27 Março 2020
“Sairemos, sim, mas não sairemos da mesma forma como entramos neste tempo de vírus. Pode ser que tenhamos que atravessar um longo período de mudança de modelo de consumo. Mas também pode ser que saiamos regenerados, recuperando o simples prazer de viver, ancorados em nossas famílias, nossas amizades e nossos amores”, escreve Manuel Castells, sociólogo espanhol, em artigo publicado por La Vanguardia, 21-03-2020. A tradução é do Cepat.
E de repente, tudo mudou. Nossa saúde, nossos hábitos, nossa economia, nossa política, nossa psicologia, nosso horizonte temporal e existencial. Ainda não absorvemos inteiramente o choque brutal que isto representa para nossas vidas, em particular o medo da doença ou a perda de nossos entes queridos.
Não estávamos preparados para uma pandemia destas proporções e com tal velocidade de propagação. Nós a subestimamos quando surgiu, inclusive eu mesmo. Há esperança de que possamos superá-la, ao menos em sua dimensão sanitária, como demonstra o fato de que a China e a Coreia já parecem ter conseguido frear o contágio. Embora a China tenha demorado mais de um mês para levar a sério a epidemia por ignorância burocrática dos avisos que foram dados pelos médicos de Wuhan, com o sacrifício da vida de um deles.
Agora, sabemos que a única coisa que funciona para deter a propagação é o isolamento social. Foi o que China e a Coreia fizeram com métodos diferentes. Além dos testes em todos, frente ao menor sintoma, o que foi essencial na Coreia. Investindo massivamente desde o início em material de saúde. Na Espanha, não pudemos fazer testes em todos simplesmente porque não havia material suficiente. Isso mudou, em parte mediante a doação e compra de material, obtido sobretudo da China, que está mostrando uma solidariedade internacional que contrasta com outros países.
Claro que só estaremos livres desta praga quando tivermos remédios para o abrandamento do contágio e, depois, uma vacina eficaz. Vacina que provavelmente terá que ser aplicada na maioria da população do planeta para poder consolidar as defesas que vão sendo geradas em nosso sistema imune. Embora a capacidade de mutação do vírus ainda seja desconhecida.
Agora, percebemos a importância da ciência e da tecnologia para nos proteger como espécie dos desastres que nós mesmos geramos. Porque a difusão massiva de um vírus originado em um mercado de uma cidade chinesa não pode ser entendida sem a globalização incontrolada na qual se baseia nosso sistema econômico e nossa forma de vida. A globalização, que dinamizou a economia mundial e contribuiu para a melhora das condições de vida de um quarto da população, também criou uma interconexão para qualquer processo, seja o terrorismo, a mudança climática ou epidemias antes locais.
Vivemos em uma rede global de redes globais que estruturam cada âmbito da atividade humana. De modo que tudo o que acontece funciona de acordo com uma lógica de rede, em que cada nó se comunica com múltiplos nós que, por sua vez, ampliam as conexões a outros tantos nós, o que se chama de “small world phenomenon”, onde um só nó pode gerar uma gigantesca estrutura, dependendo de sua velocidade de conexão. Assim funcionam as telecomunicações e assim funcionam os novos vírus que se expandem sem controle até que encontremos o antídoto. O que não previne de futuros vírus que possa haver, em particular por transmissão de outras espécies aos humanos (por isso não deveríamos comer animais).
E como a globalização implica contínuos movimentos de pessoas viajando de um continente a outro, em poucas horas, em um tráfego constante de atividades comerciais, burocráticas e turísticas, a abertura de fronteiras e o relaxamento de controles que a globalização acarreta tornam os sistemas de proteção do passado inoperantes. Daí a tentação de ressuscitar as fronteiras e os controles de todos os tipos, desmentindo a utopia liberal de “cidadãos do mundo”. Talvez a ordem liberal seja a primeira vítima desta pandemia.
Mais profundo ainda é a mudança no pessoal. Vamos percebendo, sem acreditar completamente, como em um pesadelo, a fragilidade de nossas vivências. Rotinas presentes em nosso cotidiano e que agora lamentamos com o desespero de não as ter valorizado em sua simplicidade. A maravilha de viver e de se relacionar livremente que, em momentos como agora, se torna uma ameaça constante, que esvazia de sentido o que fazemos, ainda que consigamos manter nossa sociabilidade pela internet, cuja utilidade agora apreciamos em seu justo valor.
Os problemas que nos pareciam insuportáveis agora cobram sua verdadeira dimensão de futilidades diante da ameaça de perder o trabalho, o ensino, a cultura, respirar em um parque ou pegar ondas. Sob pena de perder a saúde ou ser punidos por incivilidade. Porque só aceitando essas limitações poderemos sair desta crise multidimensional, na qual o vírus corrói nossos corpos, nossa economia, nossas paixões e nossas fantasias.
Sairemos, sim, mas não sairemos da mesma forma como entramos neste tempo de vírus. Pode ser que tenhamos que atravessar um longo período de mudança de modelo de consumo. Mas também pode ser que saiamos regenerados, recuperando o simples prazer de viver, ancorados em nossas famílias, nossas amizades e nossos amores. Porque para além da irritação normal de um longo período de clausura, são estes sentimentos e nosso apoio mútuo o que nos sustentará. Talvez reaprendamos o valor da vida e isso nos permita prevenir outras catástrofes que nos aguardam, caso sigamos em nossa corrida destrutiva e pretensiosa para não se sabe onde, nem por qual razão.
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Tempo de vírus. Artigo de Manuel Castells - Instituto Humanitas Unisinos - IHU