Segundo os economistas, o endividamento público e a emissão de moeda serão os recursos usados no mundo todo para enfrentar a crise econômica e social gerada pela pandemia de covid-19
Com a reabertura gradual dos setores produtivos depois de dois meses de distanciamento social, a questão que se coloca no momento “é como será o pós-coronacrise” do ponto de vista econômico e social, pontua o economista Guilherme Mello à IHU On-Line. Segundo ele, a recuperação da economia vai depender de dois fatores: da dinâmica do próprio vírus, que poderá exigir o retorno ao isolamento social ao longo do ano, e da capacidade do Estado de coordenar as áreas econômica e social, induzindo o investimento pós-crise. A intervenção estatal, assegura, será fundamental na recuperação econômica do país. “Caso o governo decida reduzir o endividamento público rapidamente através do corte de despesas públicas, haverá um enorme risco de que a recessão momentânea se torne uma depressão prolongada. O setor privado deve sair muito enfraquecido dessa crise, endividado e sem receitas, o que o tornará ainda menos capaz de promover uma retomada sustentada do investimento em uma economia debilitada como a brasileira”, afirma. O economista diz ainda que “é possível e desejável que no pós-crise se discuta uma reforma tributária com um duplo objetivo: para recompor a arrecadação perdida desde a crise de 2015 e para cobrar imposto dos muito ricos, que hoje pagam muito pouco em relação a sua renda”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o economista Arthur Welle também analisa o impacto da Medida Provisória - MP 936/2020 tanto para os trabalhadores que tiveram contratos de trabalho renegociados, quanto para a economia de modo geral. De acordo com ele, o governo federal poderia ter feito uma reposição integral da massa salarial perdida durante a crise pandêmica, porque o custo mensal do programa de auxílio emergencial não seria muito diferente do atual, que varia entre 0,2% e 0,6% do Produto Interno Bruto - PIB. “Nota-se que estes valores são relativamente pequenos se comparados ao PIB. O custo mensal do programa de auxílio emergencial varia de 0,2% a, no máximo, 0,6% do PIB. Não seria um passo muito maior se o governo se dispusesse a fazer a reposição integral da massa salarial perdida, o que ajudaria a conter as consequências econômicas da crise”, argumenta.
Welle apresenta três cenários que simulam os possíveis impactos da MP na economia. Num cenário mais realista, em que os setores serão afetados diferentemente pela crise, com reduções de jornadas e salários igualmente diferenciados, é possível que haja uma queda da massa salarial de 17%. Em valores absolutos, explica, “o montante total de redução de dinheiro na economia varia entre R$ 7,4 bilhões e R$ 21,7 bilhões por mês, a depender do cenário em questão”. Essa redução terá um impacto significativo na economia doméstica. “A renda dos trabalhadores é o que cria capacidade de consumo e, portanto, a demanda para os produtos e serviços que são ofertados pelas empresas. Deste modo, esta redução abrupta nos salários privados faz com que as famílias consumam menos produtos e serviços. As empresas, em especial as pequenas, sofrerão diretamente pela redução da massa salarial. Vale lembrar que no Brasil o consumo das famílias responde por 65% do PIB sob a ótica da demanda”, conclui.
Guilherme Mello (Foto: CBN)
Guilherme Mello é graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo - USP e em Ciências Econômicas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. É mestre em Economia Política pela PUC-SP e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, onde leciona atualmente e dirige o Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica do Instituto de Economia - IE/Unicamp.
Arthur Welle (Foto: Twitter)
Arthur Welle é graduado em Economia e em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp e mestre em Relações Sociais pela Unicamp, onde atualmente é doutorando em Teoria Econômica.
IHU On-Line – Antes de entrar na questão conjuntural econômica brasileira, poderia explicar do que se trata o “resfriamento controlado” da economia, expressão usada em vários países para a projeção econômica em tempos de isolamento social?
Guilherme Mello - O coronavírus exige um severo isolamento social para evitar que a pandemia assuma rapidamente proporções que os sistemas de saúde são incapazes de lidar, mesmo os mais consolidados e universais. Neste sentido, a paralisação de diversos setores produtivos, tanto industriais quanto de serviços e comércio, provoca uma espécie de “parada súbita” dos circuitos de renda. Ou seja, com os estabelecimentos fechados, as empresas não têm receitas e são incapazes de pagar salários, promovendo um aumento exponencial do desemprego.
A ideia de “resfriamento controlado” da economia deriva da certeza de que uma ruptura recessiva dessa natureza e alcance não pode ser enfrentada pelos mecanismos de mercado. Há a necessidade de intervenção do Estado, de coordenação pública, para evitar uma profunda ruptura nos elos econômicos e sociais. É por isso que os Estados, se valendo de diferentes instrumentos, têm atuado no sentido de garantir a renda e o emprego das famílias, assim como de financiar e reduzir os custos (impostos, dívidas, salários etc.) das empresas.
São medidas muito diversas daquelas que estamos acostumados a presenciar durante crises financeiras como a de 2008, onde o foco da atuação do Estado se concentra na garantia de liquidez e solvência do setor financeiro para evitar uma crise de crédito, que costuma ter consequências devastadoras no capitalismo. No caso da coronacrise, além de garantir a liquidez do sistema financeiro através da estatização dos ativos financeiros privados, há também a necessidade de estatizar parte dos fluxos de renda, de forma a impedir a paralisação total das empresas e o desemprego em massa. Sendo assim, o resfriamento controlado da economia é uma forma de se referir a esse processo de intervenção do Estado voltado para impedir que a recessão momentânea se torne uma depressão permanente.
IHU On-Line – Em linhas gerais, do que se trata a Medida Provisória 936/2020? Como ela afeta empresas e, particularmente, trabalhadores?
Arthur Welle - A MP 936/2020 está inserida no âmbito das medidas adotadas pelo governo brasileiro para atender a necessidade de redução dos custos de folha salarial das empresas. Ao mesmo tempo, ele busca preservar os empregos dos trabalhadores formais que aderirem ao acordo proposto na MP. O acordo é basicamente o seguinte: a empresa poderá reduzir a jornada de trabalho entre 25% e 100%, com redução proporcional do salário. Mas diferente da iniciativa inicial do governo, essa MP prevê uma compensação parcial pela queda de salário do trabalhador, bancada pelo governo na forma de um pagamento proporcional do seguro-desemprego que o trabalhador teria direito caso fosse demitido.
O problema é que a recomposição da renda por parte do governo é menor do que a perda de renda do trabalhador. O valor do seguro-desemprego é calculado através da média salarial dos últimos três meses, respeitando um mínimo dado pelo valor do salário mínimo e um máximo fixado em R$ 1.813,03 para qualquer valor de salário que supere os R$ 2.666,29. Assim quanto maior o salário, e em especial salários acima de R$ 2.666,29, maior será a redução proporcional de renda do trabalhador se este estivesse recebendo seguro-desemprego ao invés de salário. De acordo com as regras propostas pela MP, se a empresa optar pela redução de 25% da jornada, o trabalhador terá direito a 25% do valor do seguro-desemprego devido, e assim por diante, com reduções de 50%, 70% ou 100%. Note que o auxílio emergencial se baseia no cálculo do valor do seguro-desemprego, mas o trabalhador não estará recebendo o próprio seguro-desemprego. Este continua sendo um direito inalterado do trabalhador caso ele seja demitido em algum momento posterior. De todo modo, a recomposição do auxílio emergencial será menor que o salário anterior em todos os casos em que este for maior que um salário mínimo.
A adesão às regras da MP dá a possibilidade de as empresas reduzirem seus gastos com folha de pagamento frente à queda inesperada de suas atividades sem ter que demitir seus empregados. A única contrapartida exigida da empresa para a adesão é não demitir os funcionários que aderiram ao acordo em um período de mesma duração do qual fez parte do programa. No entanto, a empresa pode demitir alguns trabalhadores e preservar o emprego de outros, com redução de jornada e salário, o que se configura como uma proteção limitada para o trabalhador.
