04 Abril 2022
Na entrevista concedida à revista America, o jesuíta canadense David Nazar, nascido em Toronto, mas de uma família de origem ucraniana, fala sobre o plano de fundo da invasão russa na Ucrânia. De 1996 a 2002, o padre Nazar foi provincial dos jesuítas na Província do Canadá Inglês. Depois serviu como provincial dos jesuítas na Ucrânia de 2002 até 2015, o tempo de maiores revoltas políticas no país. Em 2015, o Papa Francisco o nomeou reitor do Pontifício Instituto Oriental em Roma.
Nazar discutiu a história da interferência do presidente Putin na Ucrânia, o papel desempenhado pelo Patriarca Kirill e a Igreja Ortodoxa Russa no conflito e o recente encontro virtual do Papa Francisco com o patriarca.
Como reitor do Pontifício Instituto Oriental em Roma, o padre Nazar tem acompanhado de perto os eventos na Rússia, país que já visitou 15 vezes, e na Ucrânia. O Oriental veio na sequência da Revolução Russa de 1917 como uma escola de pesquisa e de alta educação para servir a todas igrejas orientais, católicas e ortodoxas, com atenção especial à Rússia. As igrejas ucranianas enviam muitos estudantes para estudar no instituto, especialmente desde o colapso da União Soviética em 1991. Hoje, os ucranianos constituem um dos maiores grupos entre o corpo estudantil. O padre Nazar permanece profundamente informado dos eventos na Ucrânia, como se pôde reconhecer durante essa entrevista, ocorrida um dia depois do encontro virtual entre o Papa Francisco e o Patriarca Kirill de Moscou e Toda Rússia.
A reportagem é de Gerard O’Connell, publicada por America, 30-03-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Comecei perguntando ao padre Nazar se ele havia previsto a guerra. “Ninguém viu a guerra chegando, mas tudo menos guerra, todo mundo sabia que já estava lá”, disse ele.
Ele explicou que Putin já tinha “uma longa história de interferência na Ucrânia. Sempre houve uma tentativa de suprimir qualquer coisa que cheirasse à independência por meio de comércio [táticas] bastante brutais e assim por diante. Por exemplo, se ele visse que a Ucrânia estava tentando se integrar à economia europeia, ele de repente proibiria que produtos lácteos e queijos entrassem na Rússia vindos da Ucrânia, como aconteceu em 2004-05”. Nos últimos anos, padre Nazar disse que houve ataques cibernéticos em diferentes partes do país. O objetivo de Putin sempre foi “colocar a Ucrânia de joelhos”, disse ele.
“Não há necessidade de interpretar as ações de Putin”, disse o padre Nazar. “Basta citar coisas que ele disse, como: ‘Não consigo entender por que os ucranianos querem falar ucraniano quando podem falar russo!’ Ele sempre procurou negar a identidade e a língua ucraniana. Ele denigre a Ucrânia referindo-se a ela como ‘pequena Rússia’”.
Ele lembrou que pouco antes do 60º aniversário do fim da Segunda Guerra Mundial, Putin declarou publicamente que “a maior catástrofe geopolítica do século XX foi o colapso da União Soviética”. Mas, disse o padre Nazar, “ninguém na Ucrânia, Polônia ou outros estados da antiga União Soviética acredita nisso”.
“A perspectiva política de Putin sempre foi clara”, disse ele. Ele lembrou que Putin tentou criar uma zona econômica dos ex-países soviéticos, mas a Ucrânia não quis fazer parte dela. A Ucrânia é o celeiro da Europa, rica em recursos agrícolas e minerais, bem como metalurgia e indústrias metalúrgicas, disse ele, e nos tempos soviéticos, a Ucrânia era responsável por 25% da produção total da União Soviética. Ele lembrou que o presidente Yanukovych suspendeu o Acordo de Associação Ucrânia-União Europeia em favor de laços econômicos mais estreitos com a Rússia, o que levou à revolta ucraniana na Maidan, Praça da Independência de Kiev. Putin enviou paraquedistas e atiradores de elite, e mais de 100 pessoas foram mortas, mas Yanukovych acabou sendo deposto.
Quando a revolta terminou, Putin anexou a Crimeia. “Foi aceitável porque uma grande porcentagem de sua população de dois milhões [pessoas] era russa”, disse o padre Nazar. O Ocidente impôs sanções que ainda estão em vigor, mas não impediram Putin.
Nazar reclamou que menos de um mês depois, Putin enviou os grupos armados russos para a região do Donbass no leste da Ucrânia, a qual é economicamente significativa pelos depósitos de carvão assim como uma zona de mineral e metalurgia. Dois cidades, Donetsk e Lugansk, “nós construímos do zero” durante o período soviético e povoado com os russos. Putin colocou os russos no comando do governo das cidades e depois alegou que queriam se separar da Ucrânia. Mas as pessoas nas aldeias na maior parte da região são ucranianas e querem continuar assim.
Putin afirmou em 2014 que enviou “mantenedores da paz” para as áreas supostamente separatistas de Donbass. Desde então, disse o padre Nazar, houve conflito na região, causando 15.000 mortos e incontáveis milhares de feridos e ainda mais deslocados.
“Os líderes ocidentais, ansiosos pelo comércio, sempre deram a Putin o benefício da dúvida”, disse o padre Nazar, “em contraste com a maioria dos líderes do Leste Europeu, que conheciam sua ideologia e nunca confiaram nele”.
A Ucrânia, por sua vez, “nunca perdeu o desejo de integração europeia, mas isso aconteceu principalmente no nível econômico”, disse ele. Eles também desejavam se juntar à OTAN como proteção contra a Rússia, mas isso nunca aconteceu.
Em 21 de fevereiro de 2022, o presidente Putin reconheceu formalmente as duas repúblicas separatistas em Donbass como estados independentes e, em 24 de fevereiro, ordenou a invasão da Ucrânia, chamando-a de “uma operação militar especial”.
“Putin calculou mal”, constata Nazar. “A identidade do povo é ucraniana. Eles resistiram no Donbass em 2014 e rejeitaram suas aberturas em Odessa. Agora ele está encontrando resistência total. Ucranianos preferem morrem a estarem sob domínio russo novamente”.
Ele disse que Putin tem um pequeno grupo de ideólogos em torno dele e que qualquer um que não tenha pensamento similar arrisca ser preso ou morto. O padre Nazar vê semelhança a Stalin na forma em que Putin se comporta e reclama que “Putin transformou Stalin de um vilão da história russa em um herói que criou a Rússia moderna e a fez grande novamente”.
Enquanto escrevo, milhares de pessoas estão sendo mortas, inclusive soldados de ambos os lados, assim como 135 crianças. Dez milhões de ucranianos estão sendo forçados a deixar suas casas devido à guerra, seis milhões estão deslocados internamente, e quase quatro milhões tem procurado refúgio em países europeus da vizinhança. Cidades, nas palavras do Papa Francisco, estão sendo reduzidas a cemitérios.
Apesar da morte, destruição e crise humanitária na Ucrânia, o Patriarca Kirill e a Igreja Ortodoxa Russa não denunciaram esta guerra de agressão, nem pediram um cessar-fogo. Pelo contrário, o patriarca apoiou esta “operação militar”; ele nunca chama isso de “guerra” ou “invasão”. Quando pedi ao padre Nazar que explicasse isso, ele respondeu: “Tenho muita compaixão pela Igreja Ortodoxa Russa porque, como tudo na Rússia, está sob o controle do governo. Para explicar isso de forma simples, às vezes digo que se Putin diz algo na terça-feira, o Patriarca russo tem que dizer a mesma coisa na quarta-feira, mas apenas colocando a palavra 'Deus' na frase.
O padre Nazar disse que “porque a Igreja Ortodoxa Russa, como Vladimir Putin, faz reivindicações absolutas a toda a Ucrânia, há pouca conversa frutífera entre essa igreja e todas as outras igrejas na Ucrânia. Reivindica uma autoridade que nunca teve. Na verdade, ouvimos Putin argumentar que a Ucrânia está tentando destruir a igreja russa na Ucrânia como um argumento adicional para a invasão atual. Ironicamente, com a invasão, Putin está destruindo a Igreja Ortodoxa Russa na Ucrânia”.
“A verdade é que pelo aventureirismo político de Putin, a Igreja Ortodoxa Russa perdeu muitas paróquias na Ucrânia”, disse ele.
Além disso, disse ele, “os apelos à paz” do Patriarcado de Moscou, “que os ucranianos devem aceitar porque aos olhos do patriarca eles são todos da mesma família étnica e religiosa, são apelos para aceitar a autoridade russa; não são apelos à justiça.”
Ele disse que tais apelos “na maioria das vezes não foram aceitos” na época da revolta de Maidan e especialmente com a anexação da Crimeia. “De fato, muitas paróquias ortodoxas russas do Patriarcado de Moscou na Ucrânia deixaram a comunhão ortodoxa russa e entraram na comunhão ortodoxa baseada em Kiev porque a identidade do povo é ucraniana, não russa”.
Ele acrescentou: “Ainda mais paróquias e dois bispos” mudaram sua lealdade depois que o Patriarca Ecumênico Bartolomeu I “tomou a decisão teológica e apropriada” em 5 de janeiro de 2019, que reconheceu e estabeleceu oficialmente a Igreja Ortodoxa da Ucrânia e concedeu autocefalia. (autogoverno). “Os ucranianos partiram em grande número na época” e “isso resultou na perda de influência da Rússia na Ucrânia”.
“Com a atual invasão, pela primeira vez, os líderes da Igreja Ortodoxa Russa na Ucrânia discordaram fortemente e publicamente do patriarca de Moscou e condenaram a injusta invasão russa de uma Ucrânia soberana e seu povo inocente”.
O padre Nazar disse que aprendeu “de fontes autorizadas” que 46% da Igreja Ortodoxa Russa está na Ucrânia. Além disso, “enquanto os ucranianos vão à igreja em grande número, em Moscou – entre aqueles que se dizem ortodoxos – apenas 2% vão à igreja no domingo, e isso se deve em parte a um certo descrédito da Igreja Ortodoxa Russa que remonta a [o tempo de] Dostoiévski”.
Ele explicou que “a Igreja Ortodoxa Russa sempre esteve muito alinhada com as autoridades na Rússia, fossem os czares ou aqueles que estavam no poder durante o período da União Soviética e agora com Putin”. Ele disse: “É uma igreja que administra cultos, mas não tem poder profético porque está sob pressão para estar absolutamente alinhada com o estado”. Além disso, “a Igreja Ortodoxa Russa recebe seu dinheiro do Estado, não do povo, e por isso não pode correr riscos, nem pode ser uma igreja profética”.
Além disso, ele disse que, embora Kirill, antes de se tornar patriarca, tenha passado muito tempo no Ocidente, suas declarações após a guerra “são ataques contra a democracia e o desejo de democracia da Ucrânia”, que “ele alega que leva a paradas gays e coisas do tipo”. O padre Nazar disse que tudo isso “apela a um certo sentimento anti-Ocidente na sociedade russa e à visão de que a corrupção vem do Ocidente”.
O Papa Francisco e o Patriarca Kirill conversaram juntos por 40 minutos, pelo Zoom, na tarde de 16 de março, um encontro que Francisco desejava muito.
De acordo com os comunicados de imprensa emitidos separadamente pelos dois lados, Francisco e Kirill discutiram em profundidade a situação na Ucrânia, o tremendo sofrimento de seu povo, a grande crise humanitária e a necessidade urgente de corredores humanitários. Significativamente, a declaração do patriarcado nunca usou a palavra “guerra”, enquanto a declaração do Vaticano citou Francisco usando a palavra muitas vezes. Ainda mais significativamente, não houve menção ao pedido de cessar-fogo.
Quando perguntei ao padre Nazar o que ele achava ser o motivo dessas omissões, ele respondeu: “Mesmo que Kirill quisesse dizer 'Vamos parar a guerra na Ucrânia', ele não pode fazer isso sem a permissão de Putin. Putin poderia prendê-lo se o fizesse, e uma parte do clero ortodoxo russo (talvez 30%) o repudiaria, e assim ele teria uma revolta dentro de seu próprio país e igreja.”
O padre Nazar acredita que “o patriarca Kirill [assume] riscos entre seus próprios fiéis ao falar com o papa porque cerca de 30% da Igreja Ortodoxa Russa na Rússia pensam que o papa é o Anticristo”. Ele lembrou que o encontro de Francisco com Kirill – o primeiro encontro entre um papa e um patriarca de Moscou – teve que acontecer em Havana, longe da Rússia, porque senão haveria uma enorme reação dentro da Igreja Ortodoxa Russa e especialmente entre os monges. Segundo a mídia russa, disse ele, por causa da reunião em Havana, cerca de 30% dos mosteiros não mencionavam mais o nome de Kirill na liturgia – “o maior insulto que você pode ter na Igreja Ortodoxa”.
“Então, foi preciso muita [coragem] para Kirill conversar com Francisco em 16 de março”, disse ele. “Ele assumiu o risco porque acreditava na abordagem amigável de Francisco e confiava que não iria constrangê-lo ou machucá-lo de forma alguma. Além disso, o fato de Francisco não ter chamado a Rússia ou Putin pelo nome permitiu que ele participasse da conversa”.
O padre Nazar sabe que algumas pessoas dentro e fora da Igreja Católica criticam a abordagem de Francisco e preferem que o papa condene Putin e a Rússia publicamente sobre a guerra na Ucrânia. Mas, disse ele, Francisco “está adotando uma abordagem diferente, que politicamente, no bom sentido, é hábil, astuta. Ele vem como um amigo, tentando encontrar um acordo com Kirill, de acordo com o Evangelho, diante do terrível sofrimento do povo ucraniano. Ele estava tentando convidar Kirill para alguma forma de colaboração diante dessa crise humanitária. Foi um convite bom e honesto, sem pressioná-lo”. Ele reconhece que “embora no fórum público nada de novo tenha sido dito, eu não desacreditaria o significado dessa amizade a longo prazo”.
Ele não espera que a mídia russa reporte as palavras do Papa apresentadas na declaração do Vaticano depois da conversa virtual com Kirill. Ademais, dado o que tem acontecido durante a guerra, ele não espera que o Papa Francisco e o Patriarca Kirill encontrem-se novamente tão logo. “Eu não estou dizendo que é impossível, mas eu acho difícil imaginar que tal encontro ocorra”.
Na sua opinião, Nazar acha que os ucranianos têm o direito de se defenderem. “Eu sou a favor das armas serem enviadas para a Ucrânia, porque como eles poderiam se defender? Se alguém está vindo para matar meus filhos, eu não posso apenas sentar e assistir”.
Ele não vê nenhum fim imediato à guerra “porque, devido ao seu orgulho, é muito difícil que Putin retire suas tropas. Mas isso ocorreu no Afeganistão, que talvez seja a melhor comparação para a situação de hoje”.
O padre David Nazar concluiu:
“O apoio moral e material da Ucrânia é chave, não apenas para a Ucrânia. Como Aleksandr Solzhenitsyn, romancista russo, dizia da União Soviética, é necessária uma pressão moral constante sustentada com medidas concretas, não guerra, para derrubá-la. A Ucrânia necessita de comida e recursos materiais e apoio militar para continuar sua batalha contra o agressor. Eu penso que seria um erro para outros países entrar em guerra sem ter sido atacado primeiro. O apoio internacional para a Ucrânia é, obviamente, crucial, e pode ter o mesmo efeito que teve sobre a Rússia na Guerra do Afeganistão”.
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“Putin está destruindo a Igreja Ortodoxa Russa na Ucrânia”, diz David Nazar, ex-provincial jesuíta no país - Instituto Humanitas Unisinos - IHU