25 Março 2020
"A esperança para esses tempos deve estar enraizada na capacidade de superar a cultura predominante do descarte, sustentada em uma visão individualista para seu próprio benefício e bem-estar. Se quisermos sair dessa situação, e não tenhamos dúvida de que o faremos, só vai ser juntos e traçando novas rotas", escreve Mauricio López Oropeza, secretário executivo da REPAM. A tradução é de Luis Miguel Modino.
Martin Buber, filósofo existencial, faz uma pergunta que me parece inevitável nestes tempos de pandemia: “Nos perguntamos sobre a esperança para este momento. Com isso, aqueles de nós que nos questionamos percebem isso não apenas como extremamente angustiante, mas também como um momento em que diferentes perspectivas não aparecem, em que o futuro não nos parece um tempo de clareza e elevação. E apesar disso, exatamente porque estamos procuramos uma perspectiva melhor, estamos falando de esperança”. Diante disso, de que esperança damos razão como crentes em Jesus?
Nestes dias, em apenas algumas semanas, a vida nos mudou drasticamente e decisivamente como conseqüência da pandemia deste COVID-19 que devastou nossa terra. É impossível não se sentir vulnerável nessa situação, especialmente devido à incerteza de seu verdadeiro alcance, às implicações que ela terá para nossa vida futura, que certamente experimentará mudanças de forma e substância, e as mulheres e homens que serão impactados por ela nos dias, semanas e meses vindouros. E ainda mais, é doloroso saber que muitos estão morrendo , mesmo diante de tantos esforços que são feitos no meio da fragilidade de todas as nossas instituições e estruturas em vigor na sociedade; e muitos outros continuarão vendo suas vidas extintas diante de uma situação que produz um sentimento de impotência.
Diante disso, é essencial tentar ler a realidade dos olhos de nossa fé para aqueles que creem em Jesus e oferecer, para aqueles que querem abraçá-la, a essência de nossa experiência de ser frágeis seguidores, pecadores redimidos, de um projeto Reino aqui e agora para o qual somos chamados a ser co-criadores. Um projeto que, no final, apesar das nossas limitações e do nosso curto horizonte, terá que dar lugar a uma nova sociedade de justiça, fraternidade e solidariedade, e esse é um processo atemporal no qual o que antes era considerado insignificante ou excluído será a pedra angular para tecer uma nova vida. Nisso, nossa esperança e o convite para transformar nossa realidade passo a passo, aqui e agora.
Nesse sentido, qualquer olhar para essa situação, que habita as entranhas da pandemia, deve estar na chave da esperança como elemento essencial. Sem ingenuidade, isto é, sem visões idealizadas ou alienantes sobre uma realidade inexistente, mas com a certeza de nos conhecermos chamados a ser participantes, dando uma resposta firme e consistente à conversão, com a fé que professamos, de acordo com nossa realidade e possibilidades particulares. Segundo os tempos, lugares e pessoas (chave do discernimento na tradição de Santo Inácio). Somos chamados a tomar consciência de que nossas ações farão parte do itinerário para sair adiante dessa crise em uma chave comunitária e de uma opção inevitável e inalienável para os mais vulnerados e vulneráveis de nossa sociedade, no momento desta pandemia e além dela.
Nossa esperança deve estar associada à inconformidade e denúncia das situações de pecado estrutural que se tornam mais visíveis nesta crise que cresce diante da obscena desigualdade planetária e da pobreza e oportunismo de muitos supostos servidores do povo em tantos níveis e espaços. A esperança para esses tempos deve estar enraizada na capacidade de superar a cultura predominante do descarte, sustentada em uma visão individualista para seu próprio benefício e bem-estar. Se quisermos sair dessa situação, e não tenhamos dúvida de que o faremos, só vai ser juntos e traçando novas rotas.
E, acima de tudo, nossa esperança não pode ser ingênua, sustentada por uma fé infantil que coloca tudo nas mãos de um Deus quase mágico; ou de um Deus que age como um juiz cruel, permanecendo alheio à nossa passagem pelo vale da morte e diante do qual Ele expressa uma preferência de alguns sobre outros, salvando uns e descartando outros.
Nossa esperança deve basear-se na certeza do mistério de Deus atuante e presente no meio de nossa realidade, apesar de nossa incapacidade de entendê-la ou percebê-la, e de que é uma presença que ganha vida nos menores e mais inesperados gestos de solidariedade e encontro, nas presenças que fazem a diferença entre a vida e a morte todos os dias, no amor cotidiano que emerge apesar da incerteza, nas decisões que fazem a diferença para quem mais precisa de presença ou palavra, na capacidade de reconhecer a necessidade de ficar em casa para não ser a causa de uma maior expansão do vírus e, a partir daí, as ações mais importantes de opção para cuidar da vida e dos mais vulneráveis-vulnerados.
Que essas mortes que não podemos evitar não sejam em vão, que fiquem registradas em nossos olhos e corações para acordar e que muitas outras e constantes mortes diárias não passem por nós. Que façamos tudo ao nosso alcance para reverter esse modo de sociedade de exclusão, dando lugar a uma nova sociedade de encontro e de corresponsabilidade existencial.
Diante dessa pandemia, precisamos de uma sincera esperança apocalíptica. Nestes tempos, inúmeros rios de tinta fluem com reflexões que nos roubam o verdadeiro significado do Apocalipse. Eles transformaram a mensagem da mais profunda esperança, aquela que supera toda a desesperança, aquela que decreta a certeza da vitória final da vida sobre a morte e da luz sobre as trevas, em uma triste narrativa de terror e fracasso. Apocalipse significa literalmente: revelação. Nos tempos de maior desolação, onde a morte parecia ter a última palavra e onde o mal parecia prevalecer, se apresenta a revelação de Deus em sua promessa absoluta de nunca abandonar seus filhos e filhas, e onde é expressa a irreprimível força de um Deus da vida que nos oferecerá um novo dia, e para isso ele nos chama a uma profunda conversão e à confiança absoluta que pede agir de acordo com o projeto do Reino.
A promessa de Deus garante que o mal e a morte injustificada nunca terá a última palavra, mesmo que pareça que elas tenham chegado ao topo. A promessa de Deus no Apocalipse é o ponto culminante do Evangelho, no qual a promessa de um Pai-Mãe tudo amoroso, garante-nos que Ele estará conosco até o fim dos tempos, e esse fim será de luz e esperança, portanto, de maneira alguma isso pode ser um fim.
Essa pandemia é um convite para acreditar irremediavelmente neste Deus criador, e em sua promessa de nos acompanhar, assumindo nosso papel de co-criadores, até sairmos dessa situação na chave da esperança. Porque: “Esta é a tenda que Deus instalou entre os homens. Ele acampará com eles; eles serão o seu povo e o próprio Deus estará com eles. Ele enxugará as lágrimas dos seus olhos e não haverá mais morte, nem luto, nem choro, nem dor, porque tudo o que é velho desapareceu. E aquele que estava sentado no trono disse: Faço novas todas as coisas. E acrescentou: Escreva que essas palavras são verdadeiras e confiáveis” (Apocalipse 21, 3-5).
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Viver a esperança em tempos de pandemia: um olhar apocalíptico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU