12 Abril 2022
"Pela sua peculiar difusão geopolítica, pela competição interna de teologias e jurisdições, pelo comprometimento com o nacionalismo, pelo vínculo com a tradição, hoje a ortodoxia aparece como um laboratório decisivo da relação entre religião, sociedade e liberdade", escreve Marco Ventura, professor de Direito canônico e eclesiástico da Universidade de Siena, em artigo publicado por La Lettura, 10-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O barco de linha vara as águas do Mar de Mármara em direção às Ilhas dos Príncipes. À direita, a costa europeia se afasta, a silhueta de Istambul se perde de vista. À esquerda está a costa asiática, Kadiköy, antiga Calcedônia, depois uma costa devastada pelo concreto. Os viajantes desembarcam na Ilha Heybeliada. No alto destaca-se o edifício que faz desta ilha, a grega Halki, um símbolo para os 200 milhões de ortodoxos do mundo. Desde 1844 a ilha hospeda a escola teológica que formou os quadros do patriarcado ecumênico de Constantinopla. O governo turco fechou-a em 1971 e desde então a luta pela sua reabertura resume as contradições de um cristianismo na corda bamba entre Oriente e Ocidente, nostálgico e visionário, tradicionalista e criativo, perseguido e imperialista, tanto mais dividido quanto mais ansioso por unidade.
O pequeno grupo que chegou a Kadiköy encontra Bartolomeu na capela do edifício. É o último dia 6 de fevereiro. Rodeado pelos monges que residem na ilha, por algumas dezenas de fiéis, o patriarca preside à Eucaristia dominical. Herdeiro da preeminência de Bizâncio, o patriarca ecumênico é o primus inter pares entre os patriarcas ortodoxos. Desfruta de uma primazia que sobreviveu sob o Império Otomano, mas sofreu oposição na Turquia kemalista, responsável pelo fechamento da escola da Halki, e na Turquia de Recep Tayyip Erdogan que há dois anos transformou em mesquita a basílica de Hagia Sophia.
Pressionado pelo governo turco, com um número cada vez menor de fiéis sob sua jurisdição, o patriarca ecumênico internacionalizou sua liderança e relançou suas prerrogativas. O clímax veio em 2018 com o reconhecimento da Igreja Ortodoxa Ucraniana como autocéfala, independente de qualquer outra autoridade eclesiástica e em particular do patriarcado de Moscou. O caso é hoje de interesse para uma opinião pública que se pergunta sobre as causas e desdobramentos da invasão russa, sobre o coração religioso desta guerra entre cristãos, sobre o conflito entre o patriarca ecumênico de Constantinopla e o patriarca de Moscou, que afinal é como dizer: sobre as trajetórias das Igrejas Ortodoxas.
Naqueles dias do início de fevereiro, duas semanas antes da eclosão da guerra, os especialistas que desembarcaram em Heybeliada trabalham na reabertura da escola teológica do patriarcado e se deparam com obstáculos e oportunidades que agora, dois meses e meio depois, interessam ao mundo. De fato, tornou-se evidente que as Igrejas Ortodoxas estão no centro de transformações fundamentais para o futuro de todos.
Pela sua peculiar difusão geopolítica, pela competição interna de teologias e jurisdições, pelo comprometimento com o nacionalismo, pelo vínculo com a tradição, hoje a ortodoxia aparece como um laboratório decisivo da relação entre religião, sociedade e liberdade.
A oposição entre a Ucrânia e a Rússia reflete a oposição entre dois mundos ortodoxos nos antípodas. Nesse sentido, o pedido de independência inclusive eclesiástica de Moscou resumia o percurso dos ucranianos. Longe de se sentir culpado por ter sancionado a divisão e, portanto, por ter contribuído de alguma forma para a guerra, o patriarcado ecumênico reivindica hoje o reconhecimento da autocefalia dos ortodoxos ucranianos.
Questionado por "La Lettura", o padre John Chryssavgis, um dos conselheiros mais respeitados do patriarca ecumênico, define o reconhecimento como "profético e oportuno". De acordo com a fórmula utilizada a esse respeito em várias ocasiões pelo patriarca ecumênico, "o povo ucraniano tinha o direito de pedir a autocefalia e o patriarcado ecumênico tinha autoridade para concedê-la".
Ideais e interesses, valores e manobras coexistem. Se no plano dos princípios Bartolomeu está próximo ao projeto democrático da sociedade ucraniana, ao diálogo com os católicos gregos e latinos no país, a uma liberdade religiosa levada a sério por Kiev, a ocasião foi propícia para que o patriarcado ecumênico credenciasse ainda mais seu primado moral e eclesiástico, e lembrasse que a própria Igreja Russa, a seu tempo, se beneficiou de um reconhecimento semelhante de sua autocefalia pela Sé de Constantinopla.
Fraco e forte ao mesmo tempo, o patriarcado ecumênico atual é fruto da integração europeia da ortodoxia grega e mais recentemente daquela romena, da diáspora ortodoxa nos Estados Unidos, da emigração na Europa Ocidental que fez da Itália o primeiro país da região por presença ortodoxa, e o décimo primeiro no mundo, bem como do crescente diálogo de Bartolomeu com o Papa Francisco e com o arcebispo anglicano de Canterbury.
Neste contexto, quanto mais amplo se torna o abraço de Constantinopla, quanto mais aumenta o claro-escuro, quanto mais se percebe o incômodo de romenos e sérvios pela influência dos gregos, mais pesam os interesses patrimoniais e financeiros em jogo, em particular em Jerusalém e Chipre.
O desafio é igualmente global e complexo para um patriarcado de Moscou cada vez mais definido pela oposição ao Ocidente liberal-democrático. Por um lado, a Igreja russa é protagonista de uma subjugação totalitária do cristianismo e da religião em geral, que remonta pelo menos à experiência soviética, incluindo o fechamento em 1997 da experiência de liberdade religiosa iniciada em 1990 por Mikhail Gorbachev e se coloca em continuidade com o plano de sinização das religiões na China de Xi Jinping.
O Patriarca Kirill é o homem criado em uma hierarquia eclesiástica parte integrante do sistema soviético, que mais tarde se tornou o chefe de uma organização não menos controlada pelo Estado na Rússia pós-soviética. Ele é, ao mesmo tempo, o homem que contribuiu a destilar a teologia e a filosofia que legitimaram o sistema. Coincidem o refém do poder putiniano e o artífice do sistema que produziu Putin, o patriarca feito prisioneiro e o patriarca que entrou sozinho na cela. Por outro lado, o patriarcado de Moscou é um terminal fundamental para a exportação pela direita evangélica estadunidense das guerras culturais que na Rússia foram recebidas, reinventadas e redistribuídas ao mundo. Contra o individualismo e a permissividade, pela tradição e pela família, o laboratório ortodoxo russo pôde assim encontrar o Islã e dar origem, entre outras coisas, à aliança com o Irã para a suposta proteção das minorias cristãs no Oriente Médio.
Se o patriarcado de Moscou se isolou na autorreferencialidade, em canais mantidos abertos apenas para falar e não para ouvir, como no Conselho Mundial de Igrejas, ou nas trocas com a Santa Sé, a Igreja russa também é circulação, empreendimento, movimento. Isso vale para a equipe oficial e ainda mais para a ortodoxia russa, que de várias maneiras se dissocia do patriarcado de Moscou. É o caso dos corajosos sacerdotes que na Rússia desafiam os bispos, cerca de dois terços dos cerca de 300 que em todo o mundo assinaram o apelo contra a guerra na Ucrânia, mas também daquelas comunidades, em particular aquela de Amsterdam, que escolheram um distanciamento sofrido de Moscou, ou da própria Igreja Ortodoxa Ucraniana que permaneceu nominalmente sob Kirill, mas se posicionou junto com as outras Igrejas Ucranianas contra a invasão.
Para todos os ortodoxos, a guerra entre cristãos na Ucrânia é um ponto sem volta, um momento histórico para seu laboratório do qual dependerá o destino de todos os cristãos e de todas as religiões. Na polarização entre Kiev e Moscou, em tudo o que não pode ser reduzido a ela, nada é mais crucial do que a relação entre fé e liberdade. O cristianismo, e de maneira extraordinária o cristianismo ortodoxo, a esse respeito tem recursos únicos, histórias únicas, sucessos e fracassos únicos e, portanto, uma responsabilidade única.
Os especialistas reunidos na Halki duas semanas antes da invasão russa tentam imaginar formas de reabertura da escola teológica, um passo simbólico que resume os desafios da nova ortodoxia global. Paira um grande medo de trair o passado, de perder o controle, de fornecer pretextos a adversários internos e externos. Mas o jogo está aí: construir novos espaços, apostar na força da fé quando ela é livre, confiar no testemunho porque é autêntico.
Já é noite agora. Os especialistas saem do prédio, no jardim passam ao lado da árvore plantada em maio de 1995, quando justamente ali foi realizado um seminário pioneiro sobre o meio ambiente. A preocupação de Bartolomeu pelo ecossistema parecia bizarra na época. Ironizava-se sobre o "patriarca verde". Agora, os líderes cristãos que denunciam o desastre ambiental da guerra e pedem uma virada nas políticas energéticas se inspiram nele. À medida que o sol se põe no Ocidente, as luzes na costa da Europa e da Ásia se acendem, a ilha desaparece. O barco se afasta no mar agitado.
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A guerra entre os ortodoxos. Artigo de Marco Ventura - Instituto Humanitas Unisinos - IHU