Caricaturizar a direita é simplificação analítica que não ajuda a compreender as carências sistêmicas que atravessamos. O Brasil pagou caro por não realizar uma justiça de transição após o fim da ditadura militar: “Se 1964 foi a tragédia, 2023 representa a farsa”
“Vivemos um tempo que engole estruturas mais rapidamente do que as ergue, e as pessoas não estão preparadas para essa mudança tão brusca”, algo que podemos constatar na constante crise do político e do próprio protagonismo da esquerda, bem como da emergência de uma nova direita que se constrói seus alicerces sobre categorias do medo e da inimizade. A análise é do historiador argentino Hernán Ramiro Ramírez em entrevista concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Radicado no Brasil há 25 anos, Ramírez lança um olhar conjuntural sobre o avanço da extrema-direita sobre a América Latina, nos contextos diferentes de cada nação, mas também sob a lente do segundo mandato de Donald Trump. Se desde 2007 os EUA perdem espaço para a China, as interferências norte-americanas se fazem sentir em nosso continente, como no caso dos ataques a petroleiros venezuelanos, além do tarifaço que Lula habilmente desativou, e das negociatas com Bukele, presidente de El Salvador, para conduzir as prisões privatizadas a serem ocupadas por deportados pelo ICE.
Ramírez afirma existir “uma circularidade na tragédia argentina, inclusive na esfera do econômico. Se existe alguma constante nesse país, certamente ela será de que no horizonte paira sempre uma crise. E isto se dá precisamente por outra característica da sua estrutura política, o voluntarismo.” No momento, Milei como uma caricatura de direita representa esse cenário. No caso chileno, o mote da campanha de Kast não foi uma volta às políticas neoliberais mais puras, mas o combate oportunista à insegurança. No caso brasileiro, Lula opera como uma espécie de “ambulância que recolhe feridos políticos”, comprovando sua habilidade não apenas em termos de política interna, mas de externa igualmente, como na condução a bom termo do tarifaço norte-americano.
Prof. Dr. Hernán Ramiro Ramírez
Hernán Ramiro Ramírez é licenciado em História pela Universidade Nacional de Córdoba, Argentina, onde cursou mestrado em Partidos Políticos. Doutorou-se em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS com a tese Os institutos econômicos de organizações empresariais e sua relação com o Estado em perspectiva comparada: Argentina e Brasil, 1961-1996 (Buenos Aires: Lenguaje claro Editora, 2007). De suas publicações, destacamos Ditaduras do Cone Sul da América Latina: um balanço historiográfico (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021) escrito em parceria com Marina Franco e O neoliberalismo sul-americano em chave transnacional: enraizamento, apogeu e crise (São Leopoldo: Edunisinos/Oikos, 2013). Leciona no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Unisinos.
IHU – Em um panorama geral, como analisa a situação do avanço da extrema-direita na América Latina?
Hernán Ramiro Ramírez – Confesso que tenho alguns pecados, a maioria veniais, o único capital é de ser historiador. Então, meu prisma sempre será ver que os fenômenos não são tão novos quanto pensávamos. Claro, por ser também cientista político sei que novidades emergem a cada tanto. Nesse sentido, vejo que o avanço de determinadas correntes não é algo nem tão novo, nem tão assustador. Muitas vezes fabricamos nossos próprios fantasmas. Em segundo lugar, correram rios de tinta e tem se chegado à conclusão de que temos direitas em plural e que elas correspondem a um espectro, muito mais fluído do que se pinta atualmente. E, em alguns casos, caberia se questionar se elas são extremas mesmo, pois, ainda que tendo tintas autoritárias, quase todas disputam o jogo democrático. Claro que Hitler também foi eleito, mas, neste caso, nenhuma delas chegou perto de algum regime autoritário tido como clássico.
Desta forma, compreendemos que esse avanço corresponde a um reacomodamento político que obedece tanto a questões estruturais, quanto conjunturais, algo que por óbvio no mundo acadêmico muitas vezes passamos por alto. O avanço das direitas em geral se enquadra na maioria das vezes como reativo, ocorrendo em função a um crescimento anterior em linha contrária. Desta forma, a Pink Tide provocou seu necessário refluxo.
A novidade neste caso estaria dada pela liderança que assume a direita mais radical em termos ideológicos, o que se explica também por questões estruturais ao próprio espectro. A direita clássica estava esgotada como resposta e, pior, desacreditada por fisiologismo, com enormes doses de corrupção. Basta ver o descrédito que apresenta o Congresso brasileiro para ter um termômetro deste fenômeno. Assim, líderes que se apresentam como outsiders conseguem rapidamente galgar espaço e aglutinar uma massa em torno de si, algo que não se explica apenas pelo uso de tecnologia mais moderna como arma política. Na realidade, o avanço dessa corrente se dá como uma resposta aos efeitos que a Modernidade trouxe socialmente, em particular a desestruturação econômica, submergindo camadas ingentes à precarização, assim como sociais em sentido amplo, pois o mundo que conhecíamos se transformou em algo não tão adorável, com desafios adaptativos que atingem a maioria de seus membros.
Aplicarei um pouco de autoetnografia. Em muitos contextos tenho que me policiar ao extremo para falar de determinados assuntos, observando as questões de gênero e étnicas, porque qualquer deslize poderia me causar problemas indesejados. Se isto acontece com pessoas que fazem da narrativa seu ofício, pensemos o que acontece com uma sociedade que possui um letramento com enormes carências. Para elas, terá menos custo se opor do que aderir a esse novo status quo, daí a origem da demonização à tal cultura woke como bandeira.
Não quero empregar o mesmo termo de Jessé Souza, que chamou essa revolta como a dos bastardos. Eu seria mais sutil: diria que seria uma revolta dos desempoderados. E, por isso, não é uma coincidência que o contingente maior de adesões a tais correntes esteja entre homens héteros brancos empobrecidos. São suas fragilidades existentes, e prementes, aquelas que os tornam seu público preferente, mantidos posteriormente por um efeito de adesão que o viés de confirmação pelo grupo lhes oferece.
Assim, o círculo vicioso se fecha, mantida acessa a chama ainda nas piores inclemências. Mesmo preso, o bolsonarismo continua vivo e, certamente, vai ter papel significativo no próximo pleito eleitoral, tanto pelos seus próprios méritos, quanto pelas fragilidades sistêmicas da direita, a que, novamente, não vai se amalgamar sozinha, pois não está na sua natureza estrutural.
IHU – Sob quais aspectos entende que há uma reatualização das categorias do medo hobbesiano e do binômio amigo-inimigo a partir de Carl Schmitt nesse contexto?
Hernán Ramiro Ramírez – O modelo neoliberal rompeu as correntes do homo oeconomicus, os laços de solidariedade social deram lugar aos instintos individuais. Mas essa libertação trouxe consequências: o indivíduo sozinho entrava numa selva assustadora, para a qual, a maioria não está preparado.
Quando o Muro de Berlim cai, não apenas se desmorona uma obra de concreto: a utopia rui com ele. E Francis Fukuyama decreta o fim da história, a entronização do livre-mercado como Deus absoluto, regido por sua mão invisível, mas que engorda e empobrece sempre os mesmos bolsos. Como nunca antes na história da humanidade, para parafrasear o maior líder brasileiro de todos os tempos, temos a maior concentração de riqueza, que se conjuga ainda com mazelas indizíveis. Estamos, assim, jogados aos instintos hobessianos, instintos esses que corroem os cimentos sociais mais firmes. O Welfare State, antes tido como esteira segura, hoje é visto como um maquinário do atraso. É aqui onde se ancora o medo smithiano. Ao ruir o mundo que nos dava conforto, os sofredores se revoltam contra aqueles que visualizam como supostos agentes dos seus infortúnios, confundindo, muitas vezes, causa com efeito. Algo tão comum até na própria Academia.
Passamos a buscar, como em tantos outros períodos históricos, bodes expiatórios que nos ajudem a exorcizar o presente. E sempre encontraremos no caminho algum caprino que possa se encaixar no arquétipo perfeito para expiar as nossas culpas. Assim, o sistema opressor fica inume a ataques, derivando o fogo em outras direções.
O problema da minha precarização não está no sistema capitalista, mas no sistema de cotas que dá oportunidades para segmentos obliterados. Lula, o nosso cientista político de cabeceira, ponderava que queria fazer política social com a mão visível do Estado. Metáfora que calça perfeitamente à realidade atual, o sistema tira muito mais com a sua mão invisível e o Estado compensa muito menos com a sua mão visível, mas, para o povo, que não sabe desses truques do mercado, apontará o dedo para o que vê, numa sorte de tomismo que podemos remontar além a Bíblia, mas que se aplica apenas à matéria.
Se observamos, vivemos um tempo que engole estruturas mais rapidamente do que as ergue, e as pessoas não estão preparadas para essa mudança tão brusca. Além da esfera do trabalho, a família “tradicional” construída por séculos se esmigalhou, já nem sabemos o nosso gênero, sociedades embebedas de machismo, racismo, classismo, têm que ser letradas à velocidade da luz para esse novo “credo”. Não por nada uma das bandeiras das direitas é a de proteção das escolas para que funcionem como uma sorte de escudo refratário. Se opor ao espantalho da “ideologia de gênero” funciona como uma luva em tal sentido.
Temos que extirpar os agentes patógenos que transmitem o vírus que causa a infeção. Soluções simples para problemas complexos, soluções que parecem racionais porque não se consegue entender o cerne da questão. A escola e os professores viram alvo por supostamente provocar a ruína de algo já em ruínas. A família tradicional não cai por causa deles, mas são eles que pagam pela culpa que não carregam.
Essa é uma particularidade que se observa em quase todas as esferas, a culpa tem que ser expiada e, geralmente, os mensageiros são os destinatários. Sabemos que o aquecimento global que já provoca inúmeras tragédias é fruto do desenvolvimento capitalista, mas muitos atiram dardos contra toda sorte de ambientalista que ouça expor com dados a dura realidade que não provocaram.
De todo modo, esse mecanismo racional não é de exclusiva autoria dos sujeitos, mas também uma construção social sistêmica. Décadas de educação neoliberal adormeceram o pensamento crítico e inculcaram o ensino instrumental, então, esses indivíduos possuem dificuldades em entender a lógica que existe por trás dos processos sociais.
Esse fato que chega ao paroxismo quando nos referimos à política. Quando do meu mestrado, a palavra de ordem era a crise do político, e isso se instaurou não como um efeito conjuntural, mas convertido em natureza estrutural. Vivemos em uma crise permanente do político, na qual, talvez, o único fator que se modifique seja seu grau.
No Brasil, a demonização do político teve seu epítome na prisão de Lula. Os políticos, quaisquer seja a sua cor, foram reduzidos a criaturas nefastas, geralmente corruptas. O que se endeusava eram os critérios meritocráticos, uma sorte de reinado dos tecnocratas que trariam neutralidade ou mundo parcial da política. E já vivemos uma era na qual um juiz ocupou a cadeira de Deus. Não podia ser menos, a mão invisível da Justiça era o correlato perfeito da mão invisível do mercado. Mas, assim como este não existia, vimos que a outra tampouco.
De toda forma, isto também era uma necessidade sistêmica: as políticas neoliberais, no longo prazo, são, necessariamente impopulares. Deste modo, seu domínio, de forma excepcional se dá pelo consenso, e, na maioria das vezes, se impôs como um estado de exceção. E mais, o próprio Hayek estabeleceu isso como justificativa para depor governos democráticos quando os considerava iliberais. Ou seja, quando contrariavam os preceitos do mercado, como aconteceu no Chile em 1973, regime que apoiou, e, mais recentemente, no Brasil, com a queda de Dilma Rousseff.
IHU – Qual é o risco de que, sob outras vestes, o fascismo se reconfigure e tome as rédeas das democracias através de mecanismos legais?
Hernán Ramiro Ramírez – Acredito que os conceitos são forjados historicamente e por isso não podem ser replicados muito facilmente fora deles. De todo modo, na Academia, temos certa dificuldade em categorizar fenômenos recentes, algo que aconteceu com as tentativas de enquadrar num vocábulo própria as nossas ditaduras civil-militares. Assim, por aproximação, usamos o termo fascismo para nos referir a estas novas experiências, que, diferentemente das outras, se enquadram nas margens democráticas e, até o momento, se limitaram mais a guerras simbólicas do que reais.
No entanto, temos que admitir que muitas delas flertam com tal possibilidade, em especial quando acuadas. Essa não é uma novidade, historicamente a direita tradicional apelou ao uso da força em diversas ocasiões na nossa história quando sentiam ameaçado o status quo, tendo dificuldades por estabelecer seu domínio de modo hegemônico.
Desta forma, não está sendo estranho de que grupos se aproveitem de frestas legais para capturar estruturas estatais e, assim, manter seu poder, deturpando um jogo verdadeiramente democrático. Isto se observa muito claramente no Brail, onde se deu um golpe parlamentar e, posteriormente, já no poder, a direita usou dessas estruturas para torcer a vontade popular. Igualmente vemos como esses grupos ainda controlam grande parte desse maquinário, que usam com esse propósito muito habilmente, mantendo grupos clientelares muito extensos, que tem sido sua pedra angular, principalmente, por ter uma grande coesão e capacidade operativa, algo que grupos de esquerda foram perdendo com o tempo.
Podemos falar que muita da força conquistada por essa direita se deve em parte pelo refluxo que a esquerda, particularmente a mais orgânica, teve nesse longo processo. De fato, a esquerda tradicional perdeu as ruas e, também suas, ferramentas de combate, num processo de oligarquização que afeta indefectivelmente todas as organizações. Ela perdeu terreno, métodos e até suas bandeiras, muitos dos quais foram apropriados pela nova direita. Hoje Gramsci mora mais entre as suas fileiras do que nas da esquerda.
Tampouco devemos nos esquecer de que o próprio direito é uma construção social. Não acredito demasiado no jus naturalismo, pois a democracia tem coexistido junto a diferentes regimes de submissão jurídica, como os Estados Unidos durante a escravidão ou mantendo a mulher fora ou de modo subordinado na política. Assim, leis podem ser feitas para manter tais regimes, podendo servir os Estados Unidos novamente de exemplo. Por essas terras existe um regime bicéfalo de administração, que se mantém com baixa adesão formal e com muitos mecanismos que impedem um jogo verdadeiramente democrático. Mais do que a sonhada poliarquia de Robert Dahl, o que temos é uma alternância formal num sistema altamente controlado desde dentro, muito bem descrito por Charles Wright Mills.
IHU – Tomando em consideração a “internacional fascista” em andamento, quais são as peculiaridades que percebe no contexto latino-americano atual?
Hernán Ramiro Ramírez – A organização internacional da direita é um processo que aconteceu como resposta à Revolução Russa de 1917, muito bem descrito como a Internacional Capitalista por René Armand Dreifuss. Mais recentemente, Johannes Grossman relançou a ideia como a Internacional Conservadora. De fato, a burguesia sempre esteve organizada de forma transnacional e se dividia em nações para dirimir interesses específicos de classe, mas foi com a praxis da esquerda que a direita se entrelaça além das fronteiras. Navegando no tempo, o Cone Sul da América Latina teve uma rede transnacional de repressão como a Operação Condor, incluso com um governo eleito como membro, caso do último peronismo de Isabel Martínez de Perón. E os próprios militares mantém nos regimes democráticos programas de treinamento comandados desde os Estados Unidos. Dessa forma, a circulação de indivíduos, ideias e até objetos entre os espaços não é algo que represente uma novidade, já que muitas vezes agem em rede. Muito antes do que as novas direitas, o neoliberalismo se difundiu e enraizou seguindo essa dinâmica. Inclusive, muitos dos seus membros são os que nutrem os quadros daquela.
O recente trunfo de José Kast no Chile nos fala desse entrosamento, que não é novo, remontando a muito antes do golpe de 1973, o que se visualizara em todos os golpes da região. Desta forma, uma característica dessa Internacional é a de amalgamar diversos segmentos que agem em esferas distintas, entrelaçados e assim obtendo sinergias. Nas suas primeiras etapas estava a burguesia, bem como agentes tecnocráticos (dentre os quais os militares era um dos principais) e do mundo religioso, primeiramente os católicos. Essa tríplice aliança será a sua base estrutural.
Neste momento, devemos assinalar como dado particular que os grupos católicos têm sido substituídos por contingentes evangélicos, motivados por uma mudança teológica de monta. A Igreja Católica deixou de flertar com os regimes autoritários, algo que se aprofundou no pontificado de Francisco, tendo em vista que a grei pentecostal passou a desenvolver justificativas teológicas como a Teologia da Prosperidade e do Domínio, que a vincularam mais fervorosamente com a etapa neoliberal e de novo aparelhamento do Estado pela religião. Basta considerar que no Brasil existe uma poderosa “bancada da Bíblia”.
Esses contingentes evangélicos deram diversos motes de grande potência, em particular a luta contra o dito “marxismo cultural”, focado mais especificamente na Escola de Frankfurt e Gramsci, alçados à categoria de novos demônios. Isso obedece a uma lógica racional clara, que é apontar contra as armas ideológica da esquerda. Desta forma, tal qual tinha feito Karl Marx com a lógica hegeliana, o demônio marxista é condenado, mas uma réplica de direita é construída como seu oposto, num jogo de espelhos perfeitos.
A condenação da luta política na base de ideologia passa a ser feita, em evidente paradoxo e, como não podia ser de outro modo, de forma ideológica. Tivemos, em tal sentido, o partido da “Escola sem Partido”. E se condena a ideia de alcançar a hegemonia por parte da esquerda usando meios hegemônicos por parte da direita, mecanismos pelos quais a nova direita conseguiu reverter a impopularidade da direita tradicional, fazendo seu movimento um movimento de massas e tendo líderes desse tipo, seja no mundo analógico ou digital.
Finalmente, devemos reconhecer que, se bem que a América Latina teve casos relevantes de criação ideológica genuinamente local, a maior parte desse arcabouço teórico é provida de modo externo à região. Isso ocorre seja pelo próprio neoliberalismo, pelas teorias religiosas até as estratégias e táticas políticas que essa Internacional difunde, tal qual tinha sido feito por outras internacionais em períodos anteriores. No final, as ondas anticomunistas têm varrido as nossas terras por mais de um século.
IHU – Nesse cenário, qual é a influência e a interferência de Trump no recrudescimento de novas formas autoritárias no registro da extrema-direita?
Hernán Ramiro Ramírez – Quando estabelecia a definição de que essa é uma Internacional capitalista antes do que conservadora, temos que considerar que os Estados Unidos estão em uma ferrenha luta pelo poder com toda uma sorte de países emergentes que disputam palmo a palmo o domínio mundial, coisa que jamais aconteceu desde que se arvoraram como potência hegemônica, sendo notadamente a China a nação que desponta com maior protagonismo e, portanto, o seu adversário mais perigoso. Desde 2007 o mundo capitalista mergulhou em um processo de crise constante, com os Estados Unidos perdendo cada vez mais espaço, enquanto a China se aproveitava dessa fraqueza para ocupá-lo. Assim, o desafiante foi ganhando musculatura e o que antes era visto com desdém, hoje merece exclamação.
A China possui cinco dos dez maiores bancos, sua rede de trens rápidos supera em grande escala a dos Estados Unidos, possui oito das dez cidades inteligentes mais importantes do mundo, quando seu principal concorrente está fora desse top ten. Até na Inteligência Artificial a China assusta aos EUA, algo que não era inesperado, dado que o país asiático registra a maior quantidade de patentes de inteligência generativa há mais de 15 anos, fruto de seu alongamento e adensamento acadêmico. Basta retomar o último ranking publicado pela revista Nature, no qual a China possui nove das dez universidades com o maior número de publicações de alto impacto.
Desta forma, todo presidente norte-americano, e não apenas Donald Trump, deve se importar para revigorar a hegemonia americana, algo que parece não ser muito fácil de alcançar. Mas, devemos reconhecer que foi Trump quem soube usar esse significante vazio, como falava Ernesto Laclau, com maior propriedade. Seu boné MAGA (Make America Great Again), não por acaso, passou a ser a sua principal bandeira.
MAGA é popular porque coloca o dedo exatamente na ferida dos Estados Unidos. Por um lado, a sua burguesia percebe que seu predomínio está em xeque, à vez que os trabalhadores de distintas áreas vêm erodir dia a dia suas condições de vida. Não é à toa que Trump conseguiu reverter, na sua primeira eleição, o histórico domínio democrata no Rust Belt (Cinturão da Ferrugem), hoje um fantasma decrépito do que alguma vez foi o centro do desenvolvimento americano. Desta forma, se aproveita desse Zeigeist (Espírito do tempo) para mobilizar tal descontentamento. A culpa pelo atual estado não seria a do modelo neoliberal, mas a concorrência da China, um país comunista. Assim, a China substitui a União Soviética nesta nova Red Scare (Pânico Vermelho) e serve, como todas as outras, para enquadrar os grupos subalternos nesta nova cruzada para recuperar as glórias passadas. Algo como se é bom para a Ford, é bom para os Estados Unidos. Subsidiar os tecnofeudalistas não é visto como dilapidação do dinheiro público, mas como ação patriótica.
Igualmente servem para o mesmo processo outros vieses autoritários, tal qual serviram em épocas passadas. Lutar contra esse inimigo externo não é suficiente, tem que se lutar também contra o inimigo interno, aquele que trabalha diretamente contra ou os que enfraquecem o corpus social de alguma forma – processos simbólicos que perpassam a história dos Estados Unidos desde a colônia e que pelas suas veias, como seu DNA constitutivo.
Os Estados Unidos fazem hoje um novo Destino Manifesto: propõem para si mesmos uma nova Doutrina Monroe a escala planetária. E Trump chama essa tarefa para si e não a delega como na administração de Joe Biden. Basta observar a fotografia da posse para ter essa leitura, a que se complementa com a entronização de Elon Musk, o arquétipo tecnofeudal por excelência, à frente do falido DOGE (Department of Government Efficiency). Não basta reestruturar a economia, tem que reestruturar o Estado e, em última instância, a sociedade como um todo.
Dessa forma, acontece uma limpeza social de todos aqueles elementos que são vistos como deletérios para essa nova realidade que está sendo construída. Inclusive se volta a limitar a liberdade com um caráter instrumental. A verdadeira liberdade é aquela que fará os Estados Unidos grandes novamente. As liberdades que enfraqueçam esse propósito serão vistas como nocivas e combatidas veementemente, com um retorno das perseguições que nos remetem aos piores tempos vividos por lá.
Migrantes, novos ou mais antigos, pensadores críticos, todos aqueles que ousam levantar a sua voz serão alvos desse massacre, que se torna brutal, e até fascista, porque se usa do Estado na sua força máxima com instrumento. E, dado o caráter de potência mundial, é um conflito que excede as suas próprias fronteiras.
A recente crise na Venezuela dá conta perfeitamente dessas intenções, onde uma frota trilionária de navios e aviões massacra pequenas embarcações na costa, numa “guerra” não apenas assimétrica, mas também pouco utilitária nos termos práticos. Demonstração de poder que se assemelha um pouco à exibida em tempos de Theodore Roosevelt, inspirada nas teorias do almirante Alfred Mahan.
IHU – A partir da vitória de Kast no Chile e o retorno do pinochetismo ao poder nesse país, o que se vislumbra desse governo em termos de retrocessos e alinhamento à Casa Branca?
Hernán Ramiro Ramírez – Apesar de que às vezes a história é pendular e até circular, não sempre se repete da mesma forma, nem tampouco na sequência imortalizada por Karl Marx. Por isso, alguns apontamentos devem ser feitos. Em primeiro lugar, há diferenças de matizes dentro da própria ditadura, ainda que pareçam algo impossível. O general Augusto Pinochet não foi a figura mais radical do regime, sendo antes visto como um legalista até pelo próprio Salvador Allende. Existiam muito grupos mais à sua direita, alguns liderados pelo general de aviação Gustavo Leigh, que foi expurgado em 1978, e outros que professavam um neoliberalismo de estilo austríaco, como Miguel Kast, seu irmão mais velho, que chegou a ser ministro e presidente do Banco Central de Chile, que processara ideias ultrarreacionárias na Constituição de 1980.
Igualmente, temos que considerar também que grande parte da Direita tradicional se atualizou com o retorno da democracia, mas volta a se radicalizar neste último giro, em um processo de fagocitose que aconteceu com quase todos os casos nacionais, desde o Brasil, até o do Chile, passando evidentemente pelo da Argentina.
Assim, o principal mote de campanha de Kast não foi o de um retorno às políticas neoliberais mais puras, o que certamente acontecerá, mas um combate forte à insegurança, algo que, como explicávamos, representa um sintoma, e não causa, mas que termina por se impor pela sua visibilidade como problema real, com o qual se angaria enorme adesão popular.
IHU – Bukele, em El Salvador, têm estreitado vínculos com Trump, sobretudo no que diz respeito à questão das deportações e aprisionamentos espetacularizados. Qual é sua análise sobre essa conexão entre os dois presidentes e a forma como tratam da questão imigratória?
Hernán Ramiro Ramírez – Bukele se localiza nesse quadrante, num equilíbrio de alto risco que deu certo. Com medidas iniciais como ancorar a moeda no bitcoin, encontrou seu norte no combate ao crime organizado, algo que é uma demanda tanto interna, quanto externa. No Brasil poucos sabem da existência das Maras, gangues que dominam as carceragens não apenas de vários países da América Central, mas também de Porto Rico e, pasmem, nos próprios Estados Unidos, de um modo que nós conhecemos bastante bem, mas com produtos autóctones.
Caracterizados pelas suas tatuagens em profusão, que lhes conferem um aspecto assustador e que servem também como identificação inequívoca e perpétua, tais grupos passaram a ser política de Estado quando saíram de controle, razão pela qual quem os enquadrara minimamente ganharia, de forma meteórica, enorme popularidade. Assim, as prisões de alta periculosidade que Bukele instalara servem como principal emblema dessa luta e conquista, tendo em vista que são excelente moeda de troca nesse mercado de commodities nos quais terceirizar o combate ao crime também é visto com simpatia. Quanto mais invisíveis e mais distantes estejam essas pessoas, maior a sensação de alívio que transpassa à popularização. No final das contas, não são “seres humanos”, mas bestializados os que se submetem a condições infra-humanas.
IHU – No caso da Argentina, como percebe esses anos de governo de Milei e quais são as possibilidades de oposição que surgem para o próximo pleito?
Hernán Ramiro Ramírez – Geralmente, nas Ciências Sociais somos ensinados a não emitir opiniões sobre objetos próximos, por questões de objetividade, mas como estou há quase um quarto de século no Brasil, considero que seja um tempo prudencial de afastamento. Este afastamento me permite opiniões que muitas vezes irritam meus colegas argentinos, sempre mais engajados politicamente. Embora seja essa minha principal fonte de saudades, o Brasil perdeu o intelectual de velho cunho em algum lugar do século passado.
Esse olhar que ainda tem um Emic muito forte, se faz com um Etic que permite visualizar fenômenos que, às vezes, os locais não enxergam. A Argentina há tempo está submersa em um círculo vicioso de crises e grande instabilidade econômica e política, com uma forte natureza estrutural.
O fim da ditadura por lá se deu por colapso: foi o país com menos renovação política posterior, algo que o diferencia profundamente de Brasil e Chile, onde seus objetivos refundacionais foram mais longe. Para piorar, seu lado repressivo do autoritarismo foi aquele onde esteve mais marcado, seja em números, ou no imaginário político, que carregou as tintas mas que também esqueceu de algumas questões centrais. Perón galga o poder através de um golpe de Estado, de corte fascista, com vários episódios de forte autoritarismo na sua longa existência. Lembremos que no seu último governo se produziram mais de mil mortes, cinco golpes de Estado estaduais (provinciais) e se assentaram as bases das práticas repressivas, com adesão à Operação Condor, como comentado.
Desta forma, o peronismo e até o mesmo Peron tinham duas faces, abrigando a extrema esquerda e a extrema direita, com lutas a morte entre seus dois extremos. Não é verdade que a máxima “de que para um peronista não existe nada melhor do que outro peronista” das Vinte Verdades Peronistas seja efetivamente verdadeira. Eles se digladiavam ao ponto de se matarem, algo que a democracia não reconheceu, visto o pacto que salvou a viúva de Perón da justa persecução penal.
Assim, cobram sentido as palavras de Jorge Luis Borges, quem dizia que “os peronistas não são bons, nem maus, apenas são incorrigíveis”. Há uma circularidade na tragédia argentina, inclusive na esfera do econômico. Se existe alguma constante nesse país, certamente ela será de que no horizonte paira sempre uma crise. E isto se dá precisamente por outra característica da sua estrutura política, o voluntarismo.
Domingo Faustino Sarmiento, outro grande intérprete, falava que para se tornar rico na Argentina era suficiente se sentar para ver as vacas parirem. A própria abundância muitas vezes gera a causa da sua própria decadência. Os agentes políticos assumem assim essa lógica: para governar é suficiente esperar que seu adversário fracasse, algo que ocorrerá inexoravelmente, dado a que existe uma certa fadiga de materiais.
Outrora um farol, a Argentina viu sua decadência também na produção eidética. A caricatura Javier Milei não é exclusiva do campo da direita: a Argentina é um celeiro de personagens caricatos que ocasionalmente atravessam os céus da política.
Eduardo Crespo qualificou o neodesenvolvimentismo argentino como naif, o que é uma definição precisa. Ainda que o kirchnerismo tenha tido seus lados positivos, na área econômica campeou mais voluntarismo do que ciência, em parte algo que herdava da própria forma na qual o peronismo histórico lidava com essa esfera. E a população, incluído o mundo intelectual, mordeu a isca não por consistência teórica, mas por desespero mesmo. Uma necessidade visceral de acreditar em algo, que é o principal alimento dos populismos. Assim, um líder lateral do peronismo, que tinha vegetado por décadas no âmbito regional é galgado a grande demiurgo.
Por isso, novamente, Javier Milei se levanta sobre essas ruínas e, convenhamos, não se precisa de muita estatura para se erguer por cima dos escombros. Milei representa também essa fadiga de materiais, ventríloquo das teorias austríacas, que encontra o significante vazio do desespero. Assim, vende a falsa ideia de ser antissistema, algo que perpassa a todos estes fenômenos.
IHU – Como analisa o protagonismo brasileiro na defesa da democracia, ao prender o núcleo duro do golpismo de 2022/2023?
Hernán Ramiro Ramírez – Jair Messias Bolsonaro é um preso por delay, condenado pelo conjunto da obra, ganhador do Oscar por ter sido a vida toda um enfant terríble da direita. Escrevi alguma vez que ele era um epifenômeno das mazelas brasileiras, mais do que as suas causas. Ele é produto da corrosão democrática, algo que Steven Levitsky e Daniel Ziblatt condensaram muito bem, mas que seu estudo remonta à crise do político da década de 1980.
Por sorte, neste caso, também operou o teorema da fadiga de materiais que apliquei para outros casos, inclusive para o próprio neoliberalismo, como fiz num texto premonitório de 2018 e aqui se aplica a máxima de Marx. Se 1964 foi a tragédia, 2023 representa a farsa. As tropas de Bolsonaro estavam mais próximas do Exército de Brancaleone, do que das hostes de Olympio Mourão Filho.
O Brasil pagou caro por não fazer uma Justiça de Transição. De todo modo, pelo fato de ter sido um arremedo de golpe este de 2022-2023, o custo por fazer cumprir a lei foi ainda muito baixo. Aos poucos, o Brasil entende que deve assumir o custo pela correção das suas mazelas históricas, que não vão se dissipar pela inércia gravitacional, algo que ainda parecia possível no governo de Dilma Rousseff, que cai também pela própria incapacidade de dar uma resposta política a um problema que era mais político do que institucional.
De todo modo, alguns méritos devemos reconhecer em Bolsonaro e na nova direita. Eles tiraram a política da morte térmica da pós-modernidade. Como é que se instala o debate sobre um tema tão complexo como a Lei Magnistky em um país tão extenso e com tão baixo letramento em tão pouco tempo se não é com uma potente mobilização?
A direita consegue mobilizar e instalar narrativas como a esquerda tinha feito no passado, aprendeu o ofício e será muito difícil que ele retroceda. Uma vez aberta a caixa de Pandora, é bastante complicado enjaular novamente os ventos que escaparam. O bode está na sala, pode estar preso, mas vai ser difícil de lhe tirar do espaço que conquistou por mérito próprio, até porque a direita tradicional não se reestrutura, faz parte da sua natureza se moldar às circunstâncias e, assim, vai continuar. O que mudará é o rei posto.
Caso se confirme esse cenário, teremos um refluxo em torno do progressismo daquelas forças e figuras que embarcaram por fisiologismo no bolsonarismo. Nesse contexto, Luis Inácio Lula da Silva é um agente ideal, porque sempre funciona como uma sábia ambulância que recolhe feridos políticos. Quem diria em 2016 que Gilmar Mendes terminaria sendo seu aliado? O “sapo barbudo” tem sido o mais hábil deglutidor de sapos que habitam o lamaçal da política brasileira.
IHU – Qual é a sua análise sobre o diálogo e negociações de Lula com Trump no episódio do tarifaço? Em que medida essa situação embaralha ainda mais o cenário da direita brasileira e implode as narrativas do bolsonarismo?
Hernán Ramiro Ramírez – E falando em sapos, o entrevero com Trump serve como exemplo paradigmático. Lula conhece a cadência da política internacional como um jogador de futebol: diante da confusão, esconde a bola, pensa e, depois, administra. Lula nunca agirá como afobado, nisso é melhor do que Maradona e Pelé juntos. E para que não me taxem de bairrista, inclusive os coloquei na ordem alfabética.
Lula sabe que Trump precisa do Brasil, mais do que vice-versa. O Brasil é ator central na América Latina e, agora, nos BRICS, assim que uma batalha em uma guerra geopolítica com a China tem peso enorme. Desta forma, como não se dá pérolas aos porcos, muito dificilmente um líder mundial dará de brinde um país como o Brasil para uma potência concorrente. E acho que até os próprios bolsonaristas sabiam desse calcanhar de Aquiles, apenas o desespero os levou acreditar nessa Quimera.
Mas cuidado: outro dos méritos do bolsonarismo está na sua enorme capacidade de resiliência, que já convertida em mística. Certamente estar nutrido por um bom contingente de evangélicos pentecostais colabora e muito nesse contexto. Em um mundo tão líquido como o nosso, a commodity mais fácil de substituir é a narrativa, até porque já não se necessita de comprovação empírica.
Esses grupos autocentrados possuem um forte viés de confirmação, do qual resulta difícil escapar. E, algo que não vejo como negativo, construíram laços de solidariedade que a esquerda antes tinha e que foi perdendo, defendem os seus de forma aguerrida, o que se observa claramente nos pedidos de anistia, assim como justificam suas faltas numa lógica na qual prevalecem os fins, antes do que os meios.
Isso não deixa de ser racional, ao seu modo. Por isso, lecionar e pesquisar em uma pós-graduação como a de Filosofia brindou-me com a maravilhosa possibilidade de ver como diversas lógicas coexistem, algo que com o monoteísmo científico da Modernidade nos parece ser impossível. As narrativas bolsonaristas podem parecer falsas desde o nosso ponto de vista, mas plausíveis desde outras perspectivas. Para quem tinha a vida ganha, o “fique em casa” parecia razoável, mas para quem tinha que ganhar o pão do dia, não. Para essas pessoas, apostar na roleta russa da Covid-19 fazia um certo sentido. E o bolsonarismo foi muito hábil em aglutinar aqueles anômicos sistêmicos que, no Brasil, são a grande maioria. Não é à toa que Bolsonaro assentou seu núcleo duro no Rio das Pedras, comunidade do Rio de Janeiro.
IHU – Neste momento, quais são as reflexões que o cenário de fragmentação da direita brasileira aponta para o pleito de 2026?
Hernán Ramiro Ramírez – A resposta a esta pergunta se depreende dos raciocínios anteriores. Poucos têm a grandeza de entregar um capital, no qual incluo o político, de graça, muito menos isso acontece com quem fez carreira flertando com as milícias, cuja estratégia é eminentemente predatória. Fato que se observa na delegação do poder pelo patriarca no seu filho mais dileto, ou aquele que soube melhor se ajustar às turbulências sem tanta afobação.
Por sua parte, não está na direita tradicional ter um projeto majoritário de poder consistente, resumindo sua ação a engordar nas beiradas. Não é acaso que o mensalão, orçamento secreto ou eufemismo que se coloque no seu lugar é uma prática tão arraigada, apesar de impopular.
Dividida a direita, o pleito acaba no primeiro turno. Resta saber se a direita tradicional vai precificar antecipadamente esse resultado, para o qual o desespero e a radicalização do núcleo duro do bolsonarismo farão valer a lei da gravidade, algo que Ricardo Bielchowsky apontara para a debandada do desenvolvimento na década de 1970.
A maior radicalização, os indivíduos menos radicalizados terão menores custos de reconversão para voltar novamente ao lulismo que, como demonstrara André Singer, é maior do que o petismo. Além disso, o presidente em exercício sempre concorre com o maquinário público ao seu favor e, vamos convir, a troca ministerial na comunicação do governo atual foi muito bem-sucedida.
Assim que, na hora de avaliar, como bem nos relatara Albert O. Hirschman, a equação entre custo e benefício, ao que tudo indica, penderá para Lula, se não houver uma tormenta perfeita que, por ora, está dissipada. Em termos populares, a direita tradicional não irá trocar o certo pelo duvidoso. Um político fisiologista feito e direito sabe que o afastamento do poder por apenas quatro anos pode ser seu decreto de morte e, pelo que sei, não são muito adeptos ao autossacrifício.
IHU – Quais são os maiores aprendizados que a esquerda brasileira construiu desde 2013?
Hernán Ramiro Ramírez – Já falamos do processo de oligarquização das forças políticas, mosca azul que inoculou com seu veneno as forças de esquerda, basta acompanhar a nominata dirigente de um partido ou um sindicato para essa constatação. Assim, sua resposta tem sido mais reativa do que ativa. Em um processo que se deu aos trancos e barrancos. Como falara Borges, nosso literato/filósofo de cabeceira, o que nos une às vezes não é o amor, mas o espanto. Então, pela primeira vez membros do PSOL integram a grade ministerial de um governo petista. Guilherme Boulos hoje é mais próximo do que Lula do que figuras históricas do seu partido. O PSOL também se voltou um pouco ao centro, por essa necessidade de unir forças que a conjuntura impunha.
Outra característica brasileira é de ter reações paquidérmicas diante de mudanças estruturais, e com a esquerda não seria diferente. Demorou a acontecer, mas uma luz no final do túnel se vislumbra. Se bem não temos uma repolitização semelhante do que o bolsonarismo mais duro, ela está conseguindo aglutinar e até se impor nos momentos decisivos. Já não perde, pelo menos empata e até vence nos acréscimos, vide as recentes mobilizações que conseguiram barrar a promulgação de leis chaves.
Falei muito deste assunto num recente artigo publicado na revista Utopia e Praxis Latinoamericana, da Venezuela. O nosso horizonte utópico foi destruído, a subjetivação neoliberal arrasou com ele, por isso a tarefa da esquerda remanescente é titânica, tem que levantar a pedra de Sísifo novamente e, para isso, precisará recuperar as suas velhas ferramentas, por ora perdidas. Processo no qual pode aprender com as novas direitas.
Hoje temos uma Internacional capitalista/conservadora. A nossa Internacional foi enterrada faz tempo. A velha luta cultural está mais para as margens do que para o centro. Além disso, despolitizamos o político, só para elencar algumas pérolas de um longo terço de possíveis lamentações. Do contrário, o resultado no Chile está à vista como exemplo paradigmático.
IHU – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
Hernán Ramiro Ramírez – Agradeço a oportunidade de poder falar, ainda mais de coisas tão candentes. Mas temo atordoar o leitor. Uma das características que faz dos historiadores seres profundamente pecadores é a de sermos prolixos. Mais do que fornecer respostas, a intenção destas palavras foi a de abrir interrogações. Nossa tarefa não é a de pontificar, dar algo pronto como um novo credo, mas mostrar a complexidade dos fenômenos que estudamos e das conjunturas pelas quais atravessamos.
De certo modo, oficiei como advogado do diabo. Enxerguei a racionalidade que existe nessas forças, muitas vezes caricaturizadas ao extremo, algo que pode ser útil no embate político, mas não acadêmico. Essa simplificação analítica pode ser perigosa, pois esconde e deturpa o fato de que a emergência dessa nova direita se dá precisamente pelas carências sistêmicas pelas quais atravessamos, inclusive da própria esquerda que não fornece, e às vezes nem sequer se interessa, em dar respostas a esses novos desafios.