01 Mai 2020
O mundo inteiro se encontra diante de uma tremenda comoção. Por causa do coronavírus, a vida econômica foi paralisada em grande parte do mundo. Os estados precisam ajudar suas populações com gigantescas medidas alimentares. Alguns já falam do fim do capitalismo.
Durante muitos anos, Karl Reitter foi docente nas universidades de Viena e Klagenfurt, professor não titular de filosofia e membro honorário do grupo de trabalho federal sobre a renda básica de Die Linke. Foi coeditor da revista Grundrisse e é membro do conselho de redação da revista mensal austríaca Volksstimme. Há muitas décadas, pesquisa sobre a renda básica incondicional (BGE) [1]. A possibilidade ou inclusive a necessidade de um modelo de renda básica se tornou um tema da atualidade, de forma dificilmente previsível, a propósito do coronavírus.
A entrevista é de Frank Jödicke, publicada por Sin Permiso, 23-04-2020. A tradução é do Cepat.
Como está e como enfrenta o atual isolamento provocado pelas restrições para conter a pandemia do coronavírus?
Francamente, não muito bem. Economicamente, não me falta nada, como aposentado tenho um ingresso básico ‘de facto’. Contudo, sinto muita falta dos contatos sociais. Nossa vida social, cultural e política não pode ser transferida para a internet, isso é uma ilusão ou, se preferir, uma mentira. Durante décadas, desenvolvemos a internet. No entanto, os eventos ao vivo estão em alta, como nunca antes. Como seres sociais, o contato direto é insubstituível.
Nos Estados Unidos, o secretário do tesouro, Steven Mnuchin, agora envia cheques para a população. Trata-se de uma renda básica incondicional ou corresponde muito mais ao plano de Friedrich August von Hayek, que queria que a assistência social fosse o mais simples possível, em termos administrativos, segundo o lema: dê às pessoas algo para comer e as deixem a sua sorte?
Vamos deixar claro, de antemão, o que realmente a renda básica busca. Nós que a defendemos queremos uma sociedade que garanta para cada indivíduo, em vida, uma provisão material básica, sem importar o que faça ou deixe de fazer. A sociedade deve se comprometer com este direito básico. Também acreditamos que existem as condições econômicas e sociais para isso.
Tanto para Friedrich August von Hayek, como para o repetidamente mencionado Milton Friedman, tal objetivo seria absurdo, economicamente prejudicial e oposto ao seu conceito de liberdade. Para Friedman, em um livro intitulado Capitalismo e liberdade, tratava-se de uma cobertura mínima. De acordo com o poder aquisitivo atual, propunha um imposto negativo de no máximo 214 dólares por mês.
Se a existência material do indivíduo está garantida pela sociedade como um direito fundamental, ninguém pode ser excluído dela. Quem pergunta por que os milionários deveriam recebê-la, não quer entender o conceito.
Por mais estranho que pareça, até mesmo os governos conservadores não temem a falência, se agora lançam pactos de ajuda que superem os limites anteriores da dívida. Isto expõe a falsidade das sentenças de austeridade e prova que o dinheiro para medidas (incomparavelmente mais baratas) como a renda básica sempre existiu?
Os atuais pacotes de ajuda que foram tomados são de um tamanho impressionante, mas estão concebidos apenas como um pagamento único. Na crise de 2008 já se demonstrou que os círculos neoliberais governantes atuais se dispõem a renunciar seu dogma do ‘zero negro’ [2] no orçamento.
Uma renda estabelecida a longo prazo requer um marco financeiro de 25% a 35% do Produto Interno Bruto. Uma verdadeira renda básica só pode ser financiada por meio de um enorme aumento dos impostos sobre as rendas mais altas e as grandes propriedades. Por isso, até mesmo críticos como Alex Gourevitch e Lucas Stanczyk escreveram que, “recentemente, inclusive os bilionários estão prestando atenção na ideia”, mas mantém: “Deve ficar claro que a classe empresarial não aceitará voluntariamente expropriar a si mesma”.
O que você entende exatamente como uma verdadeira renda básica e por que não é uma forma de assistência social, como o modelo de prestação social básica dos Verdes austríacos, que ainda queriam comprovar a “disposição ao trabalho”?
Uma verdadeira renda básica pode ser definida por quatro critérios: tem que garantir a existência, tem que ser paga individualmente, tem que ser para todos, sejam ou não cidadãos, e sobretudo é incondicional. E mais ainda, não está vinculada à vontade de aceitar um salário ou um emprego remunerado, nem leva em conta a possível posse ou renda seja de que tipo for.
No que diz respeito ao modelo social verde, toda a literatura científica sobre o tema se refere à transformação do estado de bem-estar original em um estado de trabalho (workfare state) neoliberal. Concebidas originalmente na fase auge do pós-guerra e o pleno emprego para os homens como um seguro contra os riscos da vida laboral, as prestações sociais para os desempregados e os necessitados se tornaram, em grande medida, um meio de disciplina e doutrinamento. Portanto, Michael Hirsch tem razão ao falar do “paternalismo punitivo” do estado de bem-estar. Ainda que a Lei do Ingresso Mínimo Verde defenda controles mais leves, se mantém dentro do marco do estado de trabalho.
A crise do coronavírus mostra que a reforma neoliberal do sistema de saúde tem consequências fatais, por exemplo, quando poderosas empresas farmacêuticas vendem produtos a preços excessivos e protegem suas patentes em vez de ajudar. Por outro lado, agora, parece ser o “estado forte” que está salvando vidas. Sendo assim, se o capitalismo parece ter sobrevivido em muitas áreas, por que salvá-lo com a renda básica, em vez de almejar agora, decididamente, uma transformação socialista do estado?
Obrigado por esta importante pergunta. A renda básica retira força da instituição básica do capitalismo: a necessidade do trabalho assalariado. Para Marx, o trabalho assalariado é o núcleo da socialização capitalista. As grandes formas históricas da econômica capitalista – ou seja, o produto do trabalho se torna uma mercadoria, os meios de produção e a terra se tornam propriedade privada – são sua consequência direta. “O salário é uma consequência direta do trabalho alienado, e o trabalho alienado é a causa direta da propriedade privada”. (MEW 40; 521) [3]
Sendo assim, precisamos superar três formas elementares de socialização capitalista: o trabalho assalariado, a condição de mercadoria do produto do trabalho e a propriedade privados dos meios de produção e a terra. Portanto, uma sociedade socialista e comunista também deve aplicar a renda básica.
Sua concepção reside em um conceito de liberdade mais sofisticado. Parece que você considera, em termos kantianos, menos “estar livre de” que “ser livre de”. O que significa a liberdade obtida por meio de uma renda básica?
Significa estar ativo em liberdade. Como marxista, defendo um conceito empático do trabalho. É apenas como uma atividade livre que o trabalho pode se tornar o que realmente pode ser: “a primeira necessidade vital” (MEV 19; 21) das pessoas. Muitos críticos, aqui, praticam uma rotulagem fraudulenta. Falam de pleno emprego em vez de trabalho assalariado e suprimem as sólidas críticas de Marx. A ideia de que o trabalho assalariado, na realidade, pode ser aquela livre atividade que Marx pretendia para superar o capitalismo é absurda na perspectiva marxista.
Marx já reconheceu o problema no qual as economias pós-capitalistas devem possuir medidas que possam ser representadas em números para conseguir uma justiça distributiva. Aqui, há dois problemas: primeiro, como é possível medir a utilidade social do trabalho não produtivo, seja o trabalho doméstico não assalariado ou o da atriz? Em segundo lugar, como é possível introduzir uma dimensão de cálculo fixo, na qual a quantidade de um trabalho realizado corresponda a um salário? De Lenin, passando por Trotsky, até Pannekoek, não são encontradas soluções satisfatórias para esses problemas. Por certo, o poeta russo Velimir Khlébnikov tinha uma solução (pouco conhecida): o salário devia ser determinado pelo número de batidas do coração, o que significaria que as pessoas apaixonadas ganhassem especialmente bem. É possível dizer que, ao final, as tentativas do estado socialista do século passado fracassaram em razão do problema das “folhas de horários de trabalho”, porque a estimativa do valor flutuante foi substituída pelo despotismo do plano?
Para Marx, o conceito de justiça não é uma ideia fundamental. A economia capitalista faz com que as condições pareçam diferentes do que são. Em particular, o fato científico da exploração não é evidente. Marx destaca a razão: “Portanto, entende-se a importância crucial da transformação do valor e o preço da força de trabalho na forma do salário ou no valor e o preço do próprio trabalho. É sobre esta aparência, que torna invisível a relação real e mostra justamente o contrário, em que ficam retratadas todas as concepções jurídicas do operário como do capitalista, todas as mistificações do modo de produção capitalista, todas as suas ilusões de liberdade, todas as bobagens apologéticas da economia vulgar” (MEW 23; 562). E devemos acrescentar também: muitas noções de justiça. A exploração passou de uma categoria analítica a uma categoria moral. O comunismo não quer fazer justiça, quer a liberdade de se associar com outros através de uma atividade autodeterminada.
Em relação ao conceito das folhas de horários de trabalho, que Marx esboçou em sua crítica ao Programa de Gotha: no chamado socialismo real, guardava-se silêncio a esse respeito, só o grupo de Comunistas Internacionais com a colaboração de Anton Pannekoek, que você mencionou, viu nisso uma alternativa econômica à economia dirigida stalinista.
Considero que o conceito de Marx das folhas de horários está pouco desenvolvido. Deixa muitas perguntas abertas: Quem determina o que é o trabalho, quem trabalha e como se mede o trabalho? Mas a intuição básica de Marx é correta. Uma sociedade em transição para o comunismo não pode permitir um consumo ilimitado. Deve ser limitado pela primeira vez. O que há de ruim em distribuir o produto total socialmente produzido da maneira mais equitativa possível entre todos? Um aparato estatal necessariamente mais forte que decida sobre o trabalho e sua extensão seria, então, supérfluo.
Como pode a renda básica resolver esta dificuldade e nos aproximar de um sistema econômico “de cada um segundo suas capacidades a cada um segundo suas necessidades”?
Marx não escreveu deliberadamente um plano para a transição ao comunismo. Pensar de forma marxista significa reconhecer as possibilidades objetivas que existem de forma velada no capitalismo e buscar utilizá-las politicamente. Estas vêm dadas sobretudo pelo desenvolvimento da força produtiva do trabalho. O conceito de renda básica também não é uma receita integral para tal transição. Simplesmente retira força da instituição básica da sociedade capitalista, o emprego assalariado e remunerado. Ao mesmo tempo, esboça um possível princípio de distribuição de uma sociedade livre.
Se é o caso, em definitivo, da realização da pessoa, o que precisamente impede a atividade econômica e o consumo capitalista, então o problema está no conceito de trabalho. Depois de tudo, a existência social em geral das pessoas só pode ser apreciada caso se supere o conceito reducionista de trabalho. Como a renda básica pode ajudar nesse sentido?
A compreensão socialmente hegemônica do trabalho o equipara ao salário e emprego remunerado. O trabalho doméstico e de cuidados, o trabalho em contextos sociais, culturais, políticos e artísticos não são reconhecidos e são desvalorizados como trabalho. Corresponde a esta visão completamente abreviada do trabalho a ideia de que nossa sociedade está se desmoronando em uma esfera produtora, que é a economia capitalista, e em uma esfera meramente consumidora, que seriam todas as outras áreas da sociedade. Isto dá lugar à acusação de que a renda básica não sustentaria os trabalhadores assalariados.
Esta oposição é profundamente ideológica. Basta considerar os fatores da potência produtiva do trabalho. Baseiam-se, como mostra Marx, em condições sociais gerais que não podem ser atribuídas, nem localizadas. O capitalismo se baseia em condições que não pode produzir, nem reproduzir, mas que necessita indispensavelmente para sua existência.
É uma ordem econômica substancialmente parasitária. Não pode existir por si mesma. O renomado economista marxista Michael Krätke formula este fato da seguinte maneira: “Por razões sistemáticas, este não é o caso, o capitalismo só pode ser pensado como um sistema ‘aberto’. Ou seja, como um sistema que não pode produzir alguns pré-requisitos essenciais para sua existência e desenvolvimento completamente ‘fora de si mesmo’, ou seja, com seus próprios meios. Uma produção capitalista privada de trabalhadores assalariados ou de recursos naturais não é concebível e não existe”.
Especialmente do lado social-democrata é possível escutar: Quem não reconhece o trabalho como a base da sociedade, persegue um mundo ilusório melhor e distante da realidade, que só pode ser plausível aos intelectuais cínicos. O que responde um defensor da renda básica contra o argumento de que as pessoas simplesmente querem trabalho e só ele as emanciparia?
A posição de que o emprego assalariado e remunerado é da maior relevância para a vida econômica, social e cultural do indivíduo e, portanto, o trabalho assalariado é uma esfera decisiva de nossa vida social não é mais que uma tautologia gigantesca. Esse é, com efeito, o fato. E não só para o próprio indivíduo, mas também para seus parentes, filhos e netos, amigos e inclusive conhecidos.
Mas o trabalho assalariado como modo de integração social não é a solução, pelo contrário, o problema. O trabalho assalariado é inevitavelmente hierárquico. Se eu trabalho como motorista de empilhadeira ou como médico, a diferença está em todos os aspectos. Não me causa estranheza que os ideólogos neoliberais afirmem que o indivíduo possa se desenvolver em um emprego assalariado e remunerado, mas que isto seja compartilhado pelos sindicatos e a social-democracia, sim, surpreende. Na medida em que a atividade laboral é considerada meramente como a produção de valor de uso, esta requer e promove as competências e habilidades do indivíduo, e como processo de exploração está sujeita às leis de produção de benefícios e de maximização do lucro.
Há algo cínico em falar da integração social através do trabalho assalariado. É um fato que a marginalização e a exclusão social também se produzem em e através do trabalho assalariado. A trabalhadora doméstica migrante está excluída, está marginalizada. Também estão os trabalhadores da indústria frigorífica alemã que vem da Romênia ou Bulgária. São percebidos como parte da sociedade alemã? São levados em consideração quando saem de vez em quando de seus casebres?
Já dizia Marx: “Tão logo não houver coerção física ou de outro tipo, fugirá do trabalho como da peste”. Não existe o perigo de que muitas tarefas impopulares, mas socialmente importantes, não sejam mais assumidas, uma vez que se introduza a renda básica?
Quando se conversa com as pessoas que realizam tais atividades, não veem tanto o problema no trabalho em si, mas nas circunstâncias em que precisa ser realizado. Se as condições são boas, o trabalho é apreciado por completo. Em Viena, os empregos da coleta de lixo seguem sendo solicitados. Uma renda básica permite dizer “não”. Se a necessidade cai, o trabalho desagradável deve ser melhor pago e/ou as condições de trabalho devem ser melhoradas. Palavra-chave: o ‘mobbing’.
Hoje em dia, a renda básica enfrenta um clima de vigilância e no qual se alimenta o temor de “gente preguiçosa”. Isto oculta que, aqui, o trabalho seja entendido como uma praga e um castigo, sobretudo inútil. O sentimento básico de “odeio o meu trabalho de merda”, como descreveu recentemente David Graeber, é geralmente assumido. Por outro lado, a crítica se aproxima do absurdo, pois por qual razão alguém simplesmente embolsaria sua renda básica, sem buscar usar suas ideias e mão de obra para melhorar sua própria vida ou a de seus semelhantes?
A exigência de uma renda básica se baseia na suposição de que a pessoa é um ser que se esforça para estar ativa. Estar condenado à inatividade a longo prazo é mental e fisicamente difícil de suportar. As pessoas já estão ativas nas áreas mais diversas. Uma renda básica permitiria trabalhar realmente para a comunidade, sem ter que se preocupar com a existência, sem que o produto do trabalho tenha que tomar o caráter de uma mercadoria.
A renda básica busca alcançar uma espécie de economia do valor de utilidade. Pode explicar em que mediada esta apoiaria os objetivos feministas e ecológicos?
A renda básica não deve conduzir apenas para uma economia do valor de utilidade pura. Inclusive agora, os artistas, cientistas e pequenos autônomos estão exigindo uma renda básica. É claro que querem viver de seu trabalho, mas muitas vezes isto não é possível ou é apenas temporal. Uma renda básica proporcionaria segurança material e eliminaria o medo de ficar sem renda, quando perdem os empregos.
Em relação à objeção de que uma renda básica empurraria a mulher novamente para a cozinha, se pode dizer o seguinte: com uma renda básica, a dona de casa também tem sua própria renda e já não dependeria completamente da renda do homem. Isto é especialmente importante no caso dos divórcios, que muitas vezes supõem para as mulheres graves dificuldades materiais.
A crítica geral de que a renda básica não aboliria automaticamente o domínio do homem sobre a mulher é completamente correta. A renda básica não vence por si mesma nenhuma forma de dominação social. Nem impede um estado de vigilância autoritário, nem faz desaparecer o racismo ou o antissemitismo. Mas não devemos esquecer que toda forma de norma social e de discriminação social é aproveitada pelo sistema econômico dominante. Em outras palavras, os homens ganham e possuem mais que as mulheres, os autóctones mais que os migrantes e as pessoas legais mais que as ilegais. Uma renda básica relativiza a expressão material das formas de controle social.
A experiência demonstra que uma maior proporção de mulheres com emprego remunerado não conduziu, de modo algum, a uma melhor posição social da mulher. As estruturas patriarcais afetam tanto no emprego remunerado, como na esfera privada. Nossos críticos não querem admitir isto. A mulher com trabalho remunerado está inserida em uma hierarquia social e sua discriminação é aproveitada adicionalmente. Ela sabe agora também que sua folha de pagamento vale menos que a do homem.
O argumento da “bonificação para ficar na cozinha” reflete a desconfiança fundamental de muitos críticos da renda básica para o indivíduo. Uma renda básica abriria novas oportunidades de emancipação, que tais oportunidades sejam aproveitadas ou não é outra coisa. Além disso, não há nenhuma medida econômica que possa provocar a emancipação automática. Por qual outra razão se deveria obrigar uma mulher a aceitar um trabalho remunerado a qualquer preço?
O neoliberalismo eliminou o salário familiar fordista. Quase nenhum homem hoje em dia pode manter facilmente toda a família com sua renda. E o resultado? Uma dupla e tripla carga para a mulher. Uma sociedade que se apoia nos firmes fundamentos de uma renda básica relativiza a importância do emprego assalariado e remunerado. Todos os gêneros podem passar por igual entre o trabalho remunerado e o não remunerado.
E qual é a conexão entre uma renda básica e uma economia mais ecológica?
A renda básica tem, com efeito, uma dimensão ecológica. É evidente que a natureza e o meio ambiente também são sacrificados no alto do trabalho assalariado. Com o argumento da criação de postos de trabalho, o capital não só chega às arcas fiscais públicas, mas também mina a regulamentação ambiental e as normas ecológicas.
A ponte entre o movimento por uma renda básica e o cenário de decrescimento pode ser traduzido como crítica ao crescimento. A ideia básica é simples e óbvia. O planeta Terra não pode suportar mais crescimento linear do aumento do consumo de recursos, em todo o mundo, até o nível do Norte do planeta.
Dado que a economia capitalista, impulsionada pela espiral de acumulação dinheiro - mercadoria - mais dinheiro exige inevitavelmente mais “tudo”, o movimento de decrescimento, que vê a si mesmo como a resposta à catástrofe ecológica que se avizinha, tem sem dúvida uma orientação anticapitalista. Uma renda básica relativizaria ao menos a incessante pressão por mais empregos, mais produção, mais crescimento econômico, mais consumo de recursos.
Como avalia as tentativas de introduzir uma renda básica, por exemplo, na Finlândia?
Foram escritas muitas bobagens sobre o experimento na Finlândia. Um governo conservador e uma renda básica de 560 euros, e se concluiu rapidamente que o neoliberalismo estava ensaiando a destruição do estado de bem-estar. Nenhuma palavra sobre o muito complicado sistema social finlandês.
Lá, toda pessoa que está desempregada recebe uma quantidade respeitável de ajuda durante 500 dias, mas depois disso depende de toda uma série de diferentes prestações sociais. Garantiu-se que as 2.000 pessoas selecionadas para o teste não sofressem nenhuma perda econômica. Todas as pessoas selecionadas estavam economicamente melhor com esta renda básica do que sem ela. O experimento não foi suspenso, como se afirma, ao contrário, foi desenvolvido como previsto.
O resultado: este grupo de pessoas não encontrou trabalho mais rápido que outros desempregados, mas declarou que estavam mais satisfeitos e mais saudáveis que antes. E que se conclui disto? Não surpreende que as pessoas estejam melhor quando suas preocupações sobre a vida cotidiana são aliviadas ou inclusive superadas.
Um resultado muito similar foi conquistado com um experimento na região austríaca de Waldviertel, com 44 pessoas desempregadas. Nos Estados Unidos e Canadá, houve alguns experimentos de renda básica com grupos muito pequenos, por volta de 1968. Aqui, também se observou uma maior satisfação, melhor saúde e maior êxito escolar das crianças. Igualmente positivo foi um experimento realizado em uma pequena aldeia de Namíbia, que também produziu certo impulso econômico.
No entanto, tenho bastante reservas em relação a esses experimentos. As mudanças na sociedade em seu conjunto não podem ser testadas em pequena escala. É provável que uma renda básica permitiria retirar forças da cultura dominante do trabalho assalariado, possibilitaria novas perspectivas de vida, um enfoque diferente com a educação, ainda que sou bastante cauteloso ao fazer prognósticos sobre o futuro.
Há numerosas chamadas a uma renda básica como as iniciativas Top-Down. Geralmente, parece que quando se trata de suas demandas por renda básica, os chefes das empresas buscam se aproveitar de uma forma de pagar salários mais baixos e, ainda assim, conservar os consumidores solventes. Como conseguir se desmarcar deste conceito de renda básica?
Um ataque típico contra a renda básica é a afirmação de que esta significaria, de fato, subsídios salariais. Os sindicatos se veriam anulados e graças à renda básica começaria a se pagar salários muito baixos. De fato, sem a renda básica, a coisa evolui exatamente na direção prevista: a remuneração salarial se afunda e as relações trabalhistas se tornam cada vez mais precárias. A renda básica toma nota do fato de que a perspectiva sindical tradicional é cada vez menos efetiva.
O que funcionou nas médias e grandes empresas fordistas está falhando diante das condições de trabalho precárias e fragmentadas. Não foi até recentemente que se negociou com êxito na Áustria um convênio coletivo para empresas de entrega com bicicleta. No entanto, este êxito também mostra que os instrumentos de ação industrial de outrora só tem um efeito limitado hoje em dia. Muitos colegas estão trabalhando simplesmente como empregados e falsos autônomos.
A renda básica eleva o conflito entre o trabalho e o capital, desde o princípio, a um nível da sociedade em seu conjunto, acima do da empresa e as indústrias. Corresponde a situações de vidas em transformação e biografias rompidas. Não só permite dizer “não” a um trabalho, como também fomenta a resistência, incluindo a sindicalização, já que a ameaça de demissão é um espinho cravado. Pode-se supor que a renda básica tem efeitos opostos. Alguns – como agora! – estarão dispostos a trabalhar por pouco ou nada de dinheiro, estou pensando agora em trabalhos em práticas mal remuneradas. Mas alguns trabalhos provavelmente terão que ser pagos com salários decentes. Atrevo-me a duvidar que, com uma renda básica europeia ou inclusive mundial, os migrantes continuarão dispostos a trabalhar como escravos por salários miseráveis e condições de trabalho horríveis.
E mais uma coisa. Por trás do argumento do subsídio salarial há uma quantidade insana de desconfiança no indivíduo. O paternalismo dos sindicatos em particular é enorme. Dar aos indivíduos o poder de atuar só pode acabar de maneira problemática a seus olhos. A mulher retorna à cozinha, o homem trabalha por um salário mais baixo, essa é a subordinação. O âmbito da luta sindical tradicional é sempre local, limitada ao setor e à empresa. A renda básica, por outro lado, tem um efeito tanto na dimensão social geral, como na dimensão individual, que é sua grande fortaleza.
Do seu ponto de vista, pode apresentar uma visão de desenvolvimento econômico e social, nos próximos meses e anos, depois do coronavírus? Em vista da situação, por favor, ofereça uma perspectiva otimista no possível...
A crise abre a porta ao comunismo.
... e agora o prognóstico pessimista.
A vigilância autoritária e o estado policial sobreviverão ao coronavírus.
Senhor Reitter, muito obrigado por esta entrevista.
[1] (BGE) Bedingungsloses Grundeinkommen, Renta básica incondicional (N.d T.)
[2] Schwarze Null o “zero negro” é a expressão de um sinal de identidade das políticas neoliberais alemãs: nem déficit, nem dívida (N.d T.)
[3] MEW (Marx-Engels Werke), Obras completas de Marx e Engels (N.d T.)
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A renda básica supera o trabalho assalariado. Entrevista com Karl Reitter - Instituto Humanitas Unisinos - IHU