02 Mai 2019
Sem mais classes e sem bandeiras, volta a ser apenas uma mercadoria. Não tem história ou consciência, não pretende e não gera direitos.
A opinião é do jornalista italiano Ezio Mauro, ex-diretor dos jornais La Stampa e La Repubblica. O artigo foi publicado por La Repubblica, 30-04-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Provavelmente devemos reconhecer que a República não consegue mais se fundamentar sobre o trabalho, como a Constituição impõe desenhando o modelo da nova Itália. E, ao mesmo tempo, devemos nos perguntar se o trabalho ainda define a nossa sociedade, as suas relações internas, suas transformações e seu aspecto geral: mesmo que de uma forma radicalmente diferente daquela do passado em que crescemos. Se não for mais a medida das pessoas e das classes, ainda é o padrão de referência de nosso modo de viver, de ordenar o tempo, de interpretar um papel social? Durante décadas, o trabalho garantiu esses elementos básicos, aos quais se apoiava para entrar em outra dimensão, civil e cultural, com a capacidade de criar uma consciência dos direitos, uma inteligência cívica da conexão entre o individual e o coletivo, um sentimento de cidadania. É exatamente isso que entrou em crise quando falamos de trabalho.
Não se trata da quantidade de riqueza produzida: o que está em crise é a relação entre o trabalho e aquela riqueza (a antiga dupla capital-trabalho que retorna) e entre a riqueza e o bem-estar coletivo. O capital, poderíamos dizer, tem menos necessidade de trabalho nas formas tradicionais porque pode recorrer cada vez mais à automação, e porque com a revolução digital desmaterializou o próprio conceito de trabalho, desvinculando-o assim da secular dependência em relação ao lugar e ao homem. Essa transformação que inaugura a era pós-industrial nasce como tecnológica, econômica, financeira, mas rapidamente se torna social e cultural e, portanto, política. É o que temos hoje diante de nossos olhos.
Historicamente, quando a técnica determinava o declínio do emprego em um setor, nascia um novo setor que atraia a força de trabalho. Mas hoje o enfraquecimento do trabalho é universal, também é válido fora da indústria, nos serviços, no comércio, no novo mundo do conhecimento, onde a onipotência da web se combina com a nova cultura da "primeira linha" e a exalta. É a tendência irresistível para pular toda intermediação, mesmo de especialistas, peritos, profissionais, para permitir que o consumidor seja ao mesmo tempo produtor do conteúdo que está procurando, do serviço de que ele precisa, do bem que escolhe no computador, moldando-o, modificando-o, colorindo-o e finalmente encomendando-o diretamente de casa. Sem perceber que nessa sua liberdade solitária de seleção, certamente está na primeira linha, mas para realizar realmente um trabalho substituto.
Esse trabalho, que não se vê, mas aumenta o PIB, tem duas consequências imediatas. A primeira é o aumento da taxa de desemprego, a segunda é a dificuldade de construir um mecanismo de proteção e uma rede de garantias, porque a forma tradicional do sindicato não consegue seguir o trabalho em sua fragmentação e em sua dispersão, e a flexibilidade trocada diariamente no novo mercado impossibilita definir um modelo de proteção e mais ainda a sua aplicação, uma vez que o trabalho em suas formas mais extremas, experimentais e individuais se tornou um mutante que vive sempre em outro lugar.
O resultado final é uma desvalorização material, espontânea e natural dos direitos ligados ao trabalho. Sem mais classes, sem sindicatos que o representem, sem bandeiras o trabalho volta a ser mercadoria, ainda que da modernidade, não tem história e não tem consciência, não pretende e não gera direitos, contentando-se em negociar a cada ocasião o seu preço no local e na porta, em pé, de acordo com as necessidades cotidianas, fora de qualquer quadro geral de referência. Acrescentamos a ação do maior ator social, a mais pesada crise econômica do século, que transformou as desigualdades em exclusões, cortando do próprio processo democrático partes de geração, de cima e de baixo, pais e filhos. E acima de tudo, recolocou em discussão alguns direitos nascidos do trabalho e no trabalho, transformando-os em variáveis dependentes da economia, disponíveis de acordo com o caso, portanto temporários, portanto, compressíveis quando necessários: como se fossem - ao contrário de outros – direitos "mínimos", de segunda categoria e não fizessem parte do aspecto geral de liberdade material da nossa sociedade, que vale para todos, e da qualidade geral da nossa democracia, da qual todos nós nos beneficiamos.
A crise, além disso, afetou o bem-estar, recortando-o e reduzindo-o de acordo com as exigências da fase, favorecida por uma mudança de cultura e de sensibilidade tão profunda aponto de inverter aquele sentimento de responsabilidade coletiva em relação aos mais fracos que havia favorecido o estado social. Hoje, ao contrário, pela primeira vez o rico que opera nos fluxos transnacionais descobre que pode prescindir do pobre que sobrevive na quitinete dos estados nacionais, não tem relação com ele e, portanto, não tem responsabilidade. É o vínculo de sociedade que se afrouxa para todos, até se dissolver, modificando o próprio conceito de liberdade: agora me sinto livre não porque estou com a plena expressão de minhas faculdades e dos meus direitos, mas livre porque liberto de todo vínculo em relação aos outros, portanto, autorizado a pensar apenas em mim mesmo.
Isso é o que acontece quando o trabalho se enfraquece, desmonta a mesa de compensação dos conflitos que mantinha unidos os vencedores e os perdedores da mundialização, quebra o pacto entre capitalismo, bem-estar e democracia representativa que é o cerne da civilização ocidental. O trabalho não foi apenas instrumento de realização, de dignidade, de emancipação, mas também funcionou como um elemento de reconhecimento social: e hoje percebemos que nenhum dos papéis mutáveis que surgem do trabalho é suficientemente consistente e durável para conferir uma identidade sólida, reconhecível e usável. Tudo isso, nos difíceis efeitos póstumos da crise, tira do trabalho aquele caráter de certeza, de garantia e de proteção que sempre teve, tornando-se um bem incerto e até mesmo suspeito.
Quanto esse enfraquecimento do trabalho pesa no sentimento de instabilidade que domina os cidadãos? Quanto incide no próprio sentimento de insegurança, que a política declina apenas em relação aos migrantes ou à criminalidade e, em vez disso, decorre em grande parte da incerteza do presente, do medo do futuro?
O dever "constitucional" da política é, portanto, colocar o trabalho de volta ao seu lugar, porque a renda de cidadania não é suficiente, é a substituição de um direito pela assistência, portanto, uma ajuda material e um enfraquecimento político. Para a esquerda, esse dever é até uma obrigação: ela nasceu do trabalho, o fim do trabalho é o fim de todo projeto de emancipação, então é a perda de sua própria razão de existir.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Primeiro de maio, quando o trabalho é mutante - Instituto Humanitas Unisinos - IHU