04 Abril 2022
Andrej Kordočkin, nascido em Leningrado, estudou teologia em Oxford e, depois de um período de ensino em São Petersburgo, continuou seus estudos novamente na Inglaterra, onde ocupou-se simultaneamente do cuidado pastoral da comunidade ortodoxa em Glasgow. Durante vários anos, foi pároco da Igreja de Santa Maria Madalena em Madri e capelão nas prisões espanholas.
A reportagem é de Nuova Europa, 29-03-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
É preciso ajudar as pessoas a entenderem o sentido espiritual do que está ocorrendo: essa é a tentativa de alguns pastores ortodoxos hoje. Entre eles, está o padre Andrei, pároco em Madri, teólogo e secretário da Diocese da Espanha e Portugal do Patriarcado de Moscou. Existem vozes livres na Igreja russa que infundem esperança, enquanto a ideologia do “mundo russo” envenena as almas.
A expressão de uma dissidência é um fenômeno relativamente novo dentro da Igreja Ortodoxa Russa, mas há já dois anos havia circulado uma carta de expoentes do clero, que exigiam justiça nos processos contra os participantes das manifestações de protesto contra as fraudes eleitorais. Há um ano, apareceu uma carta sobre os acontecimentos na Bielorrússia. Como se explica esse fenômeno, já que tradicionalmente a ortodoxia sempre esteve ligada à autoridade constituída?
De fato, se olharmos para a história da Igreja Ortodoxa desde a época de Constantino, constatamos que ela quase sempre desempenhou um papel de sustento ao Estado, apoiando todas as suas iniciativas. E isso também vale para o século XX: o poder soviético instrumentalizou a Igreja e a usou para seus próprios propósitos. No entanto, desde o início dos anos 1990, um período nada simples, mas cheio de esperança, foi se constituindo uma nova geração de sacerdotes que não estão mais dispostos a uma submissão cega, a aceitar a censura e a autocensura.
Como você vê a evolução desse movimento de protesto no futuro? Essa tendência conseguirá influenciar a posição oficial da Igreja, que continua obsequiosa ao poder?
Com toda a probabilidade, também na Rússia, o que nos espera é o cenário bielorrusso, ou seja, o sufocamento de todas as dissidências. A Igreja faz parte da sociedade. Portanto, se a dissidência é sufocada dentro da sociedade, ela é sufocada também na Igreja. No entanto, tendo visto a queda dos regimes totalitários no fim do século XX, fica claro que essa política repressiva representa um beco sem saída. Lembro-me frequentemente do livro de Václav Havel, “O poder dos sem poder”, que mostra que pessoas que pareceriam desprovidas de possibilidade de ação, impotentes e fracas, ao contrário, são capazes de exercer uma influência na sociedade totalitária. Eu acho que os sacerdotes que agirão de acordo com a sua própria fé, de acordo com a sua própria consciência, apesar das repressões, serão ouvidos tanto pelo povo quanto pela Igreja.
O que você aconselharia aos sacerdotes que vivem na Rússia: vale a pena falar abertamente sobre as próprias posições, apesar do risco de incorrer até na reclusão?
Ninguém, muito menos um sacerdote, pode incitar as pessoas a irem receber multas ou cacetadas. Eu não acho que tenho o direito de dar conselhos, mas acho que um sacerdote – mesmo sem faixas e slogans – pode fazer muito para ajudar as pessoas a compreenderem o sentido espiritual do que está ocorrendo. Foi precisamente esse o caminho percorrido por muitos pastores nos últimos anos do período soviético. Quem repreenderia o padre Ioann Krest’jankin ou o padre Aleksandr Men’ por não terem saído à Praça Vermelha, por exemplo, quando a URSS enviou as tropas ao Afeganistão? Cabe a cada um decidir como realizar o seu próprio ministério pastoral. O padre Aleksej Uminsky, em Moscou, citou as palavras de uma canção de Grebenščikov, “ensina-me a respirar debaixo d’água”, e muitos as consideraram atuais na situação de hoje.
No entanto, vemos que o atual governo e os seus atos continuam tendo o apoio de grande parte da sociedade russa.
A condição da nossa sociedade não pode deixar de preocupar. Volta à mente a tese do estudioso estadunidense Anthony James Gregor, que alertava para o perigo do surgimento de uma ideologia fascista nos países onde o marxismo já havia passado. Nesses casos, o roteiro é sempre o mesmo: o pathos do internacionalismo é substituído pelo do patriotismo e do nacionalismo, pelo contínuo recurso à “missão particular” do povo e ao seu “passado glorioso”, ressoam apelos ao heroísmo, à disciplina e ao seguimento do líder nacional.
Além disso, gostaria de destacar a atração de Putin pelo filósofo Ivan Il’in, admirador do fascismo italiano e depois do nacional-socialismo alemão. Anton Barbašin, estudioso de Il’in, escreve: “Basicamente, ele defendia a necessidade de constituir na Rússia uma ditadura nacional que deveria se apoiar fundamentalmente no papel da Igreja e do exército (...) A sua filosofia se baseia no culto do povo russo e da sua excepcionalidade”. Tudo isso ganha nova vida diante dos nossos olhos, Putin convida a fazer uma “limpeza” dentro da sociedade, e até mesmo o termo “traidores da nação” que ele usou coincide com o de Hitler em “Mein Kampf”, Nationalverräter.
Qual a sua opinião sobre a ideologia do “mundo russo”, repetidamente enunciada por Putin?
Há mais de 18 anos, eu celebro em uma igreja cujos paroquianos são em sua maioria ucranianos. Para mim, dizer que “russos e ucranianos são um só povo” não faz sentido. Tal coisa só pode ser dita por uma pessoa que não conhece a Ucrânia nem a geração de ucranianos – também russófonos – que cresceram depois do colapso da URSS. Por que será que os moradores das cidades ucranianas não acolhem com flores os “soldados libertadores”? Por que será que milhões de refugiados do “povo que é um só conosco” tentam se salvar no Ocidente, e não na Rússia? A doutrina do “mundo russo” é perigosa, além de falsa. Com relação à Ucrânia, podemos traduzi-la assim: “Vocês não existem como povo. O Estado de vocês é um mal-entendido, e, como nós somos vocês, nós é que decidiremos o futuro de vocês”. Um objetivo irrealizável na realidade e, portanto, uma vitória impossível de se alcançar com a guerra. Mesmo que víssemos a resistência na Ucrânia aniquilada, a guerra já está perdida estrategicamente, e não há como apagar essa vergonha.
Que consequências a guerra terá sobre a unidade da Ortodoxia?
Quando foi criada a nova estrutura religiosa que recebeu a autocefalia de Constantinopla, apenas dois bispos da nossa Igreja passaram para ela. Agora, graças à guerra, mais de 15 dioceses ucranianas deixaram de celebrar o patriarca de Moscou e de toda a Rus’. E essa tendência centrífuga está se fazendo sentir cada vez mais distintamente.
Em uma entrevista recente, você disse que Putin é um homem sem compaixão. Ele pode ser considerado um cristão ortodoxo?
Não sei se você conhece os primeiros santos russos, Boris e Gleb, filhos do príncipe Vladimir. Há um vídeo da visita de Putin a uma exposição de Ilya Glazunov. Quando o presidente, junto com o artista, se encontra diante da representação dos dois, ele diz: “São personagens que cederam sem combater. Não podem servir de exemplo para nós”. E Glazunov concordou. Se Putin não compreende as razões de homens que se recusaram a derramar sangue fraterno, isso significa que, para ele, não existem obstáculos morais à vontade de tomar o poder ou de mantê-lo.
Há mais de dez anos, Putin havia se referido à concepção de alguns “teóricos do cristianismo”, segundo os quais a ortodoxia é mais próxima do Islã do que do catolicismo. Falando das possíveis repercussões de uma explosão nuclear, ele havia dito que, nesse caso, “nós, como mártires, iremos para o paraíso, enquanto eles morrerão, e ponto final”. Putin também admitiu que a sua infância em Leningrado lhe ensinou a regra: “Se a briga é inevitável, é preciso bater primeiro”. Em suma, a sua visão de mundo é mais semelhante à de um shahid, o mártir islâmico, do que à de Francisco de Assis. Nesse sentido, ele me parece perigoso não só para a coletividade ocidental, mas também para os russos, que têm outros projetos de vida além de virarem pó nuclear.
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"Estrategicamente, a guerra já está perdida", diz padre ortodoxo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU