23 Março 2020
"Cada trem que passa tem cheiro de morte", afirma trabalhador do Metrô de São Paulo em depoimento publicado por PassaPalavra, 22-03-2020.
O trabalho no Metrô de São Paulo em dias normais já é arriscado e desgastante. Ficamos em pé por longas horas e lidamos diariamente com milhares de pessoas que passam pelas estações. O risco de sofrer acidentes ou ser agredido é constante. Mas nada se compara a esses dias de pandemia. Nunca esperei tanto por uma folga como agora; e nunca relutei tanto em voltar para aquele lugar como agora. Meus colegas de trabalho estão com medo – e com razão, pois apesar da diminuição radical na quantidade de passageiros nos últimos dias, o risco de contaminar-se com o novo coronavírus é muito alto. Muitos já dão como certo que irão se contaminar, só falta saber quando.
O Metrô de São Paulo é dos mais lotados do mundo, transportando uma média de 5,3 milhões de passageiros por dia. Mas desde que a OMS (Organização Mundial da Saúde) classificou a covid-19 como pandemia esse número teve uma queda drástica. Na estação onde trabalho o horário de pico não existe mais e, pelo que pude ouvir de colegas, a situação é a mesma nas outras estações. Brincamos entre nós que agora todo dia é domingo. Isso também nos dá um certo alívio, pois indica que as pessoas estão ficando mais em casa, o que evita a circulação do vírus.
Além disso, implementamos diversas alterações nas rotinas de trabalho para aumentar nossa segurança, como deixar cancelas permanentemente abertas para não ter de abri-las a cada ocasião. Assim também evitamos de nos aproximar dos passageiros a cada vez que precisamos liberá-los na catraca, orientando-os a passar pela cancela. Os direcionadores de fluxo, que outrora serviram para organizar a multidão e dificultar as burlas (usuários que entram sem pagar), agora servem para isolar nossa área de trabalho, mantendo uma distância segura dos usuários. Por fim, eliminamos postos de trabalho que nos deixavam mais expostos, como a plataforma. Tudo isso sem a anuência da chefia, obviamente, que no máximo tolera nossas intervenções devido à excepcionalidade da situação.
Ainda assim, continuamos expostos ao contágio. Equipamentos de trabalho como rádios transceptores, chaves, cartões magnéticos e computadores, são compartilhados por todos – e não há como higienizá-los a cada uso. Até a semana passada, usávamos álcool gel fora do prazo de validade para higienizar as mãos e até agora não há luvas ou máscaras em quantidade suficiente para todos. Nas bilheterias terceirizadas não havia álcool gel ou luvas, o que deixa esses trabalhadores em risco iminente de contaminação, visto que manuseiam cédulas de dinheiro e bilhetes o dia todo e não podem ausentar-se das cabines para lavar as mãos com a frequência necessária.
Até à última sexta-feira, 20 de março, funcionários com mais de 60 anos ainda estavam trabalhando normalmente, correndo sério risco de morte. Essa semana também tivemos os primeiros casos confirmados de funcionários contaminados, o que deixou a gente ainda mais preocupado. Somente no sábado o Sindicato dos Metroviários obteve na Justiça uma liminar garantindo o afastamento imediato, com todos os direitos assegurados, aos trabalhadores que se enquadrem no grupo de risco (idosos com 60 anos ou mais, hipertensos, cardíacos, asmáticos, doentes renais e fumantes com deficiência respiratória e quadro de imunodeficiência) e obrigando o metrô a fornecer EPIs (Equipamentos de Proteção Individual) adequados, como máscaras, luvas e álcool gel, inclusive para os trabalhadores terceirizados.
Entre os funcionários, o sentimento é de que está tudo errado e nós estamos abandonados à própria sorte. Se falamos, não nos ouvem. Se nos ouvem, fingem que não nos compreendem. Cada trem que passa tem cheiro de morte. E tudo segue, como se nada estivesse acontecendo. Mesmo com vários funcionários afastados, o metrô continua operando normalmente e, até agora, não apresentou nenhum plano de contingenciamento do serviço para se adequar à situação. Eu penso que, da forma como está, o metrô não é capaz de garantir a segurança nem dos passageiros nem dos funcionários. Manter o Metrô aberto nestas condições é irresponsável, pois estamos contribuindo ativamente para a disseminação do vírus. É urgente um plano de contingenciamento do serviço para atender apenas o essencial, garantindo a segurança de todos.
No momento em que escrevo essas linhas, o Sindicato dos Metroviários de Minas Gerais acaba de anunciar greve a partir do dia 23. Creio que diante da atual situação, se o Metrô de São Paulo não apresentar um plano de contingência, somos obrigados a seguir o exemplo dos companheiros de Minas Gerais. Não podemos continuar sendo um vetor de transmissão do novo coronavírus e não fazer nada. Temos que ter responsabilidade com a vida da população trabalhadora, não podemos nos isentar diante da calamidade que se anuncia.
São Paulo, 22 de março de 2020.
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Fim de linha: trabalhar no metrô em tempos de pandemia. Depoimento de um trabalhador - Instituto Humanitas Unisinos - IHU