06 Março 2025
Hoje, parece que a ideia de futuro foi monopolizada pelos bilionários. Nomes como Musk, Bezos e Zuckerberg imaginam amanhãs diferentes, na perspectiva do capitalismo tecnológico. O problema é que essas propostas, como as viagens interplanetárias, a imortalidade e outros temas que têm mais a ver com ficção científica do que com a realidade, estão voltadas para o 1% mais rico da população e podem ter consequências desastrosas para o planeta. Esta série de questões é esmiuçada pelo escritor e professor Michel Nieva em sua nova obra Ciencia ficción capitalista (Anagrama).
A entrevista é de Carlos Madrid, publicada por Ethic, 03-03-2025. A tradução é do Cepat.
Em que ponto a ficção científica e o capitalismo se juntam?
No meu livro, analiso como a partir dos anos 1970, em um cruzamento entre o ‘hippismo’ e a peculiaridade 'yuppie' das corporações californianas nascentes, o capitalismo tecnológico do Vale do Silício começou a parasitar os imaginários da ficção científica para estetizar suas mercadorias e dotá-las de capacidades futuristas fantasiosas. Eu chamo isto de ficção científica capitalista, um pouco inspirada no conceito de realismo capitalista de Mark Fisher.
Para ele, o fim do século XX foi marcado por um sentimento hegemônico de que não havia alternativa às políticas neoliberais de ajuste, ou seja, que era mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. A ficção científica capitalista é a fantasia de como o próprio capitalismo sobreviverá quando o mundo não existir mais, com a colonização de outros planetas ou a expansão das capacidades biológicas por meio da tecnologia, entre outras.
Uma ideia que já começou a ser desenvolvida com Júlio Verne.
Tomo um artigo seu que me parece arquetípico de uma tradição que é fundada depois. Nele, propõe que a literatura de ficção científica é como um estágio prévio de algo que depois será esculpido em aço. Pareceu-me interessante pensar isto como uma colaboração que se desenvolve depois, no que é chamado de ficção científica dura, com escritores que, como tinham uma formação técnica em engenharia e física, projetavam máquinas que depois vendiam para corporações. Algo que também teve a sua tradição na União Soviética.
É a essa ficção científica capitalista que bilionários como Musk se somam hoje. São os únicos que parecem fixar os olhos no futuro, transformando-se em gurus.
A grande eficácia discursiva de figuras como Elon Musk para convocar as maiorias é propor uma utopia e uma façanha carentes de qualquer tipo de ideologia política. Essas fantasias de levar a humanidade a Marte, como possível salvação às crises ecológicas da Terra, são muito eficazes por esse motivo: não há outras narrativas. Embora sejam irreais em certo sentido - o processo de terraformar um planeta como Marte levaria centenas de anos -, tornam-se uma espécie de crença para muitas pessoas no mundo.
O problema é que muitas dessas ideias, como a conquista do espaço ou a extensão da vida, só são possíveis para uma porcentagem muito pequena da população.
Em primeiro lugar, como eu dizia antes, essas propostas atraem muito porque são as únicas narrativas utópicas do nosso tempo. Segundo, porque combinam de forma muito eficaz o fascínio pela tecnologia de ponta com uma das estruturas mais arcaicas do Ocidente: o mito do patriarca que vai salvar a humanidade. Mas, claro, todo o poder dessas corporações e seus CEOs se tornou possível graças à imensa concentração de riqueza acelerada como nunca, a partir da pandemia de covid-19, quando uma minoria plutocrática passou a possuir mais que o dobro dos 99% restantes.
Vivemos em um mundo assediado por guerras, pobreza, crises sanitárias e climáticas, em parte devido a essa distribuição desigual da riqueza, mas esses magnatas propõem que só aprofundando essa desigualdade algo mudará. Um pouco disso fica claro na camiseta que Elon Musk usa há tempo e que agora reavivou nos comícios pró-Trump, que estampa “Occupy Mars”, uma zombaria direta às reivindicações do “Occupy Wall Street” que surgiram após a crise financeira de 2008. Esses personagens não são de modo algum movidos pelo espírito filantrópico, mas pela megalomania e o desejo de continuar concentrando poder e riqueza.
Isso pode ser visto muito bem na estética dos astronautas da SpaceX, muito mais estilizada que a da NASA. O que Musk está querendo dizer com isto?
Esse foi um dos motivos que primeiro me chamou a atenção. A NASA é uma agência militar na qual tudo supostamente responde a uma funcionalidade específica. Não como nessas empresas, onde tudo é mais estilizado e possui referências ficcionais de filmes ou de bandas pop. Por exemplo, o desenhista dos trajes da SpaceX é o mesmo que projetou os capacetes do Daft Punk e muitos personagens da Marvel. É o que também se vê em produtos da Apple, onde parece que não existem cabos e tudo está flutuando.
Tudo isso tem a ver com a hiperestilização do imaginário espacial, o que está relacionado à sua privatização. Uma ideia de que estamos vivendo no futuro: um amanhã que apenas 1% da humanidade desfrutará.
Transportar o mesmo modelo para outro planeta é a solução?
Por um lado, esse capitalismo é muito criativo com sua instrumentalização da ficção científica para multiplicar narrativas tecnoutópicas, mas, por outro, é muito monótono e necrótico nas formas como imagina fazer isso: acelerando os mecanismos de produção e consumo de carbono que desencadearam a atual catástrofe climática.
As características de Marte que o tornam inabitável são, entre outras, a ausência de atmosfera e as temperaturas congelantes. Os planos de terraformação como os de Elon Musk propõem transferir os mecanismos poluentes da Terra para o planeta vermelho, para que os gases do efeito estufa formem uma atmosfera, aqueçam o local e derretam a água dos polos. Ou seja, destruir outro planeta quando acabarem com este.
Se ficam com a utopia, há alternativas?
É mais urgente do que nunca que grupos de esquerda, ambientalistas e progressistas pensem em novas formas de produção e uso da tecnologia fora do monopólio da China e dos Estados Unidos. Penso que vivemos uma época na qual a IA transformará drasticamente o que entendemos por trabalho intelectual. Está na hora de pensar formas de renda básica universal associadas a aplicativos móveis com regulação pública, que rompam com o monopólio atual da tecnologia.