Por: João Vitor Santos | 02 Julho 2018
Karl Marx forjou suas reflexões acerca do capitalismo no calor do século XIX. Hoje, em pleno século XXI, 200 anos depois de seu nascimento, o mundo mudou, o capital se transformou e as lógicas do filósofo e economista foram superadas. Correto? Não. Ao menos para o professor Marcelo Dias Carcanholo. Pois, afinal, ainda vivemos numa sociedade capitalista. “Claro, que com as especificidades da contemporaneidade, mas as determinações básicas, gerais, do que é o capitalismo seguem presentes. As leis de tendência dessa sociabilidade, que necessariamente se manifestam por intermédio de determinações conjunturais específicas, seguem caracterizando nossa vida”, analisa. Para ele, é nesse sentido que Marx se mantém atual. “Sua obra, especialmente O Capital, é até hoje a melhor apresentação teórica de uma época social que vivemos até os dias atuais”, completa.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Carcanholo observa que nessa obra não é possível detectar um conceito fechado do que seja o capitalismo e como ele se manifesta no século XXI com todas especificidades. “Mas quaisquer que sejam elas (capitalismo europeu, ou capitalismo brasileiro no segundo pós-guerra etc.), o seu substantivo (conteúdo), o capitalismo, só é possível de ser entendido, em sua totalidade, pela teoria de Marx”, aponta. Assim, defende que se volte a Marx, entendendo suas concepções para que, a partir delas, se consiga movimentar a construção do conceito ao longo dos tempos. “A riqueza desse autor reside justamente no entendimento do processo de acumulação de capital como algo necessariamente cíclico. Por isso ele é tanto inescapável como incômodo, até os dias atuais”, resume. É nessa perspectiva que o professor também reflete sobre as crises das sociedades de hoje e a realidade brasileira. Afinal, por aqui “como na maior parte da economia mundial, o capital procura sair de sua própria crise repassando a conta do ajuste para a classe trabalhadora”.
Marcelo Dias Carcanholo | Foto: UFF
Marcelo Dias Carcanholo é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Economia pela Universidade Federal Fluminense – UFF e doutor em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Atualmente é professor de Economia da UFF, membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Marx e Marxismo (NIEP-UFF), pesquisador do Núcleo de História Econômica da Dependência Latino-americana (HEDLA-UFRGS) e professor da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF-MST). Entre seus livros publicados, destacamos Dependencia, Superexplotación del Trabajo y Crisis: una interpretación desde Marx (Madrid: Maia Ediciones, 2017) e Neoliberalismo: a tragédia do nosso tempo (São Paulo: Cortez Editora, 2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que ler Marx hoje? Que respostas os originais ainda são capazes de fornecer às crises de nosso tempo, diferentes do contexto do século XIX?
Marcelo Dias Carcanholo – É um argumento relativamente comum dizer que Marx, no melhor dos casos, serviria apenas para interpretar o capitalismo “clássico” do século XIX, restringindo a validade de seu pensamento para uma época histórica específica. Implicitamente, este argumento sustenta que seu pensamento seria anacrônico, se o objetivo é entender a realidade específica do século XXI.
Evidentemente que Marx é um autor do século XIX e, como não poderia deixar de ser, seu pensamento apresenta os limites e possibilidades de um ser humano do século XIX. Dessa obviedade, entretanto, não se pode concluir que o seu pensamento seja restrito a esse momento histórico. Justamente sua genialidade e a explicação do porquê ele reluta em falecer, ainda que reiteradamente seus críticos decretem sua morte, está no fato de que seu pensamento transcende as especificidades do século XIX. E isso não porque ele possuísse algum poder mágico de vislumbrar quais seriam as especificidades do século XXI. As razões para tanto são, como não poderiam deixar de ser, objetivas.
Desconsiderando alguns teóricos completamente fora da realidade, não se pode negar que ainda vivemos em uma sociedade capitalista. Claro que com as especificidades da contemporaneidade, mas as determinações básicas, gerais, do que é o capitalismo seguem presentes. As leis de tendência dessa sociabilidade, que necessariamente se manifestam por intermédio de determinações conjunturais específicas, seguem caracterizando nossa vida. Aí reside a genialidade de Marx. Ele ainda é o pensador que melhor conseguiu apreender essas determinações do capitalismo. Sua obra, especialmente O Capital, é até hoje a melhor apresentação teórica de uma época social que vivemos até os dias atuais. Não encontraremos nela a descrição exata do que é, por exemplo, o capitalismo brasileiro no século XXI com todas suas especificidades/adjetivações. Mas quaisquer que sejam elas (capitalismo europeu, ou capitalismo brasileiro no segundo pós-guerra etc.), o seu substantivo (conteúdo), o capitalismo, só é possível de ser entendido, em sua totalidade, pela teoria de Marx.
Outro equívoco muito comum é crer que Marx só ressurge do limbo teórico em momentos de profundas crises da sociedade capitalista, como se ele tivesse apenas a capacidade de explicar estas etapas específicas do ciclo econômico. A riqueza desse autor reside justamente no entendimento do processo de acumulação de capital como algo necessariamente cíclico. Por isso ele é tanto inescapável como incômodo, até os dias atuais.
IHU On-Line – Em que medida podemos afirmar que o marxismo vai transformando o pensamento de Marx? E no que consiste essa transformação?
Marcelo Dias Carcanholo – A melhor maneira de entender essa questão é pensando em que significaria se o marxismo não transformasse o pensamento de Marx. Neste caso, significaria, por um lado, que todas as respostas para o que é a sociedade capitalista, incluindo todas as manifestações conjunturais específicas de suas leis de tendência, já estariam contidas no pensamento de Marx e, portanto, não haveria necessidade de nenhuma reformulação e/ou resgate crítico. Por outro lado, os marxistas ficariam limitados a propagar a “palavra” daquele que, por princípio, já conteria toda “a verdade”. Em síntese, se o marxismo não transformasse o pensamento de Marx significaria que ele seria mais uma religião, algo completamente distinto dos propósitos originais do pensamento do próprio Marx.
Que algumas tradições marxistas tenham embarcado nessa trajetória só nos ajuda a entender, talvez, quando o próprio Marx, ao final de sua vida, percebeu o que se dizia (no já autodeclarado “marxismo”) em seu nome, teria dito que, ele Marx, não era marxista.
Marx se propôs a interpretar o capitalismo porque tinha uma finalidade política: transformá-lo pela via revolucionária. Para ele, conhecer o sistema social que se busca revolucionar é um pré-requisito básico. Entretanto, esse sistema social, embora tenha suas leis gerais de tendência, se apresenta/manifesta de formas distintas em épocas históricas diferentes. O capitalismo não é apenas histórico, frente a outros sistemas sociais, mas também apresenta historicidade dentro de sua própria trajetória histórica. Isso significa que as contradições, especificidades, questões concretas, só podem aparecer nesses momentos específicos e, portanto, o marxismo – entendido como a tradição, a partir de Marx, que busca entender o capitalismo em sua historicidade, para transformá-lo, a partir dessas contradições com manifestações específicas – obrigatoriamente tem que responder questões concretas específicas, as quais Marx não teria como ter vivenciado, por razões óbvias.
IHU On-Line – A Teoria da História em Marx mostra sinais de esgotamento? Por quê?
Marcelo Dias Carcanholo – Ao contrário, a teoria da história em Marx nunca se mostrou tão robusta! Ocorre que, como costuma suceder com o pensamento do autor, é muito amplo, e difundido, o desconhecimento da teoria de Marx. Quando se fala na teoria da história em Marx, a interpretação mais rasteira entende esta como sendo uma teoria que identifica as transformações históricas a partir da ruptura da contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas com as relações sociais de produção de determinada época, abrindo a porta histórica para um novo modo de produção. Com base nisso, a história passaria necessariamente de um modo de produção para outro. O capitalismo, em específico, desenvolveria as forças produtivas como nenhum outro e, necessariamente, as colocaria em contradição com as relações sociais capitalistas de produção, levando necessariamente ao comunismo.
O curioso é que esta visão teleológica, mecânica, determinista, é completamente estranha ao próprio Marx! Mais uma vez, que boa parte do marxismo tenha acreditado nessa “cartilha” só demonstra o quanto Marx é um profundo desconhecido, até dentro de boa parte do marxismo.
Para Marx, os distintos modos de produção contêm sim suas próprias contradições, e estas definem os leques de possibilidade histórica de sua transformação, abrindo a possibilidade de construção social de outros modos de produção. Esta possibilidade não permite, entretanto, concluir pela inevitabilidade. Evidentemente que, uma vez posto o resultado histórico ele obviamente está... posto! Assim mesmo, antes disso, esse resultado era uma mera possibilidade, dentre outras.
O capitalismo possui suas contradições (as leis de tendência são necessariamente contraditórias, dialéticas), e estas, quando se explicitam, definem um leque de possibilidades históricas: é possível que se engendre uma nova época histórica, ainda capitalista. É possível que ocorra uma transformação social revolucionária, que construa outra sociabilidade. Qual? Seu estabelecimento a priori é impossível, ao menos para Marx. Como pensar uma sociabilidade que ainda nem existe? Isso só é possível para um pensamento descolado da realidade, que a interpreta idealmente (utopicamente) antes que ela mesma exista no concreto. Apesar de ser acusado disso, Marx nunca foi um idealista/utópico. Mais uma vez, ele não tem culpa se boa parte do marxismo transformou tanto Marx que terminou transformando-se em outra coisa.
E o que define, concretamente, para onde a história caminha? Quem é o sujeito histórico? O de sempre! O ser humano, que atua segundo interesses sociais, e consciências sociais distintas. Estas consciências não podem ser diretamente derivadas desses interesses/posições sociais, mas estão necessariamente (embora de forma contraditória) ligadas a eles. Se se prefere sintetizar a teoria da história em Marx como “a luta de classes”, não há problema, desde que seja entendida da forma correta. Marx tem uma teoria da história, nunca uma “filosofia da história”, determinista, mecânica, teleológica. A história, para Marx, é aberta, felizmente.
IHU On-Line – Como compreender o capitalismo contemporâneo? De que forma ele subverte e incide sobre o conceito de capital em Marx?
Marcelo Dias Carcanholo – O capitalismo contemporâneo deve ser entendido como qualquer época histórica específica do capitalismo, a partir de suas questões concretas. O que é o capitalismo contemporâneo? É o capitalismo que se constrói a partir da última grande crise estrutural, na segunda metade dos anos 60 do século passado. De lá para cá, o capitalismo retomou seu processo de acumulação de capital através de um amplo processo de reestruturação produtiva, que elevou as taxas de mais-valia e a rotação do capital, de políticas econômicas com o objetivo explícito de concentração de renda e riqueza, no intuito de retomar as taxas de valorização do capital, com a liberalização e abertura de vários mercados, principalmente os de trabalho (para elevar a taxa de mais-valia) e financeiro (buscando novos espaços de valorização para um capital superacumulado), tudo isso justificado e implementado sob o manto da estratégia de desenvolvimento que caracteriza essa contemporaneidade, o neoliberalismo.
O capitalismo entra em crises simplesmente porque produz em demasia, não propriamente as mercadorias, que são uma forma de manifestação de seu conteúdo (dinheiro e produção são as outras), mas porque há um excesso de capital por si mesmo. Quando capital é superproduzido, em relação à capacidade que ele mesmo tem de se realizar, as taxas de lucro caem, evidenciando a crise. Superacumulação de capital e queda das taxas de lucro são as duas faces do mesmo fenômeno. Como o capital se recupera? Ou as reduções das taxas de lucro desvalorizam o capital em excesso, ou então ele tem que encontrar novos espaços de valorização para esse capital superacumulado. Normalmente ele combina essas duas formas de saída.
O capitalismo contemporâneo se constrói, a partir dos anos 70 do século passado, justamente combinando essas duas formas. Uma das especificidades desta época histórica é que a lógica de valorização passa a ser determinada pelo que Marx chamou de capital fictício. Outro equívoco muito comum é achar que esse capital fictício é o capital financeiro, que se encontra nos mercados financeiros e, portanto, oposto ao capital (do setor) produtivo. Esta interpretação não é Marx! É Keynes [1]! Outra teoria, outra perspectiva teórica e política.
O capital fictício é aquele que se constrói – qualquer que seja o mercado específico – através da venda no presente de uma expectativa de apropriação futura de determinado valor, o que se chama de capitalização. Na prática, isso significa que capital (fictício) se está constituindo a partir de uma expectativa de apropriação, que pode nem ocorrer. Constrói-se um direito de apropriação de valor no presente que, diretamente, não contribui para a produção de valor. Está aí o germe da crise que estoura em 2007/2008.
Todo esse processo é inteligível, de forma relativamente fácil, a partir da seção V do livro III de O Capital, em suas determinações mais abstratas, e de toda uma tradição crítica (nem toda ela marxista) para suas determinações mais concretas, e até empíricas. Uma vez mais, a realidade concreta é que coloca as questões que são (ou não) apreendidas teoricamente. O capital (fictício) criando as possibilidades de uma nova época de acumulação de capital que, por sua vez, recoloca as contradições (produção versus apropriação de valor) próprias do capitalismo, dando ao processo de acumulação uma trajetória dialética, contraditória, cíclica.
O que me surpreende é alguém achar como isso subverteria a categoria capital de Marx! A não ser, é claro, que ela seja amplamente desconhecida, confundida, por exemplo, com um conceito (preestabelecido).
IHU On-Line – Como, a partir do conceito de trabalho em Marx, enfrentar as desigualdades advindas da revolução tecnológica que, ao mesmo tempo em que aumenta a capacidade produtiva, aumenta a força produtiva ociosa, pessoas incapazes de acessar o trabalho?
Marcelo Dias Carcanholo – O processo de acumulação de capital, por força da concorrência, obriga os capitais particulares a aumentarem a produtividade (desenvolvimento das forças produtivas). Os capitais, por sua vez, para fazerem isto aumentam as proporções de meios de produção, em relação à força de trabalho, no processo produtivo. Isto implica que cada força de trabalho consegue transformar mais meios de produção em produto final.
O efeito desse aumento de produtividade (aumento da composição técnica do capital, nos termos de Marx) é a elevação da composição orgânica do capital (a composição em valor, refletindo o incremento da composição técnica). Os capitais particulares fazem isso porque isso reduz os valores individuais de suas mercadorias e, como elas são vendidas pelos valores de mercado, eles conseguem se apropriar do que Marx chamou de mais-valia extraordinária.
Outro equívoco bastante comum é inferir desse processo que o capital expulsa força de trabalho do processo produtivo substituindo-a por máquinas. Em primeiro lugar, meios de produção não se restringem às máquinas. Em segundo lugar, o aumento de produtividade requer apenas que a massa de meios de produção no processo produtivo cresça mais do que proporcionalmente ao incremento de força de trabalho, e esta é, em termos absolutos, como tendência, incorporada em maior magnitude, uma vez que é a fonte de mais-valia.
O famoso exército industrial de reserva de Marx não é determinado pela expulsão de força de trabalho do processo produtivo em termos absolutos. Ao contrário, a acumulação requer que mais força de trabalho seja incorporada ao processo produtivo. Apenas que o ritmo de incorporação de meios de produção é superior a isso. O exército industrial de reserva é produzido pelo capital porque este incorpora apenas uma fração de toda a massa de trabalhadores que necessita vender sua força de trabalho no mercado para conseguir sobreviver. O curioso é que, no capitalismo, cresce o número de empregados e, ao mesmo tempo, o exército industrial de reserva, como tendência, o que pode ser limitado/aprofundado pelos movimentos cíclicos da economia.
Que esse desenvolvimento das forças produtivas, na contemporaneidade, seja dado pela tal revolução tecnológica, trata-se apenas de uma manifestação histórica específica do movimento mais geral do capitalismo, da tendência. Quem conseguiu identificar essa tendência do capitalismo? Marx.
IHU On-Line – Que relações podemos estabelecer entre os conceitos de “dependência”, “exploração do trabalho” e “crises”?
Marcelo Dias Carcanholo – “Exploração do trabalho” é apenas outra forma de dizer que o capital, uma vez pago o valor da força de trabalho, consome seu valor de uso no processo produtivo, com o intuito de produzir mais-valia. O valor que percorre esse processo e se incrementa, no próprio processo, é o capital. Como esse capital é uma unidade dialética entre produção e apropriação, e essa dialética se manifesta necessariamente em crises, “capital” e “crises” são dois termos para um mesmo processo de acumulação.
Esse capital, por sua própria natureza, tem a tendência histórica a espraiar-se por todas as partes do planeta. O valor-capital tem, em si, a tendência para a formação do mercado mundial. Isso, entretanto, não significa que as leis de funcionamento do capitalismo se expressem da mesma forma, no mesmo ritmo, no mesmo grau, em todos os espaços. Esse desenvolvimento desigual e combinado do capital, na escala do mercado mundial, é que conforma a dependência. Capitais particulares que operem em determinado lugar, com menor composição orgânica (produtividades) tendem a produzir uma massa de valor maior do que aquela que eles mesmos se apropriam. Capitais com maiores produtividades tendem a se apropriar de um valor maior do que aquele que eles mesmos produziram. De onde vem esse valor “a mais” em sua apropriação? Justamente daqueles capitais com menor produtividade. Isso define um processo de transferência de valor de capitais que operam em determinado espaço, para outros que se encontram em outros espaços. Esta é a base real-concreta da categoria de dependência.
Ao contrário de uma perspectiva mais weberiana, não é que uma nação dependa de outra. A categoria central no marxismo não é a entidade abstrata “nação”. A categoria central no capitalismo é... o capital(ismo)! Isto não significa, entretanto, que os Estados Nacionais não cumpram nenhum papel. Apenas que toda a variedade de funções e papéis que eles cumprem decorre do fato de que Estados Nacionais, no capitalismo, são... capitalistas!
IHU On-Line – No que consiste a chamada “crise do capitalismo” e quais seus efeitos? O que pode emergir a partir desse estado de crise?
Marcelo Dias Carcanholo – A atual crise pela qual passa o capitalismo contemporâneo, do ponto de vista do embate teórico, tem algumas serventias. Em primeiro lugar, ao atestar o caráter meramente apologético das interpretações teóricas hegemônicas que caracterizam estes tempos neoliberais, permitiu que estas passassem de uma fase de extrema arrogância para outra em que se encontram relativamente na defensiva.
Em segundo lugar, a atual crise serve para relembrar aos esquecidos que faz parte da natureza do processo de acumulação de capital a sua trajetória cíclica, isto é, que sempre após uma fase de crescimento advém um momento de crise e, ao mesmo tempo, posteriormente a épocas de crise, o capitalismo consegue reconstruir novas bases para um novo processo de acumulação de capital. Do ponto de vista teórico-ideológico isto desmistifica duas concepções muito comuns: (I) aquela que acreditava (acredita) que pode resolver os problemas do capitalismo com uma mera operacionalização correta dos instrumentos de política econômica, de forma que as crises só ocorrem por falhas nesta última, e que, bem administrada, poderíamos viver em um capitalismo pós-cíclico, como alguns chamam; (II) aquela que aguarda, pacientemente ou não, a crise terminal do capitalismo, a partir da qual todos os sonhos socialistas se realizariam como em um passe de mágica. Ao contrário destas visões, uma interpretação teórica correta do capitalismo tem que reconhecer sua natureza cíclica.
Uma teoria do ciclo deve, portanto, explicar duas coisas. Inicialmente, ela deve fornecer uma explicação dos pontos de inflexão, isto é, do ponto de ruptura que leva à crise e da retomada do crescimento econômico. Em segundo lugar, a teoria deve mostrar como se dá o processo cumulativo que propaga os efeitos das duas inflexões, tornando-os atuantes durante certo período. Brevemente, uma teoria deve explicar os pontos de inflexão e mostrar por que a economia leva algum tempo para chegar ao outro ponto de inflexão, por que a crise leva algum tempo até chegar à depressão e por que a passagem desta para a retomada também leva tempo.
Não bastasse isto, há outra exigência. O fornecimento de uma explicação para os pontos de inflexão é uma condição necessária, mas não suficiente. Além disso, é preciso que o ponto de inflexão seja uma consequência necessária dos efeitos provocados pela inflexão imediatamente anterior. Mais claramente, podemos exemplificar dizendo que a retomada deve ser explicada através dos efeitos provocados pela crise, e esta última deve ser consequência dos efeitos do crescimento econômico induzido pela retomada. Esta exigência metodológica é que define a existência do ciclo como algo regular e necessário.
Se há um consenso na teoria econômica é que o processo de acumulação de capital transcorre, com o passar do tempo, de forma cíclica. O que não há consenso é sobre como explicá-lo. Como, para explicar os ciclos, é necessário explicar que o capitalismo entra em crise porque cresceu, e volta a crescer porque entrou em crise, a teoria econômica explicita seus limites, quando procura explicar esse fenômeno que ela mesma reconhece como necessário. Para explicá-lo é necessária uma perspectiva dialética. Por isso, em primeiro lugar, a teoria econômica hegemônica entra em crise sempre que o capitalismo está em suas crises estruturais. Em segundo lugar, Marx é, uma vez mais, lembrado como o pensador que inicia a única tradição que consegue entender o capitalismo como ele é, cíclico.
O que pode emergir da atual crise do capitalismo contemporâneo? Para ser coerente com a perspectiva materialista, não há como antever certeiramente uma época histórica ainda não posta. Mesmo assim, como se trata de uma crise cíclica, pode-se, em termos mais gerais, arriscar que, de duas uma: ou o capitalismo reconstrói o processo de acumulação de capital em novas bases (históricas), o que requer desvalorizar algo do capital superacumulado e reconstruir novos espaços de valorização (com maior exploração do trabalho, necessariamente); ou o sujeito histórico, o ser humano, dividido em classes sociais, transforma essa sociedade.
Há, ainda, uma terceira possibilidade de curto prazo. O capitalismo continuar buscando se valorizar sob a lógica do capital fictício, o que só aprofunda a contradição entre produção e apropriação do valor, postergando a atual crise por mais tempo ainda e abrindo a possibilidade de um novo, e mais profundo crash. É possível que ainda não tenhamos vivenciado a manifestação mais intensa da atual crise.
IHU On-Line – Quais os limites do olhar macroeconômico como forma de compreender a economia política de hoje? Como uma visada marxista pode ampliar esse horizonte de análise?
Marcelo Dias Carcanholo – Ao contrário de uma visão mais “economicista”, de fundo keynesiano, do ponto de vista da teoria econômica, ou reformista, do ponto de vista político, a política (macro)econômica não pode solucionar as crises, ou, de forma mais ampla, corrigir a trajetória de médio e longo prazo da economia para um tendência de crescimento sem ciclos. Por quê? Porque os ciclos são necessários no capitalismo, é da sua natureza. Portanto, não há política econômica, qualquer que seja sua coloração teórica ou política, que consiga resolver as crises. Não existe capitalismo sem crises. Não existe capitalismo pós-cíclico.
Isso não significa que as políticas econômicas (monetária, fiscal, cambial e de rendas) não tenham nenhum papel. Ao contrário. As políticas econômicas podem antecipar/postergar os pontos de ruptura cíclica, tanto a crise como a retomada. As políticas econômicas podem ainda ampliar/reduzir os efeitos (políticos e sociais), tanto dos processos cumulativos (crescimento ou depressão) como das rupturas. Mas, decididamente, não podem acabar com os ciclos. A única forma de acabar com as crises é acabar com aquilo que necessariamente as contêm, o capitalismo.
IHU On-Line – Como o senhor tem acompanhado a política econômica brasileira dos últimos anos? Como, diante do atual cenário, conceber uma recuperação econômica?
Marcelo Dias Carcanholo – Como já mencionado, embora não possam “resolver” as crises, isto é, garantir uma recuperação econômica, a política econômica pode agravar/aliviar seus efeitos. O caráter restrito das possibilidades da política econômica, em uma economia dependente, como a brasileira, só se potencializa. Em economias dependentes, a margem de manobra da política econômica é menor ainda. Basicamente, porque dois dos preços mais importantes de uma economia, a taxa de juros e a taxa de câmbio, são determinadas pelos fatores externos, justamente reflexos do caráter dependente.
Mesmo com essa especificidade da economia dependente, a política econômica brasileira, em seu sentido mais amplo, isto é, como uma estratégia estrutural de desenvolvimento, vem seguindo os marcos gerais da forma como o capitalismo está tentando sair desta crise estrutural. Por um lado, no curto prazo, promoção de fortes ajustes fiscais, para garantir que o Estado obtenha saldos primários positivos, que lhe permitam financiar a sua atuação nos mercados financeiros, comprando os títulos do capital fictício superacumulado, propiciando que esse excesso de oferta não seja precificado para baixo, desvalorizando esse capital. Por outro lado, no médio e longo prazo, como o problema é maior quantidade de títulos de apropriação sobre um valor não produzido naquela magnitude, deve-se ampliar a produção de valor, o que implica elevar a taxa de exploração do trabalho. Por isso a necessidade de um novo ciclo de reformas, trabalhista, da previdência, e novas privatizações.
O significado disso é que, assim como na maior parte da economia mundial, o capital procura sair de sua própria crise repassando a conta do ajuste para a classe trabalhadora. Se ele for bem sucedido, como parece que está sendo, a síntese que, talvez, caracterize melhor nosso futuro é: “capitalismo e barbárie”.
Notas:
[1] John Maynard Keynes (1883-1946): economista e financista britânico. Sua Teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro (1936) é uma das obras mais importantes da economia. Esse livro transformou a teoria e a política econômicas, e ainda hoje serve de base à política econômica da maioria dos países não-comunistas. Confira o Cadernos IHU Ideias n. 37, As concepções teórico-analíticas e as proposições de política econômica de Keynes, de Fernando Ferrari Filho. Leia, também, a edição 276 da Revista IHU On-Line, de 06-10-2008, intitulada A crise financeira internacional. O retorno de Keynes. (Nota da IHU On-Line)
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A potência de Marx e da ideia do "capital" para enfrentar as crises de hoje. Entrevista especial com Marcelo Carcanholo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU