21 Julho 2009
Abre-se um debate entre quem defendia uma nova prática baseada na racionalidade e quem era contrário, defendendo o argumento de que o corpo, assim como a alma, deve se purificar dos próprios pecados.
A opinião é do médico italiano Giorgio Cosmacini, professor da Università Vita-Salute San Raffaele, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 21-07-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em 1761, um clínico suíço de grande valor, Samuel August Tissot (que foi professor na cátedra em Pavia, na Itália, no triênio 1783-1785), deu às gráficas de Lausanne, onde era "médecin de ville", um "Avis au peuple sur sa santé" que era um verdadeiro projeto de "medicina pública", com ampla descrição de todos os riscos de contágio, em primeiro lugar da varíola com a sua elevada mortalidade, a sua vasta difusão, os seus graves danos (dentre eles a cegueira) e o seu remédio soberano, a "variolização" ou "inoculação" feita por mãos hábeis.
Esta é, escreve Tissot, "a operação por meio da qual, colocando um pouco de pus retirado de pústulas maduras sobre uma leve incisão feita na pele, cura-se essa doença, mas de forma atenuada: de fato, basta saber que, de 690 sujeitos, 106 morrem, mas que, se a inoculação é realizada neles, morrem apenas dois do mesmo número".
Tissot traça uma breve história da inoculação. Escreve: "Esse modelo está em uso desde tempos imemoráveis na China e nas grandes Índias. É empregado há mais séculos na Geórgia e na Circássia. Foi introduzido em Constantinopla há uma centena de anos. Enfim, foi levado à Inglaterra em 1721 por uma mulher de nobre sensibilidade, lady Mary Wortley Montague, que foi testemunha do sucesso com o qual era usado em Constantinopla, onde seu marido era embaixador".
Na breve história percorrida, falta, obviamente, a transformação, de mais de 37 anos, da "variolização" da metade do século XVII, praticada com pus humano, não sem algum risco, na "vacinação" do final do século XVII, e depois dos séculos XVIII e XIX, praticada com pus bovino não infeccionado.
Em 1798, o naturalista inglês Edward Jenner (1749-1823) revelou que o "cow-pox" ou varíola bovina, transferido do gado para o homem, provocava neste último uma doença moderada (varíola menor) que impedia que a varíola humana (varíola maior) se difundisse e causasse complicações.
Esse "não retorno" da doença em quem a tivera, atenuada e provocada deliberadamente, era o equivalente biológico daquela que depois se chamaria "imunidade". "O fabuloso enxerto", como foi chamado por Giuseppe Parini, salvou no século XVIII mais vidas do que as que foram sacrificadas pelas guerras napoleônicas, pelas guerras do Renascimento e pela guerra franco-prussiana de 1870. Foi um evento não só médico-científico, mas também médico-social.
Além disso, forneceu uma demonstração posterior do fato de que a medicina científica está marcada por inspirações que derivam da medicina popular: se no século XVI, os médicos aprenderam a curar as febres com a quina [ou cinchona] (daí quinino), pertencente há muito tempo à farmacopeia popular dos indianos, no século XVII os médicos aprenderam a prevenir a varíola com a técnica obtida da prática das mulheres chinesas e caucasianas.
Enfim, na "idade das luzes" do século XVII, a vacinação foi um reagente capaz de indicar a posição de qualquer pessoa no campo de duas linhas ideológicas contrapostas: a "obscurantista", em que militavam aqueles que se opunham a uma prática que impedia o corpo de se purificar como a alma do pecado, e a "iluminista", em que militavam aqueles que se alinhavam – como os enciclopedistas na França, e Pietro Verri e Cesare Beccaria na Itália – a favor de uma prática salva-vidas.
"Vacinação" é hoje o termo com que se designa a administração de uma substância antigênica capaz de estimular uma resposta imunitária protetora com relação a uma doença infecciosa. Dois séculos de história demonstram que o método é rico de indubitáveis e inestimáveis méritos. Entre as provas que podem ser dadas, bastam a da erradicação da varíola em escala planetária e a da poliomielite nos países ocidentais do Norte do globo.
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O significado da derrota da varíola - Instituto Humanitas Unisinos - IHU