22 Abril 2025
"Hoje a porta de seu pontificado se fecha, o futuro e o incerto conclave convocado para escolher seu sucessor dirão quão profunda foi sua revolução. “Acredito na paciência de Deus, acolhedora e doce como uma noite de verão”, havia escrito em sua preparação para a ordenação ao sacerdócio em 1969, com a carta da vovó Rosa guardada em seu breviário", escreve Marco Damilano, jornalista, em artigo publicado por Domani, 21-04-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em seu quarto em Santa Marta, ele havia colocado sobre a mesinha na entrada uma imagem de Nossa Senhora de Luján, padroeira da Argentina, um pequeno presépio, duas pequenas cruzes de madeira feitas com os fragmentos de barcos de migrantes naufragados em Lampedusa e Cutro, e uma rosa branca.
“Quando eu tenho um problema na vida, sempre peço a Santa Teresa de Lisieux, Santa Teresinha, que me ajude a entender. Como sinal, quase sempre recebo uma rosa branca”. Na parede, acima da pequena poltrona onde ele se sentava enquanto conversava com os visitantes, há uma reprodução da Crucificação Branca de Chagall. Ao lado, sob um ícone mariano, ao pé da mesa, um tabuleiro de xadrez de pedra. Na parede, em frente a ele, um retrato estilizado de uma mulher. “Ela é Esther Ballestrino”, explicava, ao perceber o olhar intrigado do visitante. “Ela foi minha chefe quando eu trabalhava como químico no laboratório. Ela era marxista, fundou o Partido Comunista Paraguaio, foi uma das fundadoras das Mães da Plaza de Mayo, em 1977 foi sequestrada pelos militares e jogada no mar com duas freiras francesas. Devo muito a ela, aprendi quase tudo com ela”.
Do pequeno quarto no segundo andar de Santa Marta, por doze anos ele liderou a igreja e observou o mundo, marcando notas e compromissos em uma grande agenda ao lado da cama, escrevendo mensagens à mão, com a conclusão que nunca faltava: “Que o Senhor o acompanhe e que Nossa Senhora o guarde. Não deixe de rezar por mim”.
Ele também escreveu de Santa Marta uma das últimas mensagens antes de ir para o hospital, enquanto sua voz se tornava um sussurro, sua respiração ficava cada vez mais fraca, a vela estava se apagando antes das semanas de hospitalização na policlínica Gemelli e da longa internação e tratamento que pareciam tê-lo salvado.
A carta enviada em 10 de fevereiro aos bispos dos Estados Unidos da América pelo Papa Francisco, Romano Pontífice, 265º sucessor do Apóstolo Pedro, na plenitude de sua autoridade, como um general emanando as disposições finais, poucas horas antes de sua hospitalização. “Estou acompanhando de perto a grande crise que está ocorrendo nos Estados Unidos com o início de um programa de deportações em massa. A consciência corretamente formada não pode deixar de fazer um julgamento crítico e expressar sua discordância”.
Ironicamente, seu último encontro, no dia de Páscoa, será justamente com o vice-presidente dos Estados Unidos, JD Vance, artífice daquelas políticas. Para a festa de Páscoa, ele presidiu pessoalmente a bênção Urbi et Orbi na Praça de São Pedro, se debruçou da Loggia da Bênção e saudou os fiéis: “Caros irmãos e irmãs, Feliz Páscoa”. O convite aos bispos estadunidenses, ou melhor, a ordem para “todos os fiéis da Igreja Católica e para todos os homens e mulheres de boa vontade”, para “não ceder a narrativas que discriminam e causam sofrimento desnecessário aos nossos irmãos e irmãs migrantes e refugiados, para construir pontes que nos aproximem cada vez mais, para evitar muros de ignomínia”. Com uma espécie de profecia: “O que é construído com base na força e não na verdade sobre a igual dignidade de todo ser humano começa mal e terminará mal”.
Uma invectiva manzoniana, para ele que havia memorizado páginas de Os Noivos quando criança, uma maldição bíblica contra as políticas de Trump. As palavras de um papa que estava concluindo uma vida na virada entre dois séculos. Começou com a viagem de seus avós, emigrantes italianos do Piemonte para a Argentina no século XX, e terminou com a defesa dos migrantes que cruzavam as fronteiras nos anos 2000, entre os desparecidos da guerra súcia argentina e os torturados nos centros da Líbia que ele não tinha medo de chamar de campos de detenção. Entre os conflitos mundiais do século passado e a guerra mundial em pedaços, que ele entendeu antes de qualquer outra pessoa. Ele nunca deixou de ser como Eduardo Muni Rivero o imaginou, que lhe dedicou um tango: “Ese cura luchador que ya de pibe quería, en Flores, donde vivía ser del débil, protector...”. Um padre lutador que já de menino, em Flores, onde vivia, queria ser o protetor do fraco. “Um padre da resistência. Tem a cabeça de Evita Perón e o coração de Che Guevara”, o definiu Gustavo, motorista de táxi em Buenos Aires, cruzando o anel viário ao redor da metrópole, que contorna as favelas. Um lutador. Quase no fim do mundo
Jorge Mario Bergoglio viveu os primeiros vinte anos de sua vida no bairro de Flores, depois como jesuíta em San Miguel, como arcebispo de Buenos Aires na Plaza de Mayo, em frente à Casa Rosada, e preparou sua aposentadoria em Flores, em uma casa de repouso para o clero. Em vez disso, ele foi eleito papa em 13 de março de 2013, uma quarta-feira, no final de uma tarde chuvosa que lavou a Basílica de São Pedro.
Às sete horas, quando a fumaça branca apareceu, o dilúvio chegou ao fim, mas as surpresas, para todos nós na praça, ainda estavam por começar, uma após a outra, para nos deixar incrédulos e felizes. O primeiro papa não europeu, o primeiro papa a se chamar Francisco. Era como atravessar o mar em um navio a vapor, até os muros coloridos de La Boca em Buenos Aires, como seus avós haviam feito a bordo do Giulio Cesare em 1927, e depois voltar.
Eles foram buscá-lo “quase no fim do mundo”, em uma idade avançada, no momento mais difícil para a igreja. “Rezem por mim, para que eu não fuja, por medo, diante dos lobos”, havia dito Bento XVI, mas ele foi embora e, com a primeira renúncia de um pontífice na história, o barco de Pedro ficou cercado pelas feras: os escândalos, as chantagens, os corvos, os aproveitadores.
Francisco não teria medo. Ele simplesmente disse boa noite ao mundo. Como sua amada avó Rosa, que havia sido uma orgulhosa militante da Ação Católica Feminina no Piemonte, hostil ao fascismo, havia lhe ensinado a fazer quando criança. “A avó é a terra: é como um reservatório moral, religioso e cultural”. Ele também tinha o ar de italiano da Argentina, distante e familiar. Pediu a bênção do povo, “a oração de vocês para mim”, antes de transmitir a sua própria: o poder invertia o ponto de vista, ele se despojava do poder. E mais: “Oremos pelo mundo inteiro para que haja uma grande fraternidade”. A base de seu pontificado, o ideal mais misterioso da tríade francesa de 1789, que nunca se tornou um projeto político, diferentemente da liberdade e da igualdade. O mais inatingível, o mais revolucionário, o mais cristão, aquele do Magnificat e das Bem-aventuranças: a fraternidade.
Ele sorria, mas desde o início demonstrou ser tenaz, firme, inamovível, até mesmo rude, no exercício do poder, com o qual, ele admitia, sempre teve alguns problemas, razão pela qual no passado também recorreu à psicanálise.
Foi eleito como um papa de transição, um sopro de ar limpo no monturo revelado pelo Vatileaks; em vez disso, foi um longo pontificado que mudou profundamente a igreja, de uma forma que ainda é indecifrável. Ele foi o papa de quase o fim do mundo: o fim do velho mundo, o nascimento de coisas novas, foi seu projeto. Desconstruir o aparato, o mundanismo eclesiástico, a autorreferencialidade que distancia o Evangelho das pessoas, com manobras astutas, ataques repentinos. A escolha de Santa Marta, o trono papal deixado vazio, os discursos críticos sobre a Cúria, as aguilhoadas sobre o carreirismo dos padres que pareciam extemporâneas, mas, em vez disso, eram meditadas. “Ele é um enxadrista silencioso, que move as peças e vê muitos movimentos com antecedência. Ele sabe quando deve parar e quando deve fazer sua jogada. Nunca se conhecerão suas regras, porque não as conta a ninguém”, disse o padre Guillermo Marcó, seu colaborador na Argentina. “Ele tem o gênio político de um líder carismático e a sacralidade profética de um santo do deserto”, observou o biógrafo Austen Ivereigh. “A tática se infiltra de surpresa em uma ordem estabelecida. Ela combina elementos ousados para insinuar furtivamente algo diferente na linguagem de um lugar e para surpreender o destinatário. Nuances, flashes, rachaduras e intuições fulgurantes nas dobras de um sistema”, escreveu Michel de Certeau, jesuíta, psicanalista, o teólogo que mais o influenciou.
Parece desenhar o método de governo do Papa Francisco. “Hacer ruido”, fazer barulho, disse ele aos jovens do Rio de Janeiro em sua primeira viagem ao exterior. Suas incursões, as nomeações controversas de cardeais e bispos, as mulheres pela primeira vez no topo da Cúria, os sínodos lançados para o futuro e nunca concluídos, as viagens às periferias do mundo, a porta santa aberta na África Central em uma viagem muito perigosa, ou na prisão de Rebibbia há dois meses, a abertura para homossexuais e casais do mesmo sexo, a centralidade dos movimentos populares, a relação direta com ONGs em vez de governos e com duas mulheres distantes da igreja, que o receberam em sua casa em Roma como um velho amigo: Emma Bonino e Edith Bruck.
“Na Argentina, Bergoglio não era bem visto pelos novos movimentos populares, nem era considerado progressista. Havia uma lenda negra a seu respeito, recebia críticas e calúnias de um certo círculo de esquerda, culturalmente progressista, mas distanciado das pessoas. A direita e as elites, ao contrário, o contavam entre os seus”, lembrou o argentino Juan Grabois, ativista de movimentos populares e amigo do papa.
“No início do pontificado, a novidade de Francisco em uma Igreja marcada por escândalos de corrupção pareceu bela, refrescante, cosmética.... Em seguida, começou a circular outra lenda negra de sinal contrário: o papa comunista, aliado a todos os populistas do planeta. Mas nem Bergoglio nem Francisco se alinharam a qualquer ideologia, governo ou líder político. Ele sempre falou dos pobres, com os pobres, junto com os pobres”.
Irredutível a uma categoria, escândalo para os burgueses, de direita e de esquerda. “Um irmão me disse: 'Padre, o senhor fala muito dos pobres e pouco da classe média'”, disse em seu discurso aos movimentos populares em 20 de setembro de 2024. “Pode ser verdade, e por isso peço desculpas. Mas não é o papa, mas Jesus que os coloca no centro do Evangelho. Esse é um ponto firme em nossa fé e não pode ser negociado. Se você não aceitar isso, você não é cristão”.
O povo, el pueblo fiel, é o motor da história, o protagonista da teologia do povo elaborada quando era cardeal na conferência de Aparecida em 2007. Popular e não populista, porque, escreveu como papa na Fratelli tutti, “os grupos populistas fechados deformam a palavra ‘povo’, porque aquilo de que falam não é um verdadeiro povo, mas a habilidade de alguém atrair consensos a fim de instrumentalizar politicamente a cultura do povo, sob qualquer sinal ideológico, ao serviço do seu projeto pessoal e da sua permanência no poder”, enquanto “um povo vivo, dinâmico e com futuro é aquele que permanece constantemente aberto a novas sínteses, assumindo em si o que é diferente. Não o faz negando a si mesmo, mas sim com a disposição de se deixar mover, interpelar, crescer e enriquecer por outros e, assim, pode evoluir”.
O povo é o movimento concreto na história, não a massa fechada de que falam os populistas. O povo tem um corpo e tem uma alma. Foi assim que o Papa Francisco entrou como protagonista na década em que o mundo viu se polarizar a divisão entre o poder e o povo, entre establishments desgastados e distantes, uma Europa velha e cansada, denunciada no Parlamento Europeu, e um povo abandonado, saqueado pelas palavras de ordem dos partidos e dos líderes soberanistas e populistas.
Ele ensinou que o tempo é superior ao espaço: “Priorizar o tempo é estar mais preocupado em iniciar processos do que em possuir espaços”, escreve Francisco na Evangelii Gaudium, seu manifesto. A unidade prevalece sobre o conflito. A realidade é mais importante do que a ideia. O todo é superior à parte. “O modelo é o poliedro, que reflete a confluência de todas as parcialidades que nele conservam sua originalidade.”
Na época da crise da fé, com igrejas vazias no Ocidente, e da ação política, enquanto desmoronavam as democracias, no mundo que estava voltando à reafirmação brutal das relações de força, o Papa Francisco representou uma inversão de perspectiva, com a visão e a prática do especialista do coração humano, com suas artimanhas, suas astúcias. Um sinal de contradição, já que o sistema político, econômico e midiático ia para o outro lado, as guerras voltavam, as fronteiras, os estados nacionais, a religião a serviço do trono e como justificativa para as armas, o suprematismo das raças, o narcisismo dos líderes que leva os povos à catástrofe, a indiferença globalizada de que ele falou em Lampedusa agora eleita como um sistema.
Ele repercorria ao contrário, como as contas de um rosário, as fronteiras que os líderes mundiais voltavam a cercar com arame farpado.
É por isso que ele tem sido o papa mais contestado e odiado dos últimos séculos. Escolhido como adversário pelas direitas mundiais. Contestado, odiado até mesmo dentro da igreja, onde a rede social afiliada à Cúria e aos círculos hipertrumpianos, o nexo entre fundamentalistas evangélicos e católicos integralistas sobre os quais o padre Antonio Spadaro e Marcelo Figueroa escreveram, tentou dar o passo final: deslegitimá-lo, fazê-lo passar por um falso papa, um usurpador pelo menos enquanto Ratzinger estava vivo, destroná-lo, derrubá-lo.
Mas, mesmo entre os progressistas, esgotado o entusiasmo dos primeiros anos, o mito do papa iluminista construído por Eugenio Scalfari com suas longas entrevistas-conversas foi encoberto por um ruído de fundo, no qual o fato religioso é cada vez mais marginal.
O papa foi banalizado, o bom, simpático e inofensivo velhinho das entrevistas televisivas, ou ignorado, ou mal compreendido, talvez de propósito, por suas posições sobre a Ucrânia e a guerra em Gaza, com suas frases cortadas e costuradas para o uso e proveito da polêmica, pelos escândalos financeiros e sexuais que nunca terminaram, os vazamentos sobre as finanças, com um clamoroso processo feito por jornalistas, até a expulsão do cardeal Becciu. Incompreendido até mesmo pelos seus, desnorteado pela ausência de um Concílio, por uma revolução que não se tornou instituição.
Apesar disso, Francisco nunca vacilou e, por doze anos, permaneceu fiel à sua missão. Imerso no drama de seu tempo, nunca fora, nunca acima, mas dentro, um pastor mergulhado no cheiro das ovelhas, rosto de uma igreja em saída. Ela continuou a representar, mesmo para aqueles que não creem, a irrupção do inesperado na história, a elevação dos humildes, a possibilidade extrema de que, apesar de tudo, no mundo tudo não está já escrito, dado como certo, a convicção de que a salvação vem de uma reviravolta, como uma criança deitada em uma manjedoura, escondida dos grandes, revelada aos pequenos, aos excluídos, aos abandonados que passam por este mundo sem deixar rastro.
“Uma verdade interior só aparece com a irrupção de um outro”, escreveu de Certeau, ”para que desperte e se revele, é sempre necessária a indiscrição do estrangeiro ou o choque de uma surpresa. É preciso ser surpreendido para se tornar verdadeiro”. O espanto nunca abandonou o Papa Francisco. Mesmo quando ficou sozinho.
Ficará sua solidão na Praça de São Pedro vazia durante a Covid. O idoso papa sozinho rezando, diante de um crucifixo, sob a chuva, “uma tempestade inesperada e furiosa”, um sinal fragilíssimo e, portanto, poderosíssimo, humano, como o grito de Jesus abandonado na cruz, e transcendente.
Somente aqueles que tiverem a coragem de enfrentar uma praça vazia, o vazio que envenena as existências, o deserto de sentido na sociedade individualista e secularizada, ele parecia dizer com aquela sua presença firme, antiga, milenar, mas mesmo assim contemporânea, poderão encontrar um renascimento nas trevas do não mais humano em que nos encontramos.
O último gesto, há menos de dois meses, foi conduzir a igreja ao Jubileu, sem abrir a porta sagrada, sem cruzar a soleira, mas batendo e parando no meio. Como se naquele meio estivesse o sentido de estar na história hoje: uma porta entreaberta.
Um dia antes de ser eleito papa, falando diante de seus colegas cardeais que estavam decidindo votar nele, ele usou a imagem da porta para indicar sua ideia de igreja: “No Apocalipse, Jesus diz que está na soleira da porta e chama. O texto se refere ao fato de que Ele está do lado de fora da porta e bate para entrar, mas às vezes penso que Jesus esteja batendo do lado de dentro para que nós O deixemos sair. A igreja autorreferencial mantém Jesus do lado de dentro e não o deixa sair”.
Em sua cama, ao voltar para o quarto, encontrou uma rosa branca. Poucos dias depois, foi eleito papa.
Hoje a porta de seu pontificado se fecha, o futuro e o incerto conclave convocado para escolher seu sucessor dirão quão profunda foi sua revolução. “Acredito na paciência de Deus, acolhedora e doce como uma noite de verão”, havia escrito em sua preparação para a ordenação ao sacerdócio em 1969, com a carta da vovó Rosa guardada em seu breviário.
“Acredito na surpresa de cada dia, até o encontro com aquele rosto maravilhoso que não sei como é, que sempre me escapa, mas que desejo conhecer e amar”. Seu desejo agora está no mistério em que ele se encontra, aninhado naquele Deus que ele sempre buscou no rosto dos outros. Resta-nos a surpresa da esperança, trazida ao mundo e à história pelo homem que se fez chamar Francisco.