Há dois séculos, foi proclamada a Doutrina Monroe. Ela estabeleceu a advertência do presidente James Monroe de que os Estados Unidos não permitiriam qualquer tipo de recolonização do continente americano por potências europeias. Mas, no final do século XIX, com o país consolidado como uma potência em ascensão, a doutrina recebeu interpretações conflitantes sobre qual ordem mundial melhor atenderia aos seus interesses e valores. Esse debate permanece relevante até hoje.
O artigo é de Reginaldo Nasser, professor livre-docente na área de Relações Internacionais da PUC-SP, coordenador do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (Geci) e pesquisador do Instituto de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os EUA (Ineu), publicado por Nueva Sociedad, nov/-dez de 2023.
A restauração das relações entre os Estados Unidos e Cuba e o Acordo de Paz alcançado na Colômbia foram os principais eventos que levaram o Secretário de Estado americano, John Kerry, a anunciar na Organização dos Estados Americanos (OEA) em 2013 que "a era da Doutrina Monroe havia terminado". Mais tarde, em seu afã de se opor ao governo anterior, tanto o secretário de Estado de Donald Trump, Rex Tillerson, quanto o então assessor de Segurança Nacional, John Bolton, exaltaram a Doutrina Monroe como um princípio orientador para as ações dos EUA na América Latina. [1] Por sua vez, o presidente Joe Biden, apesar de não mencionar a doutrina em questão, também trouxe suas divergências com o governo Trump para esse campo ao alertar que "a América do Sul não é quintal dos Estados Unidos" e, assim, rejeitar as tentativas de interferência nos assuntos internos dos países do Hemisfério Ocidental. [2]
Por mais de um século, a Doutrina Monroe foi considerada um símbolo glorioso da nação americana, com um status equivalente ao da Declaração de Independência. Mas, após a Primeira Guerra Mundial, o consenso entre as elites se desfez, e a doutrina passou a ser vista, principalmente por muitos membros do Partido Democrata, como um símbolo do intervencionismo militar americano no Hemisfério Ocidental.
Em todo caso, desde sua concepção em 1823 por John Adams – Secretário de Estado do presidente James Monroe – a doutrina sempre esteve presente, explícita ou implicitamente, nos debates sobre as estratégias de ação internacional dos EUA, e é surpreendente que ainda não tenha a relevância que merece na literatura americana dedicada à política externa.
A Doutrina Monroe surgiu durante o período em que os países latino-americanos reconheciam sua independência, e seu objetivo era frustrar quaisquer tentativas de recolonização do continente pela Grande Aliança, aquela aliança conservadora europeia comprometida com a manutenção da ordem e do status quo. O governo dos EUA declarou que não toleraria nenhuma tentativa das nações europeias de "estender seu sistema a qualquer parte do hemisfério" e acrescentou que qualquer movimento nessa direção seria considerado uma ameaça à paz e à segurança do continente. Invocando o princípio da reciprocidade, a mensagem também indicava que os EUA não interfeririam nos assuntos políticos europeus. [3]
Originalmente formulada como um princípio de política externa para garantir a soberania dos Estados, impedindo qualquer intervenção de potências extracontinentais nos assuntos do Hemisfério Ocidental, a doutrina assumiu uma nova dimensão após a emenda conhecida como Corolário Roosevelt, no início do século XX. No âmbito da reafirmação dos Estados Unidos como potência mundial, essa emenda, implementada durante a presidência de Theodore Roosevelt, permitiu que a doutrina justificasse o direito e o dever dos Estados Unidos de intervir nos assuntos internos das diversas nações do continente não apenas diante do risco de qualquer tipo de interferência europeia, como afirmava a formulação original, mas também nos casos em que o governo americano considerasse haver um perigo iminente de agitação política ou qualquer outro tipo de "desordem". [4]
Desde então, a doutrina incorporou um viés intervencionista em seus fundamentos, levando ao crescente uso internacional da noção de "esfera de influência" para descrever as relações entre os Estados Unidos e outros países das Américas. Dessa forma, a Doutrina Monroe tornou-se um exemplo notável de uma declaração unilateral de uma potência que afirma sua responsabilidade exclusiva sobre uma região mais ampla, estabelecendo um precedente para que outras nações façam o mesmo em determinadas áreas. [5]
Uma segunda modificação da Doutrina Monroe ocorreu depois que o presidente Woodrow Wilson declarou, em 22 de janeiro de 1917, que ela deveria se tornar uma doutrina mundial. Wilson entendia isso não como uma transferência do conceito espacial não intervencionista contido na formulação original para outras regiões do mundo. Pelo contrário, ele acreditava que esses fundamentos políticos não tinham fronteiras e poderiam ser implementados em qualquer canto do mundo sob a liderança dos EUA, com o objetivo de intervenção econômica e militar em outros continentes. Esse "excepcionalismo" americano se basearia, como veremos adiante, na combinação da Doutrina Monroe com outros princípios e doutrinas. [6]
Neste artigo, argumentamos que essas diferentes interpretações da Doutrina Monroe, feitas pelos presidentes Theodore Roosevelt e Woodrow Wilson, precisam ser compreendidas não, como frequentemente se faz, como supostos polos abstratos de uma falsa dicotomia entre isolacionistas e internacionalistas, mas sim como um conjunto de discursos e práticas da política externa dos EUA em torno de concepções antagônicas da ordem mundial. [7]
Theodore Roosevelt foi o primeiro presidente dos EUA a propor que seu país desempenhasse um papel de destaque na política internacional além do Hemisfério Ocidental. Sua intenção era evitar, por exemplo, a presença de uma grande potência na China que pudesse bloquear o comércio dos EUA com aquele país. Para tanto, buscou aliar-se à Grã-Bretanha para resistir à dominação russa ou japonesa no Extremo Oriente, visando, assim, um equilíbrio de poder. Roosevelt desempenhou um papel decisivo nas negociações que puseram fim à Guerra Russo-Japonesa (1904-1905), bem como no acordo entre a França e a Alemanha sobre a disputa pelo Marrocos (1905-1906). Ao assinar o Acordo Taft-Katsura (1907), o Japão concordou em respeitar a presença dos EUA nas Filipinas e, em contrapartida, os EUA se comprometeram a não obstruir a presença de tropas militares japonesas na Coreia. Em resumo, os EUA preservaram para o Hemisfério Ocidental seu "poder policial internacional" e seu direito de intervir em países que se mostrassem "instáveis", enquanto para outras regiões do mundo era necessário buscar um equilíbrio de poder baseado no reconhecimento da existência de esferas de influência. [8]
Após a Guerra Russo-Japonesa de 1904-1905, o representante especial do Japão em Washington reuniu-se com o Secretário de Estado Robert Lansing, delineando o que se tornaria a "Doutrina Monroe para a Ásia". Assim como os Estados Unidos desfrutavam de uma posição privilegiada no Hemisfério Ocidental, particularmente no México e na América Central, o governo japonês acreditava que seus "interesses especiais" na China e em outros países, como a Coreia e a Mongólia, deveriam ser reconhecidos, e expressou preocupação com a influência e/ou interferência de potências estrangeiras nessas áreas. Em 1905, o próprio Roosevelt chegou a expressar seu apoio a uma "Doutrina Monroe japonesa" na Ásia e a aceitar a justificativa de que o Japão estava "defendendo" o Oriente das incursões europeias. Posteriormente, dois Secretários de Estado consecutivos, William Jennings Bryan e Robert Lansing, reconheceriam oficialmente, em 1915 e 1917, a existência dos "interesses especiais" do Japão na China, particularmente nas áreas adjacentes às suas possessões. [9]
Para o filósofo e jurista Carl Schmitt, a Doutrina Monroe foi o primeiro exemplo da constituição de um Großraum. [10] E foi também o caso de maior sucesso, visto que essa doutrina, defendida pelos EUA como uma "expressão do direito inalienável à autodefesa", acabou por ganhar validade internacional após ser formalmente reconhecida no Artigo 21 do Pacto da Liga das Nações. De acordo com essa interpretação, a Doutrina Monroe forneceu um precedente para justificar tanto o Großraum alemão na Europa Central e Oriental quanto o Großraum japonês na Ásia, e, longe de ser um princípio abstrato ou difuso, o fez ao expressar limites territoriais reconhecíveis para sua aplicação. Após a invasão alemã da Checoslováquia em 1939, o então Ministro das Relações Exteriores do Reich, Joachim von Ribbentrop, argumentou que a ação do governo alemão nada mais era do que a aplicação na Europa dos princípios originalmente estabelecidos pela Doutrina Monroe, um exercício legítimo de poder dentro de seu Großraum, ou seja, uma ordem na qual o reconhecimento mútuo das esferas de influência deveria prevalecer, substituindo a ordem eurocêntrica tradicional. [11]
Durante as sessões da Liga das Nações, o Presidente Wilson cedeu às exigências de um grupo de congressistas americanos, na sua maioria republicanos, que insistiam na inclusão de uma disposição especial no pacto, receando que a Liga das Nações fosse incompatível com a Doutrina Monroe e pudesse obrigar os Estados Unidos a envolverem-se em conflitos fora do Hemisfério Ocidental. Esta proposta foi aprovada e resultou no Artigo 21: “Os compromissos internacionais, como os tratados de arbitragem, e os acordos regionais, como a Doutrina Monroe, que asseguram a manutenção da paz, não são considerados incompatíveis com quaisquer das disposições do presente pacto.” [12]
Assim, a proteção explícita da Doutrina Monroe no pacto e sua equiparação a outros acordos e compromissos internacionais levaram o Japão a reiterar sua reivindicação por uma doutrina semelhante para a Ásia. Em sua proposta à Assembleia da Liga das Nações, a delegação japonesa argumentou que o Japão era "responsável pela manutenção da paz e da ordem no Extremo Oriente". O Ministro das Relações Exteriores japonês, Uchida Kōsai, elogiou o pacto na medida em que previa o respeito aos "entendimentos regionais" e enfatizou que o Japão era a "espinha dorsal da tranquilidade nesta parte do mundo". [13]
Com base em todas essas demonstrações, poder-se-ia concluir que tanto os EUA quanto o Japão assumiram a responsabilidade de preservar a ordem regional e, consequentemente, a legitimidade para usar a força a fim de impedir qualquer interferência ou intromissão de outros Estados extrarregionais. Contudo, a posição predominante na Liga das Nações era a de que a Doutrina Monroe não poderia ser transferida para outros cenários geopolíticos sem a permissão e aprovação dos EUA. Portanto, apesar da constituição da Liga como uma organização global com princípios universalistas, ela não apenas se absteve de propor uma organização global do espaço, como também legitimou, em última análise, a concepção da ordem espacial do Hemisfério Ocidental estabelecida na Doutrina Monroe, garantindo assim o excepcionalismo dos EUA. [14]
Qualquer análise da Doutrina Monroe exige, para uma compreensão adequada, que consideremos as diversas maneiras pelas quais essa doutrina foi articulada com outras de seu tipo. O corolário da Doutrina Monroe, formulado em um momento de rápido crescimento do poder econômico e geopolítico americano, permitiu a incorporação de interpretações da Doutrina das Portas Abertas com o propósito de assegurar a expansão comercial e a resolução pacífica de rivalidades internacionais em regiões além do Hemisfério Ocidental. As Notas que formaram essa outra doutrina, formuladas em 1899 por John Hay, Secretário de Estado do presidente William McKinley, constituíram um momento decisivo na história das relações internacionais dos EUA e inauguraram um processo no qual tanto a política americana de "isolacionismo hemisférico" quanto o estabelecimento de zonas econômicas para o colonialismo operando na China seriam contestados. Em sua fase inicial, a política de Portas Abertas para a Ásia pode ser vista como uma primeira tentativa dos Estados Unidos de abordar as deficiências do sistema internacional baseado no colonialismo europeu. Argumentando sobre a necessidade de estabelecer regras baseadas na igualdade de tratamento para resolver conflitos internacionais, as Notas da Política de Portas Abertas promoveram uma abordagem segundo a qual a China deveria tratar todos os países e empresas estrangeiras de forma igualitária. [15]
A principal diferença entre a Política de Portas Abertas em relação à China e a Política do Big Stick nas Américas residia na forma como os Estados Unidos concebiam a ordem mundial. A Política de Portas Abertas de Roosevelt baseava-se numa avaliação realista das limitações do poder americano, sem comprometer o respeito pelas esferas de influência; isso porque era evidente que os Estados Unidos não possuíam os recursos militares necessários para implementar uma política baseada no uso da força na Ásia, ao contrário do que acontecia no Hemisfério Ocidental. [16]
Quando Roosevelt deixou o cargo em 1909, diversos políticos, analistas e empresários elogiaram seu Corolário do Hemisfério Ocidental como uma solução exemplar para a estabilidade econômica e política na região. O documento previa o comércio pacífico no hemisfério e benefícios substanciais para os Estados Unidos devido à sua proximidade geográfica com os mercados latino-americanos. Partindo das interpretações de Roosevelt e Wilson da obra de Frederick Turner, A Importância da Fronteira na História Americana, surgiu um novo conjunto de ideias, que, juntamente com a Doutrina Monroe e a Política de Portas Abertas, formou a principal força motriz da política internacional americana. Em termos gerais, o livro de Turner explicava a evolução da democracia e da prosperidade nacional como consequência da expansão para o oeste. [17]
A reinterpretação da Política de Portas Abertas surgiu como uma nova estratégia para um momento em que a expansão da fronteira oeste já havia sido concluída no final do século XIX, encerrando um modelo baseado na apropriação e incorporação territorial. Durante a campanha presidencial de 1912, Wilson parafraseou essa tese: “A marcha para o oeste alcançou agora a costa do Pacífico, e a trama se complica… Nossas indústrias se expandiram a tal ponto que entrarão em colapso se não encontrarem saídas livres nos mercados mundiais”. Assim, o mercado mundial tornou-se a nova fronteira para o sistema americano. [18]
O Secretário de Estado Bryan esclareceu periodicamente a vários setores da sociedade americana que a política do Presidente Wilson envolvia "abrir as portas dos países mais fracos à invasão do capital e das empresas americanas". Tais declarações, consideradas em seu contexto histórico, simbolizaram uma nova fase na aliança entre diplomacia e indústria, comércio e finanças, que resultou no desenvolvimento do capitalismo corporativo e sua expansão global. Embora a Doutrina das Portas Abertas enfatizasse a necessidade comum de todas as nações terem acesso equitativo às redes comerciais e empresariais, ela não mencionava a eliminação de medidas protecionistas em favor da produção nacional, o que teria exigido a abertura do próprio mercado americano a outros atores externos. A Doutrina das Portas Abertas de Wilson carecia da especificidade regional da Doutrina Monroe de Roosevelt e, portanto, seus defensores frequentemente entravam em conflito quanto aos objetivos estratégicos dos EUA dentro da estrutura do que constituía uma nova visão do comércio global.
A Primeira Guerra Mundial pôs em causa a validade da Política de Portas Abertas, mas Wilson procurou revitalizá-la com base na ideia de que já não era possível para os Estados Unidos permanecerem alheios às questões globais. O modelo que ele então propôs baseava-se no Artigo 3 dos Quatorze Pontos. [19] Ele enfatizou a necessidade de construir uma estrutura institucional para a resolução pacífica de conflitos e a promoção da igualdade de oportunidades comerciais. Embora a oposição no Senado tenha conseguido derrotar a proposta de Wilson sobre a participação dos EUA na Liga das Nações, a política de Portas Abertas persistiu nas administrações republicanas subsequentes, nas quais a função central da diplomacia passou a ser a promoção de oportunidades comerciais globais para grandes empresas exportadoras nacionais. Assim, por mais que o presidente entrante critique o anterior nessas questões, o fato é que todos aderiram à Doutrina das Portas Abertas e ativaram os princípios ideológicos básicos do acesso comercial, que eram, sem dúvida, de suma importância para a elite americana. [20]
Desde Wilson, todos os defensores da Política de Portas Abertas compreenderam que, em última análise, a ação internacional dos EUA deveria ser guiada principalmente por imperativos econômicos. Ou seja, a tendência inerente à superprodução e ao subconsumo exigia uma válvula de escape, forçando a busca por interesses econômicos no exterior, com o consequente envolvimento político e, como último recurso, a intervenção militar. A ausência de dimensões políticas em algumas vertentes do liberalismo americano levou à percepção de certa passividade, resultando na falta de uma política externa adequada.
O wilsonianismo promoveu uma transformação da Doutrina Monroe, que, em vez de se limitar a uma área geográfica historicamente definida, passou a reger-se como um princípio geral e universalmente concebido para a reforma da política mundial. A partir dos episódios envolvendo a China e o Japão, o uso da Política de Portas Abertas e a interpretação da "nova fronteira" na diplomacia passaram a expressar uma ideia de expansão econômica em áreas agrárias do mundo colonial, baseada na garantia da integridade territorial e da autogovernança.
Desde o fim da Primeira Guerra Mundial, os mecanismos legais e diplomáticos que regiam a aplicação de sanções econômicas foram apresentados à Liga das Nações como uma alternativa pacífica à guerra. Em um discurso à nação, o presidente Wilson procurou convencer o público de que o uso da economia como substituto da força militar era um poderoso instrumento da diplomacia internacional, capaz de prevenir com sucesso a agressão armada. [21] Para ilustrar esse ponto, ele citou o isolamento econômico como o principal fator que levou à rendição da Alemanha. Segundo Wilson, o boicote econômico era um "remédio pacífico, silencioso e letal" que poderia substituir a guerra. Desde então, o mecanismo de sanções tem tido uma história ambivalente: é ao mesmo tempo "pacífico" e "letal", "poderoso" sem o uso da força; diferentemente das ações militares, pode ser apresentado como civilizado, mas sua severidade pode se tornar insuportável. [22]
As ideias de Wilson foram incorporadas ao Artigo 16 do Pacto da Liga das Nações, que obrigava os Estados a impor sanções econômicas contra qualquer membro da Liga que recorresse à guerra de agressão ou conquista. A premissa era que as sanções econômicas teriam um efeito dissuasor, fazendo com que os países potencialmente agressivos reconsiderassem antes de empreender qualquer tipo de ação militar. [23]
A imposição de sanções a partir de 1919 sinalizou que a ordem internacional pós-Primeira Guerra Mundial carregava a marca liberal de inspiração americana, na qual a guerra econômica, subordinada às diretrizes de uma organização internacional, se opunha à "anarquia internacional" do mundo pré-Primeira Guerra Mundial. A ascensão das sanções estava, portanto, ligada a uma transformação mais ampla da guerra, do liberalismo e do direito internacional, e à emergência geral da nova ordem mundial que então se encontrava em seus estágios iniciais.
Ao longo de seus 200 anos de história, a Doutrina Monroe adquiriu diversos significados e implicações, dependendo do contexto histórico e dos interesses das forças políticas que buscavam justificar suas respectivas interpretações. Assumindo perfis de acordo com ideologia, teoria jurídica, cultura política ou geopolítica, a Doutrina Monroe foi moldada pelas circunstâncias, e os vários corolários a ela acrescentados possibilitaram interpretações a partir de perspectivas diversas, por vezes antagônicas. Todas essas adaptações e interpretações não apenas expressam diretrizes diplomáticas gerais, mas também revelam, em certa medida, as estratégias que as forças políticas concorrentes buscaram atribuir à política externa dos EUA. [24]
A Doutrina Monroe deixou claro que o Novo e o Velho Mundo deveriam ser mantidos como esferas de influência separadas e autônomas. Com Theodore Roosevelt, o corolário que leva seu nome estabeleceu uma interpretação dupla da doutrina: os Estados Unidos tinham o direito de intervir preventivamente nos assuntos internos de outros países do Hemisfério Ocidental, sob a justificativa de preservar a estabilidade e a ordem, ao mesmo tempo em que reconheciam esferas de influência em outras regiões do mundo com o objetivo de uma ordem mundial baseada no equilíbrio de poder, o que constituía uma abordagem realista para as relações internacionais americanas. Assim como Roosevelt, o presidente Wilson invocou a Doutrina Monroe como um modelo para uma nova ordem internacional, embora o fizesse no sentido oposto, rejeitando categoricamente propostas para reconhecer outras esferas de influência. A proposta de globalização da Doutrina Monroe, juntamente com a Política de Portas Abertas e os Quatorze Pontos de Wilson, tornou-se a base da teoria liberal em termos de internacionalismo; ou seja, os EUA deveriam assumir a liderança e exercer a responsabilidade de manter o mundo seguro, guiados por princípios capitalistas liberais. [25]
Em paralelo, a utilização da Doutrina Monroe como estratégia internacional não se restringiu às disputas políticas dos EUA, mas também foi explorada por potências emergentes que, em regra, sempre expressavam algum tipo de reivindicação e demanda em relação à ordem mundial vigente, o que inevitavelmente gera uma forte competição pelo controle de determinados territórios.
Em vez de criticar o intervencionismo associado à doutrina, não surpreende que a Rússia e a China tentem traçar paralelos com os EUA em suas respectivas áreas de influência regional. Se os EUA implementaram a Doutrina Monroe no Hemisfério Ocidental à medida que o país se desenvolvia como potência, outras potências reivindicam, explícita ou implicitamente, o direito a uma teoria semelhante para suas próprias esferas de influência. Ou seja, o direito de intervir militarmente em zonas de conflito onde a presença de "forças externas à região" representa uma ameaça comprovada aos interesses nacionais da potência regional.
Durante o processo de dissolução da União Soviética, diversos documentos políticos e memorandos escritos por assessores e analistas políticos foram publicados, nos quais a Doutrina Monroe era mencionada, sendo utilizada como argumento segundo o qual o espaço geopolítico da antiga URSS deveria ser considerado uma "esfera vital de interesse da Rússia". [26]
As disputas sobre o Mar da China Meridional tornaram-se um ponto focal das tensões regionais desde o momento em que a China declarou sua soberania territorial marítima sobre a área. Em maio de 2014, Xi Jinping explicou como seria a "Nova Diplomacia Asiática": "Em última análise, cabe aos povos da Ásia lidar com os assuntos asiáticos, resolver os problemas asiáticos e manter a segurança da Ásia. Os povos da Ásia têm a capacidade e a sabedoria para alcançar a paz e a estabilidade na região por meio de uma cooperação mais profunda", ou seja, cooperando entre si e sem terceiros. Diversos analistas consideraram a frase "cabe aos povos da Ásia lidar com os assuntos asiáticos" uma versão clara da Doutrina Monroe, dois séculos depois. [27]
Em um discurso proferido na Assembleia Geral das Nações Unidas sobre a questão ucraniana, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, alertou: "A famosa Doutrina Monroe está adquirindo alcance global", acrescentando que Washington está tentando expandir sua esfera de influência por todo o planeta. [28] De forma semelhante, em uma publicação recente, o Ministério das Relações Exteriores da China chegou ao ponto de afirmar que os EUA, sob o pretexto de promover a democracia, adotaram uma “Doutrina Neo-Monroe” na América Latina, instigaram “revoluções coloridas” na Eurásia e orquestraram a “Primavera Árabe” no Oriente Médio e no Norte da África, tudo com o objetivo de derrubar governos hostis ou não alinhados. Em suma, as grandes potências se baseiam em diversas interpretações da Doutrina Monroe para construir suas narrativas de reivindicação de direitos semelhantes, seja para garantir o respeito às esferas de influência, seja para rejeitar a doutrina quando esta é percebida como um instrumento da hegemonia estadunidense em diferentes partes do mundo. [29]
Um renomado historiador da política externa americana afirmou acertadamente que a Doutrina das Portas Abertas “é uma metáfora e, como todas as metáforas, deriva seu poder da fidelidade com que sua imagem retrata a realidade que busca descrever”. Ele também sustentou que, ao absorver variedades essencialmente diferentes de experiências ideológicas no campo de sua imagem, a doutrina tende a sufocar a análise e obstruir a formulação de novas questões. Poderíamos acrescentar que a Doutrina Monroe também pode ser vista como uma metáfora na qual todas as características mencionadas se manifestam, mas discordamos enfaticamente do autor quando ele afirma que a concepção ideológica que guia a doutrina meramente “oculta desvios ideológicos na política externa dos EUA e obscurece ainda mais escolhas difíceis”. Pelo contrário, e como tentamos argumentar, lançar luz sobre as diferentes interpretações das doutrinas e suas fusões expõe claramente não apenas as tensões e contradições históricas existentes na política externa americana, mas também as maneiras pelas quais outras potências fazem suas interpretações. [30]
Os argumentos de Wilson sobre as diversas doutrinas históricas dos Estados Unidos transformaram a maneira como o liberalismo concebia a relação entre geopolítica e economia internacional, favorecendo uma abordagem que se tornou hegemônica entre as elites americanas. A ameaça mais significativa à estabilidade internacional não era precisamente a guerra entre Estados, mas sim as potenciais consequências dos conflitos entre nações em termos do colapso das instituições que sustentam o sistema de comércio global. Para preservar a liberdade econômica do capitalismo global, o internacionalismo liberal passou a utilizar instrumentos econômicos como as novas armas da política internacional. Nesse sentido, apesar da ascensão, nos Estados Unidos, de forças contrárias ao internacionalismo liberal, ele permanece mais vivo do que nunca. Mesmo que tenha havido uma mudança significativa na retórica política sob o governo Biden, e especificamente um abandono dos apelos e incentivos a golpes de Estado tão característicos de Trump, o embargo a Cuba e as sanções econômicas contra diversos países não foram suspensos. O discurso pode até rejeitar formalmente a aplicação da Doutrina Monroe, mas não há grandes divergências quanto aos esforços feitos durante o governo Trump para combater a crescente influência econômica da China ou as áreas de influência que a Rússia reivindica para si na Europa Oriental. Em última análise, existe um consenso entre as elites americanas de que os EUA e seus aliados devem usar todos os instrumentos econômicos disponíveis para punir governos que desafiam sua hegemonia global ou que se aliam a outras potências como a Rússia e a China. Resta saber se as novas configurações da economia global e da ordem geopolítica ainda estarão alinhadas com as doutrinas expansionistas dos EUA.
1. Robbie Gramer e Keith Johnson: «Tillerson elogia a Doutrina Monroe e alerta a América Latina sobre as ambições 'imperiais' da China» em Foreign Policy, 02/02/2018.
2. Alonso Gurmendi: «Então, você trouxe à tona a Doutrina Monroe novamente…» em Opinio Juris, 21/1/2022.
3. "A Doutrina Monroe", 1823 [Versão em espanhol disponível aqui.]
4. “A injustiça crônica ou a magnitude das consequências decorrentes de um relaxamento generalizado das regras da sociedade civilizada podem, consequentemente, exigir, na América ou em qualquer outro lugar, a intervenção de uma nação civilizada; e no Hemisfério Ocidental, a adesão dos Estados Unidos à Doutrina Monroe pode, em casos de flagrante injustiça ou impotência, compelir os Estados Unidos, mesmo contra a sua vontade, a exercer um poder policial internacional.” Corolário Roosevelt à Doutrina Monroe, 1905.
5. Susanna Hast: Esferas de Influência nas Relações Internacionais: História, Teoria e Política, Routledge, Londres, 2016.
6. Tony Smith: A Missão da América: Os Estados Unidos e a Luta Mundial pela Democracia no Século XX, Princeton UP, Princeton, 1994.
7. Marco Mariano: «Isolacionismo, Internacionalismo e a Doutrina Monroe» em Journal of Transatlantic Studies vol. 9 No 1, 2011.
8. James R. Holmes: Theodore Roosevelt e a Ordem Mundial: O Poder Policial nas Relações Internacionais, Potomac, Dulles, 2006.
9. George H. Blakeslee: «A Doutrina Monroe Japonesa» em Foreign Affairs vol. 11 No 4, 1933.
10. Großraum significa literalmente "grande espaço" e se refere a "esferas de influência" ou "espaços geopolíticos". Tem como objetivo abranger uma área ou região, demarcando uma zona de segurança (no sentido de autodefesa) e possibilitando uma reivindicação ligada à soberania espacial que se estende além das fronteiras estatais.
11. Gerard Kearns: «Ecos de Schmitt entre os ideólogos do novo império americano» em Stephen Legg: Espacialidade, soberania e Carl Schmitt: Geografias do Nomos, Routledge, Londres, 2011.
12. S. Legg: ob. cit.
13. Margaret Mac Millan: A Guerra que Acabou com a Paz: O Caminho para 1914, Random House, Nova Iorque, 2013.
14. S. Legg: ob. cit.
15. Frank Ninkovich: Ideologia, a Porta Aberta e a Política Externa, Oxford UP, Oxford, 1982.
16. Michael Patrick Cullinane e Alex Goodall: A Era das Portas Abertas: A Política Externa dos Estados Unidos no Século XX, Edinburgh UP, Edimburgo, 2017.
17. Arthur Lima de Aviva: «Presentación» en F.J. Turner: «O significado da história» en História vol. 24 No 1, 2005.
18. Walter LaFeber: «A evolução da Doutrina Monroe de Monroe a Reagan» em Lloyd C. Gardner: Redefinindo o Passado: Ensaios de História Diplomática em Homenagem a William Appleman Williams, Oregon State UP, Corvallis, 1986.
19. "A remoção, na medida do possível, de todas as barreiras econômicas e o estabelecimento de condições equitativas entre todas as nações que consentem com a paz e se associam para a sua manutenção." "Os Quatorze Pontos do Presidente Woodrow Wilson", 8 de janeiro de 1918, disponível no Projeto Avalon, Universidade de Yale.
20. MP Cullinane e A. Goodall: também.
21. Iryna Bogdanova: Sanções Unilaterais no Direito Internacional e a Aplicação dos Direitos Humanos: O Impacto do Princípio da Preocupação Comum da Humanidade, Brill Nijhoff, Leiden, 2022.
22. Joy Gordon: Uma solução pacífica, silenciosa e mortal: a ética das sanções econômicas, Cambridge UP, Cambridge, 2012.
23. Nicholas Mulder: A Ascensão das Sanções como Ferramenta da Guerra Moderna, Yale UP, New Haven, 2022.
24. Gretchen Murphy: Imaginações Hemisféricas: A Doutrina Monroe e as Narrativas do Império Americano, Duke UP, Durham, 2005.
25. Henry Kissinger: Diplomacia, Simon & Schuster, Nova Iorque, 1994. [Existe uma edição em espanhol: La diplomacia, FCE, Cidade do México, 1995].
26. Gerard Toal: Near Abroad: Putin, the West, and the Contest over Ukraine and the Caucasus, Oxford UP, Nova York, 2017.
27. Steven F. Jackson: «A China tem uma Doutrina Monroe? Evidências de exclusão regional» em Strategic Studies Quarterly vol. 10 No 4, inverno de 2016.
28. «Lavrov: os EUA estão tentando transformar o mundo inteiro em seu 'quintal'» em Notícias, 25/9/2022.
29. Shirley V. Scott: «A Linha de Nove Traços da China, o Direito Internacional e a Analogia com a Doutrina Monroe» em China Information vol. 30 No 3, 8/2016.
30. Levin Gordon: Woodrow Wilson e a política mundial: a resposta dos Estados Unidos à guerra e à revolução, Oxford UP, Oxford, 1970.