07 Novembro 2024
Para a historiadora Sylvie Laurent, o trumpismo faz parte de uma longa tradição estadunidense de sinergia entre capital e raça. Mas, este ano, uma vitória do candidato republicano abriria caminho para a implementação do seu projeto reacionário e autoritário.
A entrevista é de Christophe Deroubaix, publicada por L’Humanité e reproduzida por Alencontre, 05-11-2024. A tradução é do Cepat.
O que mudou do Trump de 2024 em relação ao Trump de 2016?
O personagem não mudou absolutamente nada, apenas aguçou sua violência retórica. A sua xenofobia, o seu ultranacionalismo, o seu desprezo pelas regras, pelo direito e pela civilidade, a sua amargura para com os adversários já estavam presentes em 2016. O que é realmente novo, na minha opinião, é que o conjunto das instituições e o pessoal que o rodeia hoje já não conseguem contê-lo.
Trump está agora totalmente preparado para capturar o Estado e implementar políticas reacionárias que apenas foram sugeridas durante o seu primeiro mandato. De muitas maneiras, isso foi evitado na época. Agora está armado com quadros, milhares de potenciais funcionários públicos, intelectuais, financiadores e uma parte significativa da classe capitalista, que convergem para a ideia de estabelecer uma contrarrevolução profunda graças a um Estado autoritário.
Em 2016, o Partido Republicano, o sistema judicial, as grandes instituições e os altos funcionários impediram o seu projeto, que, além disso, estava pouco estruturado. Hoje, a resposta a este tipo de resistência está pronta, que é todo o propósito do Projeto 2025 [da Heritage Foundation, conhecido como Projeto de Transição Presidencial, um documento de 900 páginas de propostas políticas ultraconservadoras]. Neste sentido, Trump é muito mais perigoso em 2024.
Podemos falar da fascistização do seu discurso, mas também do seu projeto de sociedade. O seu companheiro de chapa, J. D. Vance, é um ideólogo a serviço da ordem moral, da tradição, do culto ao líder e da violência política contra dissidentes e “desviantes”, ou seja, qualquer grupo social que não seja branco, heterossexual e cristão.
Em 2016, Donald Trump liderou uma campanha sobre posições anti-imigração e ao mesmo tempo fez um discurso heterodoxo, para os republicanos, sobre questões econômicas. Agora ele assume que o principal fator da sua campanha é a imigração. O que isto diz sobre a natureza do trumpismo e especialmente sobre a motivação do voto trumpista?
Lembro que tive muita dificuldade em 2016, quando foi lançado meu livro Pauvre Petit Blanc. Le mythe de la dépossession raciale (Édition de la Maison des Sciences de L'homme, 2020), para destacar o artifício do verniz trabalhista que Trump se deu. Todos repetiram exaustivamente que “as classes trabalhadoras deixadas para trás” tinham expressado um voto de classe. Era uma versão muito simplista da ascensão do demagogo.
Na realidade, ele é o campeão de uma pequena classe média, individualista, pressionada tanto pelo contínuo declínio do seu nível de vida como por um sentimento de perda de estatuto simbólico, uma vez que as mulheres e as minorias tomaram plenamente o seu lugar – embora num contexto ainda desigual – na sociedade. Trump oferece estatuto em vez de redistribuição material, vingança em vez de salários decentes. Além disso, embora Joe Biden tenha seguido uma verdadeira política de reindustrialização, a sedução exercida por Trump permanece inalterada.
Uma vez eliminado o verniz superficial do discurso de classe, no qual se considera apenas as classes trabalhadoras brancas, uma vez que só elas são favorecidas por Trump, tudo o que resta é o racismo grosseiro. Ouvimos isso ad nauseam nesta campanha: o ódio aos imigrantes e aos não-brancos é uma obsessão primordial.
Trump, Vance e as suas tropas já não falam apenas do muro para conjurar a ameaça da imigração ilegal, mas da “ocupação” dos Estados Unidos, que seriam invadidos por hordas com “genes defeituosos”, um “parasita” que expropriaria o homem branco até na cama. É um discurso do qual até o Rassemblement National desconfiaria hoje. Estamos, portanto, num registro que justificou a utilização do termo “fascista” para qualificá-lo. Só que aquilo com que estamos lidando não é de forma alguma importado da Europa. Este fascismo é endógeno!
Como assim?
Meu novo livro Capital et race. Histoire d’une hydre moderne (Éditions du Seuil, 2024) trata justamente da longa história do entrelaçamento entre capital e raça na América. A construção histórica do capital racial dos brancos neste continente e a supremacia dos proprietários brancos até muito recentemente nos Estados Unidos explicam por que a verdadeira democratização do país desde o final da década de 1960 com o voto pelos direitos civis, o fim da segregação racial e o acesso a bens públicos dos ex-párias, foi vista como uma injustiça. É o que os republicanos têm dito desde Nixon [janeiro de 1969 a 9 de agosto de 1974], e isso ressoa num país que foi construído sobre quatro séculos de dominação.
Trump interpreta, portanto, com a linguagem da decadência nacional, a realidade vivida por uma classe média estadunidense verdadeiramente empobrecida ao longo de quarenta anos de neoliberalismo e alienada por uma classe política em grande parte incapaz de conter as desigualdades e o empobrecimento da sua qualidade de vida. Retornar à supremacia branca é como retornar à sociedade de ordens antimodernas após a Revolução Francesa: a promessa de recuperar autoridade, hierarquia e grandeza.
Para os estadunidenses brancos sem diploma, cuja vulnerabilidade econômica e social é evidente, Trump é um realista: não há dúvida de que é mais fácil livrar o país de milhões de “indesejáveis” do que questionar a economia política geral. Acredita-se que a guerra interna (a deportação de 10 milhões de imigrantes ilegais e a neutralização dos “esquerdistas”) e a guerra comercial com a China sejam mais eficazes do que a tentativa de domesticar o capitalismo neoliberal decadente e a democracia de mercado, que são as verdadeiras razões da existência do sofrimento. O fato de Elon Musk, o homem mais rico do mundo e notório antissindicalista, ser cotado como o próximo ministro da Reforma do Estado diz muito sobre o niilismo em ação.
Donald Trump faz, portanto, parte de uma longa tradição estadunidense, cuja chave é a sinergia entre capital e raça?
Mesmo que o meu último livro não fale de Donald Trump como tal, ele descreve a longa gênese deste tipo de fantasia da criação dos Estados Unidos como um lugar de invenção do mundo a partir do nada, mesmo sendo um empreendimento de colonização, desapropriação de terras indígenas e estabelecimento ao longo de vários séculos de um sistema de democracia parcial onde apenas os brancos, os descendentes dos europeus, tinham o direito à terra e à riqueza.
Desde o fim da guerra civil em 1865, que tentou reescrever o destino do país rumo a uma maior justiça, as forças reacionárias e de volta às origens nunca desapareceram. Reativadas por diferentes figuras ao longo dos séculos, elas são, de alguma maneira, um fascismo latente, da Ku Klux Klan aos eugenistas, de George Wallace [três vezes governador do Alabama de 1963 a 1967, de 1971 a 1979 e de 1983 a 1987], que queria defender a segregação até à morte, à nova direita estadunidense, que hoje é muito poderosa.
Ao ressuscitar estas tradições, Donald Trump é o sintoma mórbido de um país que ainda está para repetir, sob a forma de uma farsa cruel, a sua grande guerra civil. Prometer a restauração do capitalismo autoritário concedendo imunidade aos poderosos e aos seus dependentes, caso sejam homens e brancos, é fazer parte da longa história do país que, desde o seu nascimento até o mundo pós-Segunda Guerra Mundial, garantiu acesso exclusivo a recursos e propriedades aos descendentes dos europeus.
Marx, que você cita com frequência nos seus livros, acreditava que quando as ideias se apoderam das massas, tornam-se forças materiais. A ideia da desapropriação do país, sentida por parte da população branca, está se tornando uma força material nos Estados Unidos, através do trumpismo?
Convém não subestimar o poder das ideologias. Os ressentimentos e as amarguras tornam-se, quando politizados, uma realidade tangível. O Partido Republicano organizou conscientemente a radicalização da sua base militante ao criar uma histeria em torno das questões do aborto, das armas de fogo, da sexualidade, da “criminalidade negra” e da imigração.
Após décadas de manipulação das opiniões públicas, enquanto a classe política consentia com o crescimento das desigualdades, as guerras intermináveis e a captura democrática pelas finanças privadas das campanhas, a situação tornou-se insustentável. Desde 2010 e o Tea Party [que surgiu no início da presidência de Obama no contexto da crise econômica que eclodiu em 2008], o Partido Republicano foi devorado internamente pela sua própria criatura: uma onda de extrema-direita centrada em questões culturais que se tornaram existenciais, inegociáveis, objeto de uma luta em que a própria democracia passará por perdas e ganhos. O homem desta criatura é Trump.
Você mencionou o trumpismo como a encarnação das contrarrevoluções. Isso nos permite também ver as revoluções em andamento: o movimento MeToo, as mulheres mais diplomadas que os homens, Black Lives Matter, os direitos LGBTQI+…
Martin Luther King, sobre quem escrevi uma biografia intelectual, disse: “Embora o arco do universo seja longo, ele se curva na direção da justiça”. Sua visão era menos idealista do que imbuída de uma necessidade histórica: nunca renunciar a pensar que a justiça está ao nosso alcance. Então, sim, você está certo: a emancipação do maior número de pessoas está em curso nos Estados Unidos. Passo a passo, mulheres, negros, muçulmanos, pessoas transexuais... estão criando um lugar para si e se fazendo ouvir. De certa maneira, a sociedade estadunidense é muito mais tolerante do que a sociedade francesa. Tolerância não é justiça, mas permite-nos organizar a luta para alcançá-la.
É evidente que existe uma espécie de preocupação em relação a estas mudanças recentes na paisagem social: muitos estadunidenses encaram-nas como uma decadência, como a indefinição das normas naturais. Trump estimula o masculinismo dos homens que se sentem ameaçados pelos novos direitos e liberdades dos outros, assim como estimula o belicismo contra a China que, à escala global, teria desafiado a hegemonia dos Estados Unidos. De certa maneira, o poder da reação é um tributo aos notáveis progressos, ainda longe de serem suficientes, no caminho do reconhecimento e da emancipação das mulheres e das minorias.
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“Donald Trump é o sintoma mórbido de um país que está para repetir a sua guerra civil”. Entrevista com Sylvie Laurent - Instituto Humanitas Unisinos - IHU