03 Fevereiro 2015
Era setembro de 2011 quando o antropólogo americano David Graeber se tornou a primeira voz a bradar “we are the 99%”. De lá pra cá, o grito de guerra repercutiu mundo afora, de Nova York a Madrid, de Reykjavik a Atenas. Autor de The Utopia of Rules (2015) e The Democracy Project (2013), entre outros, Graeber, de 53 anos, foi uma das principais inspirações teóricas para o Occupy Wall Street, movimento que conquistou páginas e mais páginas de uma história do tempo presente marcada, desde 2008, por uma crise financeira internacional. Atualmente professor da prestigiada London School of Economics, o intelectual provocador se considera um anarquista: “Não há esperança no sistema político. Não é nada mais que um sistema de suborno institucionalizado”, critica.
A entrevista é de Juliana Sayuri, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 31-01-2015.
Era janeiro de 2015 quando o líder opositor grego Alexis Tsipras, de 40 anos, se tornou o primeiro governante europeu eleito com a promessa de peitar as políticas de austeridade predominantes. Se uns tremeram com a vitória da extrema esquerda na Grécia, outros vibraram com a conquista olímpica. “Em última instância, o plano do Syriza não é simplesmente amortizar a dívida, mas iniciar um processo de reconstrução da arquitetura econômica da própria UE”, analisa o antropólogo.
Para Graeber, porém, não é possível promover mudanças por “dentro” do sistema. Pergunto se é possível mudar o mundo sem tomar o poder, uma questão “surrealista”, na expressão do ativista, que responde com outra interrogação: “Você realmente quer dizer que, se não tivéssemos ignorado o rumo da política tradicional, se não tivessem existido Occupy e Syntagma, esses novos movimentos eleitorais viriam a existir?”
Eis a entrevista.
Desde 2008, a crise expõe contradições do capitalismo – e movimentos como Occupy contribuíram para destacá-las. Predominaram, porém, políticas de austeridade. Assim, quão importante é a vitória do Syriza agora?
Há uma espécie de ritmo histórico em jogo, uma dinâmica de demora e de inércia que está só começando a se expor. Após o colapso econômico em 2008, forças de segurança do mundo todo passaram a se preparar para o que se considerava uma onda inevitável de revoltas e rebeliões – que não aconteceu. Por um tempo pensou-se que não haveria repercussões populares. Aí, três anos depois, em 2011, aconteceu – num lugar muito inesperado, na Tunísia – e se espalhou por Egito, Grécia, Espanha, e finalmente Nova York, onde explodiu para o mundo todo. Eram movimentos não violentos e, em quase todos os casos, foram violentamente reprimidos. Depois todos esperavam que suas demandas fossem retomadas dentro do sistema político e, a princípio, parecia que isso tampouco iria acontecer. Três anos depois, vemos movimentos como Syriza, Podemos, Sinn Fein (recém-radicalizado na Irlanda), entre outros.
Uma das críticas ao Occupy era a ausência de líderes. Agora, uma resposta para a crise veio das urnas, do jogo político tradicional. O Occupy fracassou? A resposta estaria só no poder do Estado? Em outras palavras, é possível mudar o mundo sem tomar o poder?
Perguntas assim são ligeiramente “surrealistas”. Por 30 anos, a ideia tradicional nos EUA foi “se você não gosta da virada da América à direita, se você quer reverter as políticas neoliberais, só há uma única abordagem possível: você precisa participar do processo político, submeter-se aos líderes, propor demandas ‘realistas’, angariar dinheiro, lançar candidatos ou apoiar os já existentes...”. A esquerda obedientemente fez o que lhe foi dito para fazer. Qual foi o resultado? Fracasso após fracasso após fracasso. Não só nenhum desses movimentos teve qualquer impacto significativo como o terreno foi se movendo cada vez mais para a direita. Mas não me lembro de ninguém perguntando a um ativista: “Será que essa abordagem fracassou? Não seria melhor tentar outro caminho?”. Não: pediram-nos para continuar fazendo a mesma coisa, para depender ainda mais dos líderes, para propor demandas ainda mais “realistas”, isto é, menos visionárias, menos relacionadas a princípios. E os resultados foram fracassos ainda mais desastrosos. Aí um pequeno grupo tomou um caminho diferente, rompendo a camisa de força da política institucional e, do dia para a noite, você viu diversas ocupações em todas as cidades do país, uma imensa onda de mobilização popular. De repente, questões que ninguém nos EUA discutiu por décadas – não só questões de desigualdade, mas o poder de classe, a natureza não democrática do sistema político americano – passaram a ser discutidas abertamente em todos os níveis da sociedade. As autoridades entraram em pânico, articularam todas as armas possíveis, da propaganda à pura violência de uma das forças de segurança mais sofisticadas tecnologicamente do planeta, para nos reprimir. Ainda assim, a conversa muda e, gradualmente, isso passa a impactar na política partidária também. E o que a mídia diz? “Viu? Nós estávamos certos afinal. Vocês fracassaram”. Você realmente acredita que, se tivéssemos tomado o rumo tradicional em 2011, com líderes, demandas, candidatos, os resultados seriam diferentes para os outros 5 mil grupos ativistas que aceitaram essa abordagem e falharam? Você realmente quer dizer que, se não tivéssemos ignorado esse conselho, se não tivessem existido Occupy e Syntagma, qualquer um desses novos movimentos eleitorais existiria?
Assim, como analisa a vitória do Syriza?
Difícil dizer. A maioria dos meus amigos gregos é anarquista – e eles são muito desconfiados do Syriza, pois o veem como sabotador da democracia direta dos movimentos da praça Syntagma. Questionam se o Syriza estaria disposto a desafiar o sistema administrativo global. Sou mais otimista. Uma das razões é por estar ciente de que, embora a classe política na maior parte da Europa se dedique ao neoliberalismo, totalmente na mão dos interesses financeiros e dos tecnocratas, eles sabem que há algo seriamente errado que deverá mudar. Noto isso o tempo todo. Para a maioria, não há sentido em tentar conversar com os políticos, que seriam robôs, só balbuciando os mesmos chavões – você acredita nos políticos? Será que eles sequer sabem o que significa acreditar em algo? Os banqueiros sabem perfeitamente que essa bobagem sobre responsabilidade fiscal, falta de crescimento, déficits levando à inflação, é simplesmente isso: bobagem. Que as coisas são exatamente o oposto do que é usualmente representado. Eles sabem que estão imprimindo dinheiro como loucos para tentar criar inflação e até agora fracassaram. Logo, curiosamente, há certas facções dentro da burocracia global dispostas a pensar uma mudança radical. Acredito que o Syriza está contando com isso. Em última instância, o plano deles não é simplesmente amortizar a dívida, mas iniciar um processo de reconstrução da arquitetura econômica e financeira da própria UE – para que, por exemplo, dependa menos do BCE do que do Berd, uma instituição cujo papel é investir em projetos de infraestrutura, para substituir a austeridade por políticas de estímulo.
Neste momento, também há altas expectativas sobre o espanhol Podemos?
Tudo depende se a deslegitimação gradual da classe política propiciar uma abertura para refazer a arquitetura da UE. Nos EUA, às vezes nos referíamos ao modelo da Argentina: o movimento de 2001-2003 derrubou quatro governos, criando instituições alternativas, assembleias, fábricas ocupadas. Isso era ancorado na recusa não só de um partido, mas de uma classe política inteira – “que se vayan todos”. Ignoraram a ideia tradicional, que era tentar formar um novo governo radical, e tentaram criar um espaço exterior. É um exemplo perfeito de por que eu digo que operar dentro do sistema não funciona: se eles tivessem tentado influenciar partidos a dar o calote, teriam chegado a algum lugar? Não. Mas, após um ano, os políticos eram tão detestados que nem podiam ir a restaurantes sem disfarces – os argentinos jogariam comida neles! No fim, Néstor Kirchner, o mais moderado dos social-democratas, precisou fazer algo realmente radical para restaurar a ideia de que políticos poderiam ser relevantes para a vida das pessoas comuns. Quando estive na Grécia, meus amigos disseram que a situação grega era similar: os políticos não podiam andar pelas ruas. O resultado foi o Syriza – mas os movimentos populares tornaram isso possível. Na Espanha há uma dinâmica semelhante, mas é um país muito maior e mais complicado. Para ser sincero, o exemplo mais inspirador não está na Europa ou nas Américas, mas no Oriente Médio. Estive em Rojava, no Curdistão sírio. Ali está acontecendo uma revolução social. Havia assembleias diretamente democráticas, assembleias feministas, cooperativização da economia, democratização das forças de segurança. Unidades militares elegeram seus oficiais e, ao visitar uma academia, eles nos disseram pretender dar treinamento policial de seis semanas a todos no país – e depois abolir a polícia. Isso me fez pensar em quão baixo estão mirando os movimentos “radicais” atuais. Desistimos da ideia de que a mudança revolucionária real seja sequer possível. Estamos só remendando uma ordem neoliberal a ponto de colapsar. Precisamos começar a elevar nossas perspectivas logo, pois a situação atual simplesmente não é viável.
E a alternativa da Islândia?
A Islândia é um país muito pequeno e relativamente homogêneo. Isso foi uma grande vantagem quando a crise estourou. E tornou muito mais impossível para as autoridades reprimirem mobilizações violentamente: não há tropas de choque atacando manifestantes pacíficos se os policiais sabem que esses manifestantes quase certamente são seus primos, sobrinhos, tios.
No Brasil, mudanças econômicas propostas pelo PT foram referidas como ‘saco de maldades’, por impactar os desprivilegiados.
Talvez isso seja o resultado inevitável de operar dentro do sistema. De certa forma, a história do PT é a tragédia política final. Parecia que eles estavam fazendo tudo certo. Tinham uma classe genuinamente trabalhadora na base. Tinham uma visão clara, transformadora. Mas, no fim, para conquistar o poder, precisaram se tornar gradualmente um partido “realista” – e acabaram se tornando o tipo de partido que trairia a própria base ao propor tais ajustes. Por quê? O poder não existe mais primeiramente no nível nacional. Temos agora um tipo de sistema de administração planetário, com instituições como FMI e Banco Mundial, Nafta e UE, JPMorgan Chase, Bechtel e, enfim, as ONGs globais. Não é um Estado mundial. Não tem princípio de soberania ou campo político, mas desempenha funções administrativas normalmente relacionadas aos Estados. Essa estrutura, que atende aos interesses do capital internacional, tem muito mais influência sobre as instituições-chave de qualquer país que os partidos. É por isso que tantos movimentos sociais agora estão operando fora do campo político: porque não importa quem tome o poder. Talvez a única maneira de evitar que um partido traia seus eleitores seja criar algo como na Bolívia, onde há uma relação dual de poder: as organizações não estão dentro da estrutura do Estado, mas estão sempre lá para pressionar políticos, oferecendo um contrapeso.
Barack Obama se referiu à crise como página virada, dizendo que os americanos saíram da recessão mais ‘livres’. O sr. concorda?
Nenhuma recessão pode continuar para sempre, o pêndulo vira para o outro lado. (Mas) nunca houve uma recuperação econômica em que tão pouco da nova riqueza tenha ido para os trabalhadores. Quase todo centavo desse crescimento econômico, dos lucros do boom energético, foi para o 1% (os mais ricos). Então quem exatamente é “livre para escrever o próprio futuro”? Os extremamente ricos? Certamente. Mas por que isso é algo a celebrar?
A Oxfam destacou que a riqueza de 1% deve ultrapassar a dos 99% até 2016. Que esperar?
A ordem global atual foi essencialmente estabelecida para garantir isso. Não podemos lutar por dentro do sistema. Precisamos de uma clara e definitiva ruptura.
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