03 Fevereiro 2025
"É assim desde sempre que as dominações se formam, desde aquelas de uma tribo sobre outra tribo, até reinos e impérios. É algo muito primitivo, muito ancestral, radicado na pré-história do homo sapiens que, onde quer que chegasse, subjugava outros hominídeos e outros animais até levar muitos deles à extinção. É a mais total e descarada vontade de poder. É a gasolina da história, o combustível dos vencedores", escreve Vito Mancuso, ex-professor da Universidade San Raffaele, de Milão, e da Universidade de Pádua, em artigo publicado por La Stampa, 23-01-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Certamente Trump está autorizado pela Bíblia a acreditar que tem Deus do seu lado. Netanyahu também está, até mesmo Ben-Gvir, o político israelense de extrema direita que se demitiu do cargo de ministro da segurança nacional em protesto contra a frágil paz em Gaza, porque queria continuar o massacre. Putin e o Patriarca Kirill de toda a Rússia também estão convencidos de que estão do lado de Deus, e eles também têm convictas fundamentações bíblicas e teológicas para acreditar nisso. Até mesmo Narendra Modi, na Índia, sente-se protegido e guiado por seu panteão totalmente hindu de Brahma, Shiva e Vishnu. E, é claro, no que diz respeito à fé, os vários islamitas não ficam atrás, do Hamas ao Hezbollah e aos aiatolás iranianos que citam de cor as Suras do Alcorão para armar seus homens e enviá-los para matar sem piedade.
A falta de piedade, da “pietas” virgiliana, para retomar o antigo conceito latino, é uma característica que define esses senhores da história, esses aspirantes ou vencedores de fato, que, voltando a Trump em seu discurso, querem ser os primeiros e, assim, despertar a inveja nos outros povos: “Seremos a inveja de todas as nações do mundo”. Querem ser os primeiros, esmagar, tornar todos vassalos: “Colocarei os Estados Unidos em primeiro lugar”. Almejam e querem alcançar “uma nova e empolgante era de sucesso nacional”, onde fica claro que o sucesso de alguns, na história, é necessariamente o insucesso e a subjugação de outros.
É assim desde sempre que as dominações se formam, desde aquelas de uma tribo sobre outra tribo, até reinos e impérios. É algo muito primitivo, muito ancestral, radicado na pré-história do homo sapiens que, onde quer que chegasse, subjugava outros hominídeos e outros animais até levar muitos deles à extinção. É a mais total e descarada vontade de poder. É a gasolina da história, o combustível dos vencedores. O homem branco sempre encheu disso o tanque para fincar sua bandeira vitoriosa em tudo e em todos. E a Bíblia desde sempre foi um poço de petróleo fecundo para extrair esse combustível. E continua sendo. Afinal, todos sabem que por trás de Trump estão a direita evangélica, toda Bíblia, petróleo e indústrias de armas.
Como um grande aspirante a desempenhar o papel messiânico de invencível Ungido do Senhor, depois de lembrar que escapou do atentado que feriu sua orelha, Trump continuou: “Sentia na época, e acredito ainda mais agora, que minha vida foi salva por uma razão”. Qual?
Impossível duvidar de qual seria a resposta: “Fui salvo por Deus para tornar a América grande novamente”. O Deus bíblico salvou sua vida para confiar a ele a missão de fazer sua pátria triunfar. E Deus e pátria, como se sabe, são a dupla vencedora da Bíblia e da sua religião nacional, concebida e desenhada sob medida para o “povo escolhido” que triunfa, liderado pelo “Deus dos exércitos”, sobre as outras populações.
Um pouco mais adiante, Trump declarou: “Não nos esqueceremos de nosso Deus”. Não, é claro, não podem esquecê-lo, porque o Deus deles é o Eu deles, o Nós deles, “Gott mit uns”, “Deus conosco”, como estava escrito nas fivelas dos cintos dos soldados do Terceiro Reich e, antes disso, naquelas dos monges teutônicos durante a Idade Média, e como o salmo bíblico havia declarado antes disso: “O Senhor dos Exércitos está conosco” (Salmo 46,8, tradução da Bíblia hebraica pelo rabino Dario Disegni).
Em si, não é de todo errado sentir que Deus está com você; pelo contrário, esse sentimento profundo e calmo de confiança é o sentido genuíno da verdadeira religiosidade, aquela que é experimentada quando um ser humano percebe que não está sozinho, que não está nas mãos do acaso, que não veio do nada para voltar ao nada, mas que é sustentado por uma realidade muito mais brilhante e que faz parte de uma Santa Inteligência que, do caos informe da escuridão cósmica, sabe como despertar a vida, a inteligência e o amor. Mas é claro até demais que aqueles que vivem autenticamente essa experiência espiritual estão longe de considerar Deus como seu Deus pessoal, ou pior, Deus nacional, como um poder ao seu lado para dominar e esmagar os outros povos, despertando neles a inveja por seu próprio sucesso.
É claro que a Bíblia também dá amplo testemunho dessa religiosidade genuína, como, por exemplo, no belíssimo Salmo 131, que diz: “o meu coração não é orgulhoso e os meus olhos não são arrogantes. Não me envolvo com coisas grandiosas demais para mim”. Não é exatamente o retrato de Donald Trump. O salmo continua: “De fato, acalmei e tranquilizei a minha alma. Sou como uma criança”. Aqui não se busca a grandeza, mas se almeja a mansidão. A Bíblia é ambígua, assim como a vida é ambígua. Ela mesma afirma: “Uma vez Deus falou, duas vezes eu ouvi, que o poder pertence a Deus. Contigo também, Senhor, está a fidelidade” (Salmo 62,11-12). Há aqueles que juram sobre a Bíblia e dizem que creem em Deus porque seu Deus é a força. E há aqueles que, talvez não jurando nada, como Jesus ensinou no Sermão da Montanha (“Eu, porém, vos digo que não jureis... que a vossa palavra seja sim, sim, não, não”), e talvez não professando nenhuma fé, cultivam o sumo ideal do bem e da justiça e, portanto, estão automaticamente do lado do Deus da bondade.
A realidade, entretanto, é que o cristianismo sempre foi muito útil para os governantes. O primeiro imperador a entender isso no Ocidente foi Constantino, o último Donald Trump. Mas poderia ser de outra forma? Ou será que para governar efetivamente esse navio de loucos que é a história da humanidade é preciso exatamente ter o livro sagrado em uma mão para seduzir a mente e a espada na outra para manter sob controle os corpos, como diz o salmo? Aqui estão suas terríveis palavras: “Altos louvores estejam em seus lábios e uma espada de dois gumes em suas mãos, para imporem vingança às nações e trazerem castigo aos povos” (Salmo 149,6-7). Donald Trump, jurando sobre a Bíblia de Lincoln e sobre aquela de sua família, depois de assistir à missa de manhã cedo, com seu discurso de posse só reiterou qual é o seu Deus: o Deus da força e do poder que se impõe para se vingar dos outros povos (inclusive a geografia, mudando o nome do Golfo do México). Algo, como eu disse, muito primitivo. A história, é um pouco assustador constatar isso, de fato retrocedeu.