05 Outubro 2019
O Vale do Silício contou sobre si mesmo uma boa história: estava salvando o mundo. Por quase uma década, isso deu propósito, otimismo e segurança ao trabalhador de tecnologia moderna.
A reportagem é de Nellie Bowles, publicada por Clarin, 27-09-2019. A tradução é do Cepat.
Então, vieram as manchetes negativas, seguidas de manchetes piores - sobre a indústria, sobre os Estados Unidos, sobre o mundo. Buscando se reconfortar, os trabalhadores da tecnologia assumiram o antigo retiro hippie de Esalen, apropriaram-se de Burning Man e se interessaram por psicodélica e meditação. Não foi o suficiente.
Agora, em todo o Vale do Silício, os trabalhadores da tecnologia ansiosos finalmente admitem que têm um problema. E vão para terapia.
“As perguntas que penetram na consciência nacional estão tornando o trabalho em tecnologia não tão glamouroso nem nobre como antes”, disse Meredith Whittaker, pesquisadora do Google que renunciou, em junho, em parte para protestar contra os contratos militares da empresa e sua ética em torno da inteligência artificial. “Há muita ansiedade. Como poderia não existir? As empresas de tecnologia estão alimentando alguns dos abusos aos direitos humanos mais atrozes do mundo”.
O Vale do Silício está abordando sua ansiedade da melhor maneira que conhece. Então, agora, há terapia sob demanda. Métrica para terapia. Retorno sobre a inversão da terapia. Conecta terapeutas com clientes usando ferramentas de encontros românticos on-line.
Incluindo as startups de terapia que oferecem elementos de cuidado conhecidos - conversando com uma pessoa autorizada em um escritório -, enfatizam a papelada otimizada, com um enfoque impulsionado por dados e análise de felicidade. A cura para os males da tecnologia, esperam, é mais tecnologia.
“Os melhores terapeutas fazem você melhorar 10 vezes mais rápido que os terapeutas comuns”, promete uma dessas empresas iniciantes, Kip. “Utilizamos provedores de nível mundial, carregamos eles (e você) com nossas ferramentas de software inteligentes e projetamos uma experiência fluida tanto para clientes quanto para fornecedores”. Reflect, outra iniciativa recente, chama a terapia de “academia para o seu espírito”.
A linguagem usada pelas empresas é agressiva para algo tão pessoal quanto a terapia. Mas, na área da Baía de São Francisco, os fundadores veem pouca virtude ao aplicar uma resposta mensurada a uma oportunidade de mercado.
Os terapeutas tradicionais rabiscam anotações e as analisam depois. No sistema Kip, os apontamentos rapidamente se tornam dados. As semanas de terapia são divididas em questionários para determinar exatamente como progridem os níveis de felicidade e ansiedade e com que rapidez.
O Kip oferece um aplicativo que incentiva os clientes a registrar seu humor em tempo real, orientados por perguntas que um terapeuta pode escolher que apareçam durante o dia. “Dessa forma, não estão sujeitos a preconceitos imediatos”, disse Ti Zhao, fundador da empresa.
Os novos dados podem fornecer perspectivas que os terapeutas típicos não se dão conta sozinhos. Mas, há riscos. Elizabeth Kaziunas, pesquisadora de pós-doutorado da Universidade de Nova York, estuda tecnologia para saúde mental e privacidade. Ressaltou que esses aplicativos reuniam e organizavam dados que alguém pode não querer conhecer.
“Não há garantia nem proteções legais integradas”, disse Kaziunas. “Esses dados de saúde mental podem ser comprados e vendidos”. Por exemplo, um diagnóstico de ansiedade pode aumentar as taxas de um seguro de vida, disse. “De certa forma, é assustador, certo?”, disse, “quando se pensa a respeito”.
Aqueles que financiam novas empresas de terapia veem toda uma comitiva de funcionários de tecnologia que há muito fundiram seu senso de autoestima com seu trabalho e que se sentem emocionalmente à deriva agora que o setor está sob assédio.
“Uma coisa é se esforçar por uma grande empresa de tecnologia em que você acredita, mas uma vez que você começa a questionar as motivações dessa empresa, isso pode fazer com que as oito horas por dia em que você trabalha pareçam menos satisfatórias”, disse Michael Seibel, diretor Executivo da Y Combinator, um fundo de investimento e assessor para novas empresas.
"No Vale do Silício, não faz três anos, conversamos muito sobre saúde”, acrescentou Seibel. Calcula que mais de 50 startups relacionadas estão em processo de chegar na cena. Sua empresa acaba de financiar três: Stoic, um aplicativo de acompanhamento para saúde mental, Quirk, um aplicativo que usa terapia cognitivo-comportamental para tratar pessoas com ansiedade e depressão, e Mindset Health, que cria aplicativos de hipnoterapia que dizem tratar a ansiedade, depressão e síndrome do intestino irritável.
Vários terapeutas e coach de vida tradicionais da área de San Francisco disseram que houve uma mudança notável entre seus clientes. Há alguns anos, indicaram, os clientes vinham principalmente por problemas pessoais, mas agora relatavam ansiedade sobre as tendências globais, como a crise climática e o aumento das ditaduras.
No ano passado, May Bartlett, um coach de vida, fundou o Global Impact Coaching para responder perguntas sobre como o trabalho de alguém pode ajudar ou prejudicar o mundo. “Chegam e dizem: ‘Sinto que flutuo neste universo imenso, sozinho, sem propósito’”, disse Bartlett. “E há muito desse medo existencial”.
Desenvolveu seu programa para clientes que se sentem sobrecarregados. Acordam com notificações push que relatam ações obscenas na fronteira, seguidas por alertas sobre espécies em extinção e notificações sobre pessoas a quem foi negado o voto. Não estão seguros de si e necessitam renunciar a seus empregos.
O fluxo de informações sobre o mundo exige constantemente empatia. Bartlett disse que muitas vezes fazia seus clientes pensarem em si mesmos e em seus trabalhos e erros no contexto da “imensidão da história”. “Sim, as coisas estão chegando a um ponto crítico no momento e o mundo é terrível, mas se você vê através das lentes de 13 bilhões de anos, verá: muito bem, este é um pequeno incidente”, disse. “Houve outros tempos de caos e destruição”.
Os trabalhadores da tecnologia estão começando a ser mais abertos sobre a saúde mental em sua própria indústria. Justin Kan, diretor executivo do Atrium, um escritório jurídico para empresas de tecnologia, foi sincero durante o último ano sobre suas lutas pessoais e os prazeres da terapia. Descobriu que se sentia melhor quando parou de receber tantas informações novas. “Algo que me ajudou foi que eu apaguei todas as notícias do meu telefone”, disse Kan. “E isso realmente melhorou meu humor”.
O Existential-Humanistic Institute, fundado em 1997, é um coletivo de terapeutas e filósofos que trabalham com clientes que lutam não apenas com questões relativamente comuns e atuais, mas também com seu próprio propósito no planeta. O interesse em sua abordagem pareceu se recuperar junto com a ascensão de Donald J. Trump. “É um grande ressurgimento”, disse Kirk Schneider, líder da organização.
Schneider, 63 anos, citou a própria tecnologia como uma razão do caos emocional no ambiente. Mas disse que os clientes também sofreram devido a forças sociais mais amplas como o medo de que a desigualdade leve a revoltas violentas, o pânico sobre o autoritarismo global e a percepção de que não contribuem para o bem comum. “O objetivo é passar de um sentimento de total terror e paralisia para um sentimento gradual de fascínio e admiração futura”, disse Schneider.
Os clientes novos querem ajuda para se desconectar. Amy Eliza Wong, executiva e coach de vida em San Francisco, que vê um fluxo constante de trabalhadores de tecnologia, disse que a maioria veio até ela porque queria se desconectar das manchetes que induziam ao desespero e voltar a se concentrar em seus assuntos.
Obviamente, isso não significa que toda a região esteja implodindo mentalmente. O povo de San Francisco ainda vai trabalhar e ler as notícias. As grandes empresas de tecnologia ainda atraem ávidos candidatos a emprego. O Google não deixará de ser empresa.
Existe até um contramovimento que opõe resistência ao excesso de autorreflexão e autoflagelação impulsionada pelas notícias. Seus líderes argumentam que o otimismo antes funcionou perfeitamente bem e que o Vale do Silício deve seguir em frente.
Seus seguidores podem ser encontrados reunidos firmemente por trás do otimismo militante do Twitter, o capitalista de risco. Ali, os antigos pais da indústria enviam um fluxo constante de clichês relacionados às novas empresas. Este é o movimento da positividade da tecnologia.
“Otimismo, ambição e recrutamento. Essa receita também funcionará para a sua startup?”, escreveu Paul Graham, cofundador da Y Combinator, no Twitter. “Sim”.
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Crise no mundo da tecnologia com funcionários em terapia e novas startups - Instituto Humanitas Unisinos - IHU