírus escancarou que a maioria dos trabalhos imprescindíveis é mal paga. Quanto mais útil o trabalho, pior a sua remuneração”. No seu artigo, Sanson considera que as relações das formas de trabalho que se moldaram com a pandemia favorecerão sobretudo o capital e suas alterações não serão significativas.
Para Branko Milanovic - economista da Universidade de Nova Iorque, e autor do livro “Capitalism, Alone”, publicado em setembro de 2019, nos EUA - a crise reduzirá os salários dos trabalhadores ocidentais, abrindo a possibilidade de redução das desigualdades dentro dos países ocidentais. No entanto, na entrevista ao La Reppublica e publicada em português pela IHU On-Line, projeta mudanças na globalização e dentro do capitalismo com “o agravamento da situação nos EUA, com números recordes de vítimas e desempregados, e a recuperação prudente, mas maciça, de atividades na China claramente adiantada em relação às previsões, ainda que com alguma incerteza, abrem caminho para outra consequência geopolítica importante dessa tragédia: um novo deslocamento do centro de gravidade econômico do mundo em direção à Ásia”.
O teólogo Raphael Colvara Pinto analisa a crise a partir das medidas econômicas do governo brasileiro publicadas pela Medida Provisória 927/2020. Segundo ele, a MP é um reforço do lucro para alguns setores, enquanto que para outros “se vislumbra o aumento da pobreza e desigualdade social”. Para o autor “no contexto neoliberal, pelo fato dos trabalhadores não possuírem mais o mesmo instrumento de pressão social, tornaram-se invisíveis e até descartáveis”.
Outra resposta à MP 927/2020 veio da Associação Juízes para a Democracia – AJD, em um manifesto com 37 medidas que foi enviado para os três poderes do Estado. A associação as propôs “respeitando os valores constitucionais da solidariedade, do Estado Social e da ordem democrática” e defendem serem “essenciais para o enfrentamento responsável dos problemas sociais e econômicos gerados pela disseminação do Novo Coronavírus”.
Assim como a AJD outras propostas foram apresentadas para superação da crise do coronavírus sem ataques à classe trabalhadora. No mesmo artigo supracitado, Clemente Ganz apresentava três medidas: “a) retomar imediatamente investimentos públicos; b) garantir a renda das pessoas (salários e transferências); c) garantir liquidez para empresas e pessoas (capital de giro, alongamento dos prazos para pagar dívidas, desoneração temporária)”.
O papa Francisco, em carta enviada no domingo de Páscoa para os movimentos populares, exortava: “Talvez seja a hora de pensar em um salário universal que reconheça e dignifique as tarefas nobres e insubstituíveis que vocês realizam; capaz de garantir e tornar realidade esse slogan tão humano e cristão: nenhum trabalhador sem direitos”.
A crise do trabalho é uma das áreas orientadoras da reflexão e ação do Instituto Humanitas Unisinos - IHU. Confira algumas de nossas publicações sobre o tema.