Travessia conceitual do irrepresentável. Três limiares da pandemia de 2020

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03 Abril 2020

"A governamentalidade biopolítica cedeu lugar ao niilismo de Estado. O Brasil bolsonarista é um caso paradigmático deste conceito. Bolsonaro incitou manifestações e conclamou o retorno à “normalidade” – a tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção é a normalidade – mesmo possuindo dados sobre o avanço da pandemia e previsões do número de mortos", escreve Jonnefer Barbosa, doutor em filosofia e professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-SP.

 

Eis o artigo. 

 

1. Nec spe, nec metu (sem esperança, sem medo) 

O Dipolo do Oceano Índico expressa um conjunto de anomalias de altas e baixas temperaturas nas margens opostas deste oceano. Fenômeno chamado de “El niño índico”, relacionado à catástrofe climática mundial, é um fator decisivo para os gigantescos incêndios florestais que assolam a Austrália e, simultaneamente, para uma infestação de gafanhotos-do-deserto em boa parte da África oriental. O aumento das chuvas e a aparição de tornados em regiões desérticas do Chifre da África favoreceram a proliferação inaudita destes insetos, mantendo sete países da região em estado de atenção e de insegurança alimentar, atacados por enxames apocalípticos.

A pandemia de 2020, contemporânea a estes fenômenos, só se torna inteligível na ampla multiplicidade de acontecimentos atrelados ao colapso climático. Muitas destas alterações se mostram perturbadoramente irreversíveis. Mas, em termos éticos, o que um acontecimento disruptivo como uma pandemia pode mostrar? Não será a experiência da extinção uma contradição em termos, abalando a própria possibilidade da representação?

Não posso responder como cientista, apenas como alguém que se dedica a estudar e a pensar textos filosóficos. A filosofia parte da perda do sentido, é a travessia conceitual do irrepresentável. Se a vida sensível está em extinção na Terra, se possivelmente restarão somente as pedras, os vírus, os protozoários e afins (aquilo que engendrará outras formas de vida a bilhões de anos, se o planeta não explodir antes), se a parada foi perdida, mesmo que não sejam os bichos humanos a presenciar, sem testemunho, o colapso definitivo, como o reconhecimento desta derrota repercute, agora, na maneira em que vivemos?

Contrariamente ao enunciado cristão de Montaigne, a filosofia não é um aprender a morrer. O pensamento sobre a morte, própria e de outrem, entristece. Assim como são sombrias e tristes as filosofias que fazem da mortalidade o limite a ser pensado ou assumido, como em Heidegger. A morte carrega o medo e Espinosa sabia que não há medo sem esperança, nem esperança sem medo: “a esperança é uma alegria instável, surgida da ideia de uma coisa futura ou passada, de cuja realização temos alguma dúvida”.[1]

O capitalismo financeiro é o novo ascetismo extramundano, uma religião impiedosa assentada na esperança fanática e na crença na eternidade da vida servil. Fiat oeconomia, peret mundus: irreconciliável com a não-autarquia humana diante de eventos que a atravessam e a ultrapassam, do degelo das geleiras ao contágio pandêmico de um vírus.

A mitologia que rege a dinâmica das bolsas chamará tais fenômenos de meras “externalidades”, “eventos imprevistos": supondo a perenidade e estabilidade autorreguladora dos mercados, que “só excepcionalmente” e “temporariamente” poderão ser afetados por situações anômalas, consideradas pelos eventuais lucros ou perdas. Trata-se de uma definição muito limitada ou até mesmo metafísica do “fora”, confissão da arrogância, solipsismo e fanatismo autocomplacente típicos dos financistas neoliberais. Os mercados, nas “externalidades” engendradas pelo colapso climático, são como barcos de papel no meio da tempestade. O “fora” penetrou suas frágeis carcaças em todos os poros. 

“Haverá vacinas, voltem ao trabalho!”

“As dívidas devem ser pagas, o PIB precisa voltar a crescer!” 

“O entregador do Ifood, na rua da enchente, no meio da correnteza.” 

A espera pelo fim – gerações, séculos – como projeto insuportável e inassumível. Espera e desespero estão mutuamente implicados. 

Excurso – carta a Joana, anotação sobre W.B.

Verdadeira materialista histórica no séc. XXI não é aquela que espera pelo fim apocalíptico ou crê na salvação eterna projetada pelos dispositivos cibernéticos e farmacopornográficos. Interrompe o tempo no agora e organiza o pessimismo, com alegria e vivacidade. Sem medo nem esperança, como os gladiadores romanos ou como a poetiza que vive seus versos, despreocupada com glórias literárias. Destituir o futuro cronológico na leveza irremediável e mundana das frágeis constelações do tempo-de-agora. O colapso final não será testemunhado. 

 

2. Esperando Foucault? Vidas sem Rastros 

Inúmeras análises oriundas das ciências humanas lançadas na internet nas últimas semanas recorrem de forma insistente a Foucault para explicar os vínculos entre as técnicas governamentais biopolíticas – o governo dos vivos - e o fenômeno da pandemia. Um tópico singular, porém, exige ser considerado: os regimes históricos de verdade em que tais tecnologias estão implicadas e aos quais dão visibilidade. Não há continuidade natural entre a peste bubônica, narrada por Boccaccio no séc. XIV, à contenção da varíola por intermédio de uma técnica absolutamente nova, as vacinas, surgidas com os experimentos de Edward Jenner no fim do séc. XVIII, ambas mencionadas por Foucault. A proliferação da COVID-19 e as diversas respostas governamentais à pandemia, sobretudo na realidade brasileira, apenas parcialmente podem ser lidas em termos biopolíticos ou necropolíticos[2]: o governo biopolítico de populações tornou-se, em nosso tempo, um privilégio de classe.

As medidas de quarentena no contexto europeu e americano ou as tecnologias de ciberbiovigilância, segundo o modelo sul-coreano (ou a fusão de ambas as táticas adotadas pela China), são adequadamente assimiláveis aos conceitos da governamentalidade biopolítica. Porém, nos territórios neocolonizados e nas áreas de contenção de pessoas, não importa se na América Latina ou em um campo de refugiados às margens da Europa, a governamentalidade biopolítica cedeu lugar ao niilismo de Estado.

O Brasil bolsonarista é um caso paradigmático deste conceito. Bolsonaro incitou manifestações e conclamou o retorno à “normalidade” – a tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção é a normalidade – mesmo possuindo dados sobre o avanço da pandemia e previsões do número de mortos. O informe nº 15/2020, de 23 de março de 2020, emitido pela Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), tornado secreto pelo Governo Federal, estabeleceu prognósticos sobre a curva de letalidade do vírus em comparação com outros países. Bolsonaro, sua equipe próxima e o empresariado que lhe dá suporte e aconselhamento sabem que a pandemia levará milhares brasileiros e brasileiras à morte. O pedido presidencial para que voltemos à normalidade veio acompanhado de uma ampliação do número de documentos públicos que poderão ser considerados secretos. As mortes subnotificadas no Brasil são muito mais expressivas que as cifras efetivamente contabilizadas pelo governo. A obturação da realidade dada na censura e na proliferação de mentiras é deliberada e explícita, com o mesmo descaramento da classe média alta protegida em carros de luxo em carreatas genocidas para que os pobres voltem ao trabalho. Jogando com os conceitos benjaminianos, o fascismo hoje no poder incorporou sua própria destituição, ele não tem mais pretensão constituinte e não se sustenta em poderes constituídos ou constitucionais.

A tão repetida definição da soberania política como um poder de vida e morte, poder de incutir a morte, é insuficiente para abarcar uma governamentalidade neocolonial cujas marcações não se restringem aos corpos dos súditos e cujas estratégias não mais se circunscrevem ao governo biopolítico de populações. Produzir desaparecimentos não é apenas aniquilar vidas humanas, mas gerir o apagamento de seus rastros.

O desaparecimento enquanto técnica governamental expõe uma desterritorialização da gestão biopolítica de populações. Tratava-se nesta de governar a impessoalidade da vida biológica, em seu aspecto de multiplicidade: produtiva, assinalativa (fecundidade, natalidade, mortalidade em registros estatísticos), assimilações ou desvios. A multiplicidade das novas modalidades do poder nas sociedades do desaparecimento expressa-se em diversos e singulares dispositivos, com caracteres e intensidades variáveis. Da normalização do aniquilamento e da execução sumária como práticas de governo à exclusão de dados sobre as mortes pelo novo coronavírus ocorridas no SUS.

As técnicas de desaparecimento produzem uma “vida que não deixa rastros”. O desaparecido não é somente um corpo sujeito à punição de um soberano ou às disciplinas que o sujeitarão. O conceito de vida sem rastros expõe uma paradoxal contra-história da política no ocidente, possibilitando nela incluir desde a história silenciada dos mortos nos navios negreiros, também chamados pelo Império Português de navios tumbeiros, no longo genocídio que atravessou o século XV até o XIX, aos desaparecidos políticos na ditaduras latino-americanas a partir dos anos 60, passando pelos assassinados pelo narcotráfico ou por grupos policiais, militares ou paramilitares de extermínio.

O conceito de desaparecimento é um critério de inteligibilidade da política governamental latino-americana. Tomando o contexto brasileiro como exemplo, é impossível estabelecer uma análise minimamente crítica sobre questões de governamentalidade sem analisar a presença oculta, porém constante, das valas comuns como zonas de desaparecimento de vestígios.

As valas comuns no Brasil iniciam-se como um dispositivo colonial escravocrata. Quando uma pessoa capturada e escravizada sobrevivia à travessia intercontinental nos navios tumbeiros, mas morria em solo brasileiro, seja por excesso de trabalho, doenças ou assassinada em punições severas que incluíam a forca, a degola ou o “cozimento em vida” (forma cruel de tortura por imersão em água fervente, em que demais escravizados eram obrigados a aplicar a pena[3]), seus cadáveres eram sepultados em valas comuns sem identificação, os chamados “cemitérios de escravos”.

As valas comuns disseminaram-se desde então, seja para indigentes ou subversivos, endividados com o narcotráfico ou para toda e qualquer memória que deva ser obturada, apagada, segundo os cálculos do niilismo de Estado que hoje absorveu as máquinas de guerra criminais, como no Brasil das milícias governantes. Não apenas a morte de milhares de anônimos, mas a tática concreta para que tais eventos não sejam assinalados: se a biopolítica e sua linha de fuga necropolítica agencia-se no corpo vivo de uma população, a produção de desaparecimentos opera sobretudo no plano histórico.

Se o local próprio da governamentalidade biopolítica foi a metrópole, ou seja, o espaço urbano estabelecido com a passagem do poder territorial da antiga soberania à governamentalidade biopolítica, um governo dos homens e das coisas que tinha como contraponto as necrópoles (νεκρόπολις), termo que em grego designavam os cemitérios, literalmente, "cidade dos mortos", ou os campos santos na Idade Média, as valas comuns espalhadas pelo mundo e os casos de subnotificação na pandemia são a expressão visível e incômoda não só do extermínio como prática habitual de governo, mas das políticas de desaparecimento, que transformam os antigos territórios da cidade e da metrópole, conceitos então centrais na biopolítica foucaultiana, em locais de desova e ocultação de cadáveres.

Curiosamente, são regiões conflagradas como o Brasil, a Colômbia, o México, que hoje expressam regimes específicos de poder que são a pedra de toque da violência do governo neoliberal mundial. Antes de perguntar se um Foucault nonagenário permaneceria em casa na rue Vaugirard durante a quarentena, como o fazem melancolicamente alguns teóricos na atual província europeia, é preferível jogar os conceitos e diagramas foucaultianos, sua função-autor, nas ruas de Paraisópolis ou de Ecatepec, para que as intempéries do presente criem outros agenciamentos com estes: finos ou destrutivos, selvagens ou monstruosos. 

Excurso

Não se gerem os territórios das favelas na eclosão de uma pandemia. Abandona-se tais locais à própria sorte. As tentativas de fazer populações inteiras desaparecerem cria em sua própria opacidade a emergência das máquinas de guerra invisíveis, das guerrilhas difusas e menores. Importa é criar outras formas de desaparição, habitá-las comunalmente, fazer uso das invisibilidades. Formas-políticas do esconder-se, a própria sorte agarrada em forma-de-vida, que nunca poderão engendrar uma população biopolítica

 

3. Acontecimento

Pensar o acontecimento da pandemia envolve articular as multiplicidades desta, não redutíveis a um conjunto de fatos ou procedimentos. Os acontecimentos são também clivagens temporais. Marcam uma série de relações de um ocorrido com o devir futuro: a revolução Haitiana, a Comuna de Paris, a matança de Tlatelolco, a chacina de Eldorado de Carajás como acontecimentos interpelam não apenas nosso presente, manterão suas exigências às gerações que virão (as predições são sempre arriscadas, mas com a pandemia de 2020 testemunhamos um acontecimento que interpelará as décadas e séculos posteriores). O acontecimento também abre – ou estraçalha - o presente no contato extemporâneo com índices do passado que se tornam legíveis justamente no instante de perigo.

As epidemias no Brasil foram usadas historicamente como “janelas de oportunidade” para destruições, ataques, fortalecimento de aparatos de violência política, como a reforma Pereira Passos na cidade do Rio de Janeiro, analisada recentemente por Claudio Pereira e Victor Galdino.[4] Sob o argumento de conter a febre amarela criou-se um outro modelo de cidade, com a destruição de cortiços, terraplanagem de morros, grandes avenidas que expulsam os supostos miasmas. As epidemias no Brasil oitocentista foram ocasiões em que se instrumentalizaram e justificaram, com argumentos sanitários e científicos da época, a contenção e expulsão racista dos pobres para os subúrbios.

A pandemia COVID-19 em território brasileiro fez emergir costumes subterrâneos de vizinhanças que se ajudam, de comunidades que se protegem, memórias de momentos anteriores à concorrência e desconfianças banalizadas e naturalizadas pelo hobbesianismo neoliberal. Mas também pode ser a ordinária vida sob aparelhos cibernéticos e smart, a televida, continuada em quarentena. Formalização e imposição sob poder de polícia de hábitos e de condutas que já estão disseminados. Ou a ocasião em que irrompe um medo visceral, que toma lugar do medo cotidiano de ser morto pela milícia, de perder ou não encontrar um emprego, de não pagar as contas etc.

Mas os acontecimentos, em sua novidade irrepetível, tornam explícita a mitologia que move o cotidiano enrijecido pelos hábitos. Um vírus ou um exame de gafanhotos são mais reais que as lorotas inconsequentes de Bolsonaro ou de Trump. O acontecimento COVID-19 expõe que economia real não deve priorizar rentistas, sob pena de condescendermos com a morte e com a catástrofe. As universidades não são palcos de balbúrdia, são espaços autônomos de produção do saber humano e devem ser preservadas e financiadas com fundos públicos. O sistema público de saúde é um aparato de proteção universal, pois as grades dos condomínios de luxo e os hospitais-hotéis dos ricos não são imunes ao contágio, ou são os primeiros focos de disseminação da doença.

Deleuze recorria aos estoicos para definir um acontecimento: este não se reduz a um estado de coisas, a meros fatos. Existem os corpos e suas relações, ações e paixões. Estas relações não são coisas, propriedades definíveis que possam ser explicadas pelas categorias da causalidade ou da intencionalidade. Os corpos são causas uns para os outros em um sentido muito preciso: são efeitos uns para os outros, que não são expressos em substantivos ou adjetivos, tampouco se subsumem a um ser em geral. No vocabulário estoico, tais efeitos são incorporais, não estão nos corpos, mas os implicam. Verbos são uma expressão do incorporal, não “a árvore é verde” – que implicará uma substância enrijecida, o “ser”, substantivos e adjetivos fixos -, mas “a árvore verdeja”: traça-se aqui um acontecimento. Os acontecimentos são moleculares. O contato das leveduras em nosso pão, um vírus que escapa do corpo de um animal selvagem, os fluídos da vida, “inframundos” que não conhecem complots e nos destituem de nossa soberania indolente, lançados ao magma de forças que não controlamos e nunca controlaremos. Embora possamos nelas agir com virtú ou covardia.

Durante a peste que assolou as hordas gregas, na presença de um exército que mais parecia um enxame de vespas em fuga, Homero conta que a astúcia (Μῆτις) de Ulysses elaborou, diante das necessidades e urgências, o princípio da monarquia. As linhas de fuga e pontos de começo de um acontecimento não são necessariamente benéficas. A cartas voltam a estar sob a mesa. Mesmo que não sejam favoráveis, a partida está em aberto. Que nossa astúcia possa elaborar um princípio novo de comunismo à altura das exigências desta atual pandemia.

 

Notas:  

[1] Definição semelhante recebe o medo na Ética espinosista: mas ao contrário de ser uma alegria instável, é uma tristeza instável (Ética III, def., 12 e 13).

[2] Apesar da insistência recente em diferenciar estes conceitos, o próprio Foucault postulava que o governo biopolítico de populações não cancela, mas dá outras intensidades e modalidades ao velho poder soberano de vida e morte.

[3] Cf. Cozinhar escravos. MOURA, Clóvis. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo: Edusp, 2013, p. 118.

[4] A quarentena, a ilusão do normal e a fenda. In: Outras palavras, de 24/03/20.

 

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