21 Junho 2017
“Imagino que historiadores do futuro (assumindo de maneira otimista que ainda existirá o mundo) acharão inimaginável e incompreensível que, em nossos tempos, a riqueza de 8 pessoas se equiparasse a da metade mais pobre da humanidade, no mesmo momento em que 6 milhões de crianças morriam, ao ano, de fome e doenças e a humanidade permanecia indiferente. Este será visto como um tempo doente”, escreve o historiador, sociólogo e jornalista peruano Nelson Manrique, em artigo publicado pelo jornal peruano La República, 20-06-2017. A tradução é do Cepat.
Estamos em meio a uma crise de horizonte civilizatório que acompanhou ao nascimento do capitalismo industrial e a democracia representativa. Esta não se limita à emergência ecológica, que parece entrar em uma nova fase com a fratura da Antártida.
A eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos não foi um raio no céu sereno, mas a culminação de um processo de degradação da política nas democracias avançadas, com importantes elos com as eleições de Silvio Berlusconi, na Itália, e Nicolas Sarkozy, na França, e que durante este último ano fez sobrevoar a ameaça do retorno do fascismo na Europa através das eleições democráticas, como se viveu em meio a uma atmosfera de temor na Áustria, França e Holanda.
A eleição de governos populistas de direita no mundo desenvolvido, foi acompanhada de um descrédito do discurso político que tem sua melhor expressão na “pós-verdade”: esse processo “mediante o qual, em lugar de preferir os fatos puros e duros, os cidadãos se encontram em busca daquelas notícias que confirmem seus próprios preconceitos e sua forma de ver o mundo... um relativismo aceito, pelo qual se constroem mundos artificiais de informação, o que resulta cada vez mais fácil com as redes sociais virtuais que, agora, dispomos para nos informar” (Salomón Lerner: “La post-verdad”, La República, 16 de junho de 2017).
A degradação da política terá importantes consequências, não só no que concerne à qualidade da democracia, mas também sobre o futuro do mundo, conforme anuncia ominosamente o desmantelamento da política de defesa do meio ambiente e o incentivo às atividades extrativas que poluem o meio ambiente pela administração Trump.
Por trás destes retrocessos na construção de um mundo humano se encontra um processo de concentração da riqueza sem nenhum paralelo na história da humanidade. Oxfam Internacional, que monitora há décadas o crescimento da desigualdade no mundo, publicou, em janeiro, um demolidor relatório denunciando que apenas 8 pessoas (8 homens, na realidade) possuem a mesma riqueza que a metade mais pobre da população mundial, 3,6 bilhões de pessoas. “Enquanto uma em cada dez pessoas no mundo sobrevive com menos de dois dólares por dia, a imensa riqueza acumulada por tão só alguns poucos resulta obscena. A desigualdade está submergindo centenas de milhões de pessoas na pobreza, fraturando nossas sociedades e fragilizando a democracia”.
Uma campanha midiática muito bem montada sustenta que o problema não é a desigualdade, mas, sim, a pobreza, separando no discurso o que são dois rostos de uma mesma realidade: “as grandes empresas e os mais ricos conseguem se esquivar e evadir o pagamento de impostos, potencializam a desvalorização salarial e utilizam seu poder para influir em políticas públicas, alimentando, assim, a grave crise da desigualdade”.
O aumento da desigualdade no mundo tem duas caras. Para milhões, os salários ficam estagnados, corta-se o investimento em serviços básicos como educação, saúde, nutrição, ao passo que as grandes corporações e grandes fortunas multiplicam seu poder através da evasão e fuga fiscal, privando os países de ao menos 1000 bilhões de dólares, a cada ano, em ingressos fiscais, “dinheiro suficiente para financiar serviços educacionais para os 124 milhões de meninos e meninas sem escola ou atenção à saúde que poderia evitar a morte de ao menos seis milhões de meninos e meninas ao ano”. Por sua vez, o poder econômico permite controlar o poder político, e, em um movimento circular, este é usado como uma ferramenta para aumentar o primeiro: “as grandes empresas e os mais ricos utilizam seu dinheiro e influência para que leis e políticas se voltem a seu favor” (Una economía para el 99%).
O ofício de historiador permite julgar as decisões daqueles que nos precederam, incorporando no balanço as consequências que tiveram suas opções e seus atos. Imagino que historiadores do futuro (assumindo de maneira otimista que ainda existirá o mundo) acharão inimaginável e incompreensível que, em nossos tempos, a riqueza de 8 pessoas se equiparasse a da metade mais pobre da humanidade, no mesmo momento em que 6 milhões de crianças morriam, ao ano, de fome e doenças e a humanidade permanecia indiferente. Este será visto como um tempo doente.
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Capitalismo e desigualdade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU