15 Abril 2025
"Uma cena cômica publicada no perfil do X do Padre Antônio Spadaro captura a reação de uma criança que, não reconhecendo que aquele senhor de cadeira de rodas se tratava do Santo Padre, não sabia nem mesmo o que estava acontecendo. A surpresa foi tomando os presentes, que aos poucos, compreenderam que se tratava de Francisco, fazendo uma visita informal à basílica. Entrou como um simples peregrino, em meio a tantos outros, caminhando ao encontro do Senhor", escreve Matheus Oliveira Lemos, agente de Pastoral na Arquidiocese de Belo Horizonte, liturgista e estudante de Teologia na PUC Minas.
Nesta quinta (10), vimos uma cena histórica e, no mínimo, inusitada: pela primeira vez, um pontífice romano se apresenta em público sem estar trajado da sua tradicional batina branca, sem solidéu, sem cruz e sem anel episcopal.
Recordo-me de uma anedota (que por motivos óbvios, deve ser inverídica), e que me foi contada em certa ocasião, nos idos de 2013, logo no início do seu ministério petrino, por ocasião das numerosas mudanças que promovia sem avisar ninguém: nos primeiros dias de seu pontificado, o papa Francisco haveria consultado aos seus assessores sobre depor o uso da tradicional batina branca em ocasiões públicas. Prontamente, foi rebatido por um deles, que respondeu: “Santidade, o papa jamais apareceu em público sem as vestes pontifícias. O senhor, certamente, não será o primeiro.”
Pois bem. 12 anos depois, trajado de uma camisa branca comum, sem gola e de mangas longas e calças pretas, cabelos despenteados, sendo conduzido em uma cadeira de rodas, usando uma cânula nasal de respiração, estava ali o Papa Francisco estava ali, vivo, feliz, lúcido e presente. O pastor no meio do seu rebanho, um com os seus. Para muitos, um gesto de profunda humildade, em desvelar-se diante dos olhos da opinião pública na condição deficitária que porta após a sua recente internação no Policlínico Gemelli.
Uma cena cômica publicada no perfil do X do Padre Antônio Spadaro captura a reação de uma criança que, não reconhecendo que aquele senhor de cadeira de rodas se tratava do Santo Padre, não sabia nem mesmo o que estava acontecendo. A surpresa foi tomando os presentes, que aos poucos, compreenderam que se tratava de Francisco, fazendo uma visita informal à basílica. Entrou como um simples peregrino, em meio a tantos outros, caminhando ao encontro do Senhor.
De certo modo, esta cena peculiar levantou uma onda de críticas no meio conservador (como era de se esperar, convenhamos), sobre a legitimidade e a contingência desse gesto, tão espontâneo da parte do pontífice. Uma enxurrada de críticas, intercedida por outra - de elogios, levantaram o fato de que o papa estava sem batina.
Porém, é preciso compreender além das aparências, o gesto que levanta duas questões, que permearam todo o pontificado de Francisco, e muito provavelmente, continuarão a perpassar os pontificados futuros.
A primeira trata da humanização da figura do sucessor de Pedro. O Santo Padre, o papa, que por um grande número de séculos representou perante a sociedade uma persona, um cargo, um papel público, é antes de tudo, uma pessoa. É um ser humano, que como todos os outros, tem a possibilidade (e o direito) de estar mal, estar doente, cansado ou velho.
Esta pessoa é revestida por Cristo de um ministério, um serviço. Lembremo-nos que o ministério petrino não se trata de uma nova ordenação ou do conferimento de um grau ministerial superior ao episcopado, mas um verdadeiro encargo episcopal, em sua raiz grega: “episkopoi”, aquele que supervisiona, aquele que vê do alto. O papa é papa porque é o bispo de Roma. Simples assim.
A segunda questão é que o Papa Francisco mostra com seus gestos que entende o papado não como um privilégio, mas como um serviço de pastoreio que recebeu para ser levado a cabo até o fim. Este serviço de pastorear pode se apresentar muitas vezes extenuante, exigindo entre tantos sacrifícios até a abnegação da própria vida em favor do Povo de Deus.
O pastor, bem ou mal, precisa estar no meio do seu rebanho. Seu lugar é ali. Francisco sabe, desde o primeiro momento de seu pontificado que, o que faz dele “O Papa” é ser o bispo daquela porção da Igreja, Roma. E ali estava ele, peregrino, mais uma vez rumando à Porta Santa. Em sua fraqueza e sobriedade, aparecia ser profético, incólume, forte.
Sua presença pública neste estado é profética, e é um forte testemunho pastoral. Sua imagem notadamente fragilizada oferece-nos refletir sobre o esforço de Pedro dos nossos tempos em cumprir o mandato que lhe foi dado por Cristo, pela ação do Espírito. E isso confere força para que não apenas os enfermos, mas todos os que enfrentam algum tipo de limitação sintam-se confortados e impelidos a prosseguir a vida, com coragem para viver.
A poucos dias, ouvimos as notícias de um cardeal que afirmara que o papa precisaria reaprender a usar a fala após sua alta médica. Como se isso não bastasse, Francisco insiste em aparecer, mesmo que em silêncio, quando não com brevíssimas palavras, diante de todos. Mesmo quando não pôde ser visto e ouvido, insistiu em ser lido. Suas palavras não deixaram de ecoar, mesmo nos momentos mais tensos de sua internação. Ângelus, pregações, posts, tweets... Em seu vocabulário, jamais faltou uma expressão: “grazzie! – obrigado!”
É possível perceber que o Papa Francisco encara gravemente o ministério petrino como “ad vitam”, ou seja, por toda a vida. Em seu horizonte particular como cabeça da Igreja, ele entende que se configura neste “novo” momento de sua vida algo concreto, do qual não se pode abdicar: é preciso carregar a própria cruz, que é dever e tarefa de todo cristão.
Isso faz parte do caminho de todos para o Reino. Isso é para todos, e independe de nossa condição terrena, não importando se somos papas, reis, bispos, etc. Para Francisco, o seguimento de Jesus na missão que nos for confiada por ele deve ser levado até as últimas consequências.
O não pode acontecer, é mister recordar, é contrapor-se o entendimento de Francisco com a opção particular de seu antecessor pela renúncia de seu ministério. Afinal, Bento XVI também foi uma pessoa humana, e levou o seu ministério também até as últimas consequências, até onde lhe foi humanamente possível.
Em diversas ocasiões, o papa Francisco declarou a possibilidade da renúncia como um horizonte para o fim de sua vida, mormente em caso de doença que lhe impossibilitasse o governo da Igreja. Amplamente, divulgou através de entrevistas que concedeu que, se houvesse a ocasião e a necessidade de renunciar, seu desejo seria continuar trabalhando como bispo emérito de Roma, atendendo e confessando aos fiéis na Catedral de Latrão.
No entanto, em todas as provações, continuou carregando a sua cruz, e exercendo o seu ofício ministerial diante de todos. O mais interessante é que o fez sem ocultar de ninguém os seus sofrimentos. Sua fragilidade para locomover