IHU On-Line – Quais devem ser os impactos na renda dos trabalhadores ligados às empresas que aderirem à nova Lei? De onde vêm os dados que sustentam a projeção?
Arthur Welle - Dependendo do salário do trabalhador e da faixa de redução de jornada por parte da empresa, o trabalhador pode ter uma redução considerável de sua renda. Como a contrapartida governamental se dá com base no seguro-desemprego e este tem limite inferior igual a um salário mínimo e limite superior fixado em R$ 1.813,03, o trabalhador terá maior redução da sua renda quanto maior for seu salário inicial. Na verdade, somente aquele trabalhador que ganha exatamente um salário mínimo não terá perda de renda. Como exemplo podemos pensar em um trabalhador que ganha três salários mínimos: se sua jornada for reduzida em 25% ele terá perda de 10,5% de sua renda, se for reduzida em 50% terá perda de 21,1% de sua renda, se for reduzida em 70% perderá 29,5% de sua renda. Esses valores serão ainda maiores, em especial no caso onde a empresa é de pequeno e médio porte e o salário é alto. Por exemplo, um trabalhador ganhando sete salários mínimos e que trabalha em uma empresa pequena que opte por suspensão temporária dos contratos, terá seus vencimentos reduzidos em 75,2% pelo período máximo de três meses. É uma redução extremamente forte para este trabalhador.
Os valores referentes a cada trabalhador foram calculados usando as regras explicitadas na MP 936/2020. Calcular qual será o impacto geral na soma de todos os vencimentos dos trabalhadores, a chamada massa salarial, é tarefa muito mais complexa. Para isso nosso trabalho criou cenários hipotéticos de redução de jornada baseados nos dados administrativos de todas as pessoas com carteira assinada no Brasil, a Relação Anual de Informações Sociais - RAIS.
IHU On-Line – Quais os impactos econômicos da MP 936/2020? Como ela poderá afetar a circulação da economia no Brasil?
Arthur Welle - Buscamos estimar o impacto agregado das medidas propostas pela Medida Provisória criando diferentes cenários de adesão pelas empresas às reduções. Usando os dados da RAIS para o setor privado e diferenciando empresas médias e pequenas das grandes, usando o porte da empresa (com base nos dados da Receita Federal), estimamos que se todas as empresas optarem por 50% de redução [da jornada], teremos uma redução de 19% da massa salarial do setor privado. No cenário mais drástico, quando há suspensão de todos os contratos, a massa salarial chega a cair 28%. Construímos ainda um cenário próprio, onde cada grande setor seria afetado diferentemente pela crise, levando a diferentes reduções de jornada entre eles. Neste cenário mais realista calculamos que, no agregado, os trabalhadores receberiam 17% a menos. Em valores absolutos o montante total de redução de dinheiro na economia varia entre R$ 7,4 bilhões e R$ 21,7 bilhões por mês, a depender do cenário em questão.
A economia é circular, a renda dos trabalhadores é o que cria capacidade de consumo e, portanto, a demanda para os produtos e serviços que são ofertados pelas empresas. Deste modo, esta redução abrupta nos salários privados faz com que as famílias consumam menos produtos e serviços. As empresas, em especial as pequenas, sofrerão diretamente pela redução da massa salarial. Vale lembrar que no Brasil o consumo das famílias responde por 65% do PIB sob a ótica da demanda.
IHU On-Line – Quais os efeitos desta medida em termos de redução de gastos por parte das empresas e, de outro lado, de que monta será a renúncia fiscal por parte do Estado?
Arthur Welle - No primeiro cenário, o de corte de 25% da jornada, as empresas, em conjunto, deixariam de pagar R$ 19,6 bilhões por mês para o conjunto dos trabalhadores. Nos cenários subsequentes, com redução de 50%, 70% ou 100% das jornadas, as empresas deixariam de arcar com R$ 39,2 bilhões, 54,9 bilhões ou 61,4 bilhões ao mês, respectivamente. E ainda, no cenário mais realista construído setorialmente, as empresas deixariam de arcar com R$ 36,8 bilhões.
A lacuna deixada pela redução de jornada e dos salários por parte das empresas é contrabalançada pelo auxílio emergencial, que como vimos, não repõe a totalidade deste montante. Nossos cálculos indicam que, no primeiro cenário, o governo vai repor, por meio deste auxílio, R$ 12,2 bilhões, dos 19,6 bilhões perdidos; R$ 24,5 bilhões dos 39,2 bilhões perdidos no cenário de redução de 50% da jornada; R$ 34,3 bilhões dos 54,9 bilhões perdidos no cenário de 70% de redução de jornada; e R$ 39,7 bilhões dos 61,4 bilhões perdidos no cenário de redução total de jornada. Ademais no cenário setorial, o governo faria a reposição de R$ 23,7 bilhões dos 36,8 bilhões perdidos da massa salarial total.
Nota-se que estes valores são relativamente pequenos se comparados ao PIB. O custo mensal do programa de auxílio emergencial varia de 0,2% a, no máximo, 0,6% do PIB. Não seria um passo muito maior se o governo se dispusesse a fazer a reposição integral da massa salarial perdida, o que ajudaria a conter as consequências econômicas da crise.
IHU On-Line – Como seria possível ao governo subsidiar a possível perda de massa salarial dos trabalhadores? De onde viriam os recursos?
Guilherme Mello - Os recursos para subsidiar o pagamento aos trabalhadores virão do mesmo lugar que estão vindo os recursos para ajudar o sistema financeiro, para comprar equipamentos de saúde e para apoiar diversos setores produtivos durante a crise: emissão de dívida pública. O que a crise do coronavírus revela de maneira cristalina é que a ideia defendida por vários economistas até poucos meses atrás de que “acabou o dinheiro” é simplesmente falsa. Os mesmos economistas que diziam que não havia dinheiro para combater a fome, a pobreza e a miséria, hoje afirmam que existe dinheiro e que a única saída para a economia brasileira é o Estado gastar mais, emitindo moeda e dívida. Ou seja, havia dinheiro, havia fontes de financiamento do Estado, o Estado brasileiro nunca esteve “quebrado”, mas a falsa ideia de que “acabou o dinheiro” impedia que o debate ocorresse de forma honesta e transparente.
Há uma certa ilusão de que o financiamento dessas medidas deve vir de “algum lugar”, seja através do aumento de impostos, da venda de patrimônio público (reservas internacionais, por exemplo) ou até mesmo utilização dos recursos hoje presentes na Conta Única do Tesouro junto ao Banco Central. Essa ilusão decorre do que ficou conhecido como a fábula da “economia doméstica”, em que a moeda é um mero meio de troca e o Estado só pode gastar o quanto arrecada. A realidade é bem diferente dessa fábula, já que a moeda é um ativo financeiro emitido pelo Estado e desejado pelo setor privado: cada vez que o Estado gasta, esse gasto vira receita de um agente privado. A dívida pública, da mesma forma, é um ativo emitido pelo setor público e desejado pelo setor privado para ancorar seus estoques de riqueza, particularmente em momentos de incerteza profunda como o atual.
Nesse sentido, aparentemente se construiu entre os economistas o reconhecimento quase que generalizado de um fato evidente, mas que era negado até algum tempo atrás: o de que o Estado não quebra em sua própria moeda e de que não há limitações imediatas para o aumento do gasto público. Até economistas liberais do mundo todo têm admitido isso, clamando aos seus governos pela emissão de dívida e pela emissão de moeda. O eventual aumento da inflação, principal risco associado ao financiamento monetário do gasto público ou ao aumento do endividamento público, está afastado diante da recessão e da deflação global.
Nesse sentido, e contando com a queda expressiva das taxas de juros (que reduzem o custo da dívida pública), o instrumento que será usado no mundo todo para enfrentar a coronacrise será a dívida pública e a emissão monetária. Futuramente, visando estabilizar a relação dívida/PIB, alguns países poderão aumentar a carga tributária, reduzir gastos ou focar em uma estratégia de retomada mais veloz do crescimento, que possui um impacto importante no aumento da arrecadação. No entanto, no momento atual, o melhor caminho segue sendo a utilização do poder do Estado de emitir moeda e dívida, poder que sempre existiu, mas até pouco tempo atrás era negado por parte dos economistas e analistas recém convertidos ao “keynesianismo”.
IHU On-Line – Em suma, quem pagará a conta? Quais as consequências para a economia de se adotar esta política de compensação?
Guilherme Mello - A “conta” da crise vai ser paga pelos empresários que quebrarem, pelos trabalhadores demitidos e pelas famílias e empresas que ficarem sem renda, além de, obviamente, por aqueles que perderem seus parentes para o coronavírus. O Estado terá sua dívida aumentada, mas também deve ver o custo dessa dívida cair, dada a redução das taxas de juros. É possível e desejável que no pós-crise se discuta uma reforma tributária com um duplo objetivo: para recompor a arrecadação perdida desde a crise de 2015 e para cobrar imposto dos muito ricos, que hoje pagam muito pouco em relação a sua renda. O viés dessa reforma, portanto, deve ser distributivo, mas isso não significa dizer que esses recursos irão “pagar a conta” dos gastos com o coronavírus. Eles simplesmente irão contribuir para a estabilização da trajetória do endividamento e com a melhoria da distribuição de renda, que tende a piorar com a crise.
A grande questão que se coloca, no entanto, é como será o “pós-coronacrise”. Caso o governo decida reduzir o endividamento público rapidamente através do corte de despesas públicas, haverá um enorme risco de que a recessão momentânea se torne uma depressão prolongada. O setor privado deve sair muito enfraquecido dessa crise, endividado e sem receitas, o que o tornará ainda menos capaz de promover uma retomada sustentada do investimento em uma economia debilitada como a brasileira. Ou seja, a retirada prematura do setor público irá prejudicar a recuperação do setor privado, de forma similar ao que ocorreu nos EUA em 1937, quando o presidente Roosevelt resolveu ceder às pressões pela austeridade e reduzir os gastos públicos, após o sucesso do New Deal em recuperar a atividade produtiva e os empregos. A economia, que vinha em franca recuperação, voltou a enfraquecer sua recuperação diante da saída de cena do setor público.
Neste sentido, pior do que o “custo fiscal” dessas medidas, é o custo econômico e social de não as tomar ou abandoná-las muito cedo. Não garantir a renda das famílias e empresas implica dizer que a economia brasileira entrará em colapso em poucas semanas, com gravíssimas consequências de longo prazo. Da mesma forma que na saúde pública, para a economia vale a máxima de que “economizar hoje pode custar muito caro amanhã”.
IHU On-Line – O Brasil tem feito nos últimos anos reformas estruturais que impactam diretamente a vida dos trabalhadores, tais como a reforma trabalhista, a reforma da previdência e o teto de gastos. Como tudo isso conflui para o cenário social e econômico atual?
Guilherme Mello - A aposta na capacidade dessas reformas de construir um novo modelo de desenvolvimento e recuperar o crescimento econômico fracassou. Ela teve início ainda em 2015 com a guinada na condução da política econômica promovida por Joaquim Levy e foi aprofundada desde então pelos governos Temer e Bolsonaro. São cinco anos de cortes de gastos, queda do investimento público, desmonte dos instrumentos de intervenção estatal e redução dos direitos trabalhistas e sociais.
O resultado pode ser visto nos indicadores econômicos pré-coronavírus: uma economia estagnada após uma profunda recessão, desemprego elevado, precarização do trabalho, enfraquecimento da indústria, aumento da informalidade e piora acentuada dos indicadores sociais, com destaque para a volta da pobreza, da fome e o aumento da concentração de renda. Os poucos empregos gerados são em sua maioria informais e pagam menos do que os antigos empregos dos trabalhadores. Há uma evidente desconfiança quanto à economia brasileira por parte dos investidores internacionais, que abandonaram o país muito antes da chegada do coronavírus.
A aposta no setor privado, em particular internacional, como alavanca do desenvolvimento, se provou equivocada. Por mais que se dê o benefício da dúvida, uma agenda econômica que após cinco anos sendo implementada, passando por diferentes governos, não entrega nada do que prometeu, nem mesmo a tão buscada recuperação das contas públicas, só pode ser considerada um fracasso.
E aí reside um problema crítico: a crise decorrente do coronavírus pegará o Brasil em um momento muito delicado, diferente da crise de 2008, quando o país atravessava um período de crescimento, redução do desemprego e das desigualdades sociais. Depois de cinco anos de fracassos na economia e com a sociedade esfacelada pelo desemprego e pela pobreza, a reação do governo deveria ser muito mais veloz e profunda do que tem se mostrado até agora. Não por acaso há previsões de instituições internacionais, privadas e multilaterais, que apontam que o Brasil será um dos países mais afetados pela crise, seja pela tibieza das respostas do governo Bolsonaro diante do coronavírus, seja pela insistência irracional em uma agenda fracassada, que ainda pode retornar como uma “ideia zumbi” no pós-crise para atormentar a vida dos brasileiros.
IHU On-Line – Pelo menos desde 2015 temos tido recessão técnica do Produto Interno Bruto - PIB. Qual deve ser o impacto da MP 936/2020 neste contexto?
Guilherme Mello - A MP 936 irá reduzir a massa salarial e, consequentemente, a renda e consumo das famílias, um dos principais motores da economia brasileira. Claro que se pode alegar que, na ausência da MP 936, a redução da massa salarial seria ainda mais acentuada, dada a possibilidade de quebradeira de empresas e desemprego em massa.
Mas também é possível se fazer o contrafactual pensando em um cenário em que o governo preserve a maior parte da renda das famílias, através de compensação integral dos salários até uma determinada faixa (digamos, três salários mínimos) e compensação parcial para valores acima disso. Neste cenário, a preservação da massa salarial durante o período de isolamento social irá reduzir a necessidade de endividamento das famílias, proteger empregos e garantir demanda para as empresas. A retomada no “pós-crise” seria muito mais veloz, uma vez que as famílias estariam em condições melhores de preservar suas vidas e seu consumo. O custo para o Estado preservar um nível de massa salarial mais parecido com o atual é relativamente baixo (aproximadamente 0,2% do PIB ao mês além do previsto na MP 936) se comparado aos benefícios que essa manutenção de renda pode trazer no curto e longo prazos.
IHU On-Line – Quais têm sido as lições globais, no âmbito da economia, diante dos desafios impostos pela pandemia de covid-19?
Guilherme Mello - No curto prazo, as medidas adotadas pelos diferentes governos no enfrentamento dos efeitos econômicos imediatos do coronavírus podem ser organizadas em três grandes eixos:
1) A estatização dos estoques de riqueza financeira, em escala superior ao observado na crise de 2008;
2) a estatização dos fluxos de renda, como salários e faturamento das empresas, através de crédito e/ou gastos públicos;
3) a crescente estatização dos fluxos produtivos e comerciais, com um processo acelerado de “reconversão produtiva" e proibição de exportação de produtos essenciais.
Esse conjunto de medidas, além de um elevado custo fiscal, possui um traço em comum: o enorme papel do Estado, que passa a assumir a propriedade dos estoques de riqueza (inclusive de títulos privados), a garantir a renda do setor privado e a orientar as decisões de produção de setores estratégicos. Ou seja, temos um cenário onde o Estado vai muito além de seu papel tradicional em uma suposta “economia de mercado”, contando com o apoio de boa parte dos capitalistas e até mesmo dos economistas neoliberais para isso.
Isso não significa, porém, a derrota do neoliberalismo. Quem acompanha o debate econômico facilmente perceberá que a defesa do papel do Estado como coordenador das ações durante a crise se limita ao período de emergência sanitária, com a maior parte dos analistas econômicos se remetendo à ideia de uma “economia de guerra”, por maiores que sejam as diferenças de nosso momento atual com uma guerra (onde há pleno emprego dos fatores produtivos). Este momento, portanto, não é visto como um ponto de inflexão ou de mudança de paradigma, mas como um mero “solavanco”, pontual e passageiro, na trajetória de uma economia globalizada neoliberal.
Apesar do desejo de alguns, o retorno ao “normal” pode se provar mais difícil do que se imagina. Mesmo que todas as medidas necessárias sejam tomadas por parte dos governos nacionais, o setor privado sairá enfraquecido dessa crise, seja devido ao elevado endividamento, seja pela redução na renda das famílias e empresas. A recuperação em “V”, sonhada por alguns analistas no início da pandemia, tende a se transformar em uma recuperação em “U” ou em “W”, com uma duração desconhecida da fase de baixa do ciclo. No limite, a recessão pode perdurar por vários anos, assumindo o formato de uma crise em “L”, como tem sido a situação da economia brasileira desde 2015.
Tanto a duração da crise quanto a velocidade da recuperação dependerão de dois fatores: primeiro, a dinâmica do vírus, que pode gerar ondas seguidas de contaminação, exigindo o retorno intermitente ao estado de isolamento social; segundo, a capacidade dos Estados de coordenar os esforços no campo econômico e social, com destaque para a indução do investimento e a garantia do emprego no pós-crise.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Guilherme Mello - Devido a sua profundidade e provável duração, a crise econômica causada pelo coronavírus será um evento de importância histórica crucial para entender o capitalismo no futuro. Atualmente, há duas grandes possibilidades: o aprofundamento das atuais tendências, com o recrudescimento do nacionalismo xenófobo, do individualismo, o aumento da desigualdade de renda, da desigualdade entre países e o enfraquecimento das democracias representativas, dada a ascensão de regimes autoritários e “democracias iliberais”, como já se vê na Hungria, na Turquia e até mesmo em Israel. No Brasil, o presidente Bolsonaro caminha para tentar um “autogolpe” com o apoio de setores militares (em particular as polícias) e das milícias, em um estilo muito parecido com o de [Viktor] Orbán [primeiro-ministro da Hungria], mas com traços de golpe similares aos que presenciamos na Bolívia recentemente.
Por outro lado, é possível que a crise exija respostas tão enraizadas nos valores da solidariedade social e na concertação entre as nações, que o apelo demagógico desses líderes autoritários perca o encanto diante das evidências do fracasso de sua abordagem. Caso isso ocorra, é possível que essa crise volte a pautar temas fundamentais, como o necessário combate às desigualdades, a ampliação do alcance dos serviços públicos (rumo a sua eventual universalização) e o papel do Estado como coordenador e indutor do desenvolvimento. Nesse cenário, temas como o combate à evasão fiscal, a transição ecológica e até mesmo a reforma das instituições globais multilaterais podem ganhar força e apontar para um futuro bem mais promissor para a humanidade.
Até o momento, é impossível dizer para onde o mundo caminhará. O que se sabe é que momentos como este tendem a beneficiar os ocupantes do poder, seja pelo necessário aumento do poder do Estado, seja pela facilidade com que um líder político pode se tornar uma referência da resistência de seu povo contra um inimigo externo (o vírus). Muitas vezes, líderes de viés mais autoritário se valem desse poder ampliado para se perpetuar no poder e perseguir adversários. O problema é que os custos políticos, econômicos e sociais de erros na gestão da crise poderão ser vistos no curto prazo, tanto no campo sanitário, quanto socioeconômico. Se no momento parece estar havendo um fortalecimento do primeiro cenário, o que é algo preocupante, também é verdade que a realidade imposta pela crise poderá forçar uma saída pelo segundo cenário, com novos líderes políticos comandando o processo de transição para uma renovada governança global. A disputa está em aberto, mas o que podemos dizer com alguma tranquilidade é que o “novo normal”, seja ele qual for, será bastante diferente do que existia antes. O velho já morreu, resta saber se uma nova utopia, fundada na solidariedade e na democracia, terá força para nascer.