17 Abril 2020
“O mundo do trabalho foi profundamente afetado pela crise da saúde e pelas opções escolhidas para o gerenciamento da epidemia. Uma nova divisão do trabalho prevalece, que vem se somar ou transformar as anteriores”, escreve Dominique Lhuilier, psicóloga do trabalho, professora emérita no Conservatório Nacional de Artes e Ofícios, em artigo publicado por Alternatives Économiques, 15-04-2020. A tradução é de André Langer.
O mundo do trabalho foi profundamente afetado pela crise da saúde e pelas opções escolhidas para o gerenciamento da epidemia. Uma nova divisão do trabalho prevalece, que vem se somar ou transformar as anteriores.
Assim, esquematicamente, podemos distinguir hoje dos “sem trabalho”, confinados: os antigos e os novos desempregados, os antigos e os novos “descartados”, aqueles de antes da crise da saúde e aqueles que se juntaram a eles (licença para a guarda de crianças, desemprego parcial, artesãos, comerciantes, autônomos, em licença médica, etc.). Essas pessoas fazem a experiência simultaneamente de uma perda repentina de suas atividades profissionais e de um fechamento. A primeira amplifica o segundo. Elas substituem novas atividades de período integral, aquelas da esfera doméstica e familiar, à custa de uma intensificação dos desafios e tensões na distribuição de tarefas por gênero.
A isso se somam os trabalhadores do “teletrabalho”, confinados: esses devem realizar conjuntamente dois tipos de atividades, a familiar e a profissional. Isso implica uma série de arbitragens, negociações e compromissos. Impõe-se, portanto, uma nova atividade: a construção de uma organização e de condições de trabalho compatíveis com os requisitos dos dois campos de atividade. A auto-organização do “posto” e do tempo de trabalho deve compor com os outros “teletrabalhadores” a domicílio: os filhos e/ou o cônjuge.
Última categoria, a dos trabalhadores com “sobretrabalho”, não confinados e expostos: profissionais da saúde, agentes de entretenimento, assistentes sociais, caixas, entregadores, motoristas de caminhão, coletores de lixo, funcionários dos correios, agricultores, criadores, bombeiros, policiais militares e civis... todos esses servem os primeiros no sentido de que o confinamento de alguns é possível graças ao trabalho dos outros. Essas pessoas, que estão sob os holofotes, descobrem que suas atividades, na maioria das vezes invisíveis, desvalorizadas, mal pagas, são hoje reconhecidas como “essenciais” à vida.
Uma outra fórmula é usada para estimular o emprego de ramos inteiros dos setores produtivos: essas atividades são consideradas “essenciais para a vida da nação”. Elas recobrem então aqui todas aquelas atividades que permitiriam que a esfera econômica girasse: a construção civil, as indústrias aeroespacial e automobilística... Espera-se que todas elas mantenham tanto as atividades de produção esperadas quanto as atividades de prevenção sob sua dupla face: riscos de transmitir e/ou contrair o vírus. Elas se esgotam tanto pela intensificação do trabalho, como pelo medo e a deterioração das condições de trabalho.
E se essa nova cena do mundo do trabalho abrisse outros cenários para o futuro, para além daquele do retorno à pré-crise? E se já começássemos a construir alternativas, revelações e inovações, que constituem tanto maneiras, como recursos para viver e trabalhar de maneira diferente?
Assim, “antes” dominava uma concepção da vulnerabilidade diferencial. Esta produz uma representação dual do mundo do trabalho: de um lado, os saudáveis, robustos, batalhadores, performáticos, eficientes, ou seja, os “aptos”; e, de outro, os frágeis, vulneráveis, deficientes, ou seja, os “inaptos”, relegados e convocados para cuidarem de si mesmos, para se reciclarem. A resistência ao reconhecimento da vulnerabilidade humana alimenta o credo do desempenho, da onipotência e da autossuficiência. Esse “sempre mais”, mais produtividade, adaptabilidade, reatividade, velocidade... tem um custo muito alto, humano e social, mas também econômico.
Hoje, a vulnerabilidade é sentida, descoberta e compartilhada. Esta revelação pode nos levar a pensar de maneira global a vulnerabilidade dos vivos? A definir o que deve ser um trabalho sustentável, livre de restrições que possam provocar desgaste, patologias duradouras, exclusão profissional? A reorganizar o trabalho de tal forma que não exclua mais os chamados “frágeis”, idosos, doentes, deficientes, acidentados, desgastados, jovens que necessitam da integração, mulheres encarregadas de uma dupla atividade, profissional e doméstica, os chamados “baixos níveis de qualificação” instalados permanentemente em empregos desqualificados e desqualificantes?
Será que essa crise será capaz de desconstruir essas ideologias que tentam nos fazer acreditar crônica e indefinidamente que estamos em guerra? Guerra econômica nos mercados globalizados, guerra contra a pandemia hoje; promoção da figura do “herói”, da “missão”, da união sagrada, da delegação do nosso futuro a um Estado Maior que conduz suas tropas à vitória. Antes que seja convocada, ao final da reclusão, a demanda por reconstrução nacional, a suspensão do debate e da crítica e o imperativo do aumento da produtividade...
Aqueles que hoje estão “na linha de frente” provavelmente têm menos a sensação de serem heróis que de ter que garantir as expectativas de suas profissões em condições gravemente degradadas. A retórica da guerra apaga o trabalho, oculta os acidentes de trabalho, as doenças ocupacionais em uma multiplicação exponencial, isenta os empregadores de suas obrigações em matéria de saúde e de segurança dos empregados.
Enquanto estavam, até a pouco tempo atrás, na base da escala de desejabilidade social das profissões, esses “heróis” testemunham com perplexidade uma inversão dessa pirâmide de profissões, dos mais prestigiados aos mais “modestos”, dos mais valorizados aos mais invisibilizados... A divisão moral e psicológica do trabalho subitamente operou uma espécie de pirueta! E se isso abrisse o caminho para uma reflexão coletiva sobre as atividades necessárias à vida, à humanização da vida? Nas dobras do confinamento e das interrogações existenciais que aí podem se alojar, uma reavaliação da hierarquia de valores, de prioridades poderia muito bem se desenvolver: perder sua vida para ganhá-la? Apegar-se ao cuidado ou obstinar-se no credo produtivista? Reconhecer a necessidade dos outros ou persistir no imaginário enganoso da autossuficiência?
Esta crise ainda nos permitirá romper com a negação das interdependências de nossas áreas de vida? Hoje, a experiência de uns e outros é massivamente confrontada com a necessidade de regular as restrições e as exigências do trabalho e do não trabalho.
Quando o trabalho é apagado, resta apenas a retirada na esfera doméstica, o desequilíbrio dos compromissos, investimentos se deslocam para outras questões, como a divisão de papéis por gênero e as tarefas domésticas e familiares. Essas relações familiares são bem testadas pela reclusão, para o bem ou para o mal, como testemunha o aumento da violência contra mulheres e crianças. Os que estão “na linha de frente” também sabem que sua disponibilidade só é possível porque outros estão assegurando a “guarda” das crianças. Por fim, aqueles que trabalham por teletrabalho devem aprender a realizar conjuntamente atividades profissionais e familiares, a fim de construir a compatibilidade dessas respectivas atividades (instalação de um “posto de trabalho”, organização negociada do tempo de trabalho, tempo para refeições compartilhadas, tempo para ajudar as crianças em suas tarefas escolares...), para compartilhar as ferramentas de trabalho com os outros teletrabalhadores da casa, as crianças.
A fantasia da separação das esferas de atividade se estilhaça. As mulheres provavelmente sabiam melhor que os homens que essa separação é apenas ilusória, que não somos apenas trabalhadores, força produtiva. Podemos até considerar que a injunção à clivagem, a serviço de uma polarização no aqui e agora da execução de uma tarefa ou de um compromisso e de uma disponibilidade total de si na atividade profissional, seja sinônimo de auto-amputação. E, potencialmente, de alienação, pela captura em um único mundo, o da organização produtiva e de seus próprios objetivos. Os conflitos de expectativas, princípios, valores, propósitos dos diferentes mundos em que estamos envolvidos preservam a univocidade e, portanto, o estancamento em uma única visão de mundo.
E se fizéssemos desta crise uma oportunidade para construir o futuro de uma forma diferente, que não seja sobre o modelo da reprodução idêntica, da repetição? Existem muitos mundos possíveis. O lugar dado hoje aos profissionais da saúde poderia muito bem ser a base de metamorfoses duradouras, para além da crise.
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E se essa crise mudou radicalmente o mundo do trabalho... - Instituto Humanitas Unisinos - IHU