12 Fevereiro 2025
Em documento inusitado, Papa pede aos católicos dos Estados Unidos que não cedam a “narrativas que discriminam e causam sofrimento desnecessário aos nossos irmãos e irmãs migrantes e refugiados”
A reportagem é de Inigo Domínguez, publicada por El País, 11-02-2025.
A batalha entre o Papa Francisco e Donald Trump já começou, como era de se esperar dado o precedente da presidência anterior do magnata, repleta de declarações hostis (o Papa chegou a dizer em 2016 que o presidente não era cristão). Desta vez começa com um conflito direto sobre imigração. Jorge Mario Bergoglio publicou nesta terça-feira uma carta inusitada dirigida aos bispos americanos “nestes momentos delicados”, que dedica exclusivamente a falar sobre esta questão: “Tenho acompanhado de perto a importante crise que está ocorrendo nos Estados Unidos devido ao início de um programa de deportações em massa. Uma consciência devidamente formada não pode deixar de emitir um juízo crítico e expressar o seu desacordo com qualquer medida que identifique, tácita ou explicitamente, o estatuto ilegal de alguns migrantes com a criminalidade.”
A carta, escrita em inglês e espanhol, é muito severa e contém diversas frases e expressões enérgicas. Ela fala de “muros de ignomínia” e convoca os fiéis a se oporem à política de imigração de Trump, quase descrita como uma perversão moral, justamente quando o presidente dos Estados Unidos divulgou neste domingo uma foto sua rezando em seu escritório com um grupo de televangelistas e cristãos ultraconservadores. O ataque do Papa visa desacreditar justamente essa aura confessional e religiosa que a nova onda reacionária americana exibe: "Exorto todos os fiéis da Igreja Católica, e todos os homens e mulheres de boa vontade, a não cederem a narrativas que discriminam e fazem com que nossos irmãos e irmãs migrantes e refugiados sofram desnecessariamente".
Depois de defender a dignidade de todas as pessoas sem exceção, Francisco acrescenta com uma interpretação claramente política: “Preocupar-se com a identidade pessoal, comunitária ou nacional, fora dessas considerações, introduz facilmente um critério ideológico que distorce a vida social e impõe a vontade do mais forte como critério de verdade”. Francisco diz que uma política de imigração “não pode ser construída sobre o privilégio de alguns e o sacrifício de outros”. "O que é construído com base na força, e não com base na verdade sobre a igual dignidade de todo ser humano, começa mal e terminará mal", alerta.
A Casa Branca também não mediu palavras. O chefe da imigração, Tom Homan, um católico, disse aos repórteres que o papa deveria "se concentrar na Igreja Católica" e deixar os americanos administrarem suas fronteiras. “Vocês querem nos atacar porque protegemos nossas fronteiras? O Vaticano tem um muro ao redor, certo? (...) E não podemos ter um muro ao redor dos Estados Unidos", segundo a agência italiana Ansa. Em 2016, quando o Papa criticou a construção de um muro na fronteira com o México, Trump respondeu: “O Papa desejaria e rezaria para que eu fosse presidente se o Vaticano fosse atacado pelo Estado Islâmico”.
As palavras do Papa só aprofundam o confronto que ele mantém, além de Trump, com o setor mais ultraconservador da própria Igreja Católica americana. Já em dezembro, preparando-se para o que estava por vir, o Pontífice nomeou como novo arcebispo de Washington DC o progressista Robert McElroy, muito crítico do líder republicano e defensor dos imigrantes. Por sua vez, Trump já anunciou que o novo embaixador na Sé seria Brian Burch, uma espécie de antipapa, inimigo declarado do pontífice argentino, católico ultraconservador, presidente da plataforma Catholic Vote.
A acusação de Francisco é profunda, porque ele descreve um cenário em que a própria democracia está em jogo. Ele diz que a deportação “fecha a dignidade” das pessoas e que esta é uma questão que “não é menor”. “Um verdadeiro Estado de direito é verificado precisamente no tratamento digno que todas as pessoas merecem, especialmente as mais pobres e marginalizadas. O verdadeiro bem comum é promovido quando a sociedade e o governo, com criatividade e estrito respeito pelos direitos de todos, acolhem, protegem, promovem e integram os mais frágeis, desprotegidos e vulneráveis", escreve ele. E em outra passagem ele afirma: “Todos os fiéis cristãos e os homens de boa vontade são chamados a olhar a legitimidade das normas e das políticas públicas à luz da dignidade da pessoa e dos seus direitos fundamentais, e não vice-versa”.
Há um parágrafo escrito especialmente para o vice-presidente JD Vance, embora não o nomeie, mas as referências são óbvias. Vance, que se converteu ao catolicismo em 2019, justificou as deportações de migrantes há duas semanas na Fox News citando, à sua maneira, um conceito teológico de Santo Agostinho, a ordo amoris, a ordem do amor, dizendo que começa com a família, depois o próximo, a comunidade, o país e, só no final, o resto do mundo. Ele explicou que os deveres morais de uma pessoa para com seus filhos excedem os de "um estranho que vive a milhares de quilômetros de distância" e convidou as pessoas nas redes sociais a pesquisar por ordo amoris no Google.
Agora o Papa responde citando expressamente esta ideia: “A verdadeira ordo amoris que deve ser promovido é aquele que descobrimos meditando constantemente na parábola do Bom Samaritano, isto é, meditando no amor que constrói uma fraternidade aberta a todos, sem exceção”. A repreensão do Papa em forma de catequese ressalta que o amor cristão "não é uma expansão concêntrica de interesses que gradualmente se estendem a outras pessoas e grupos". “Em outras palavras: a pessoa humana não é um mero indivíduo, relativamente expansivo, com alguns sentimentos filantrópicos!”, exclama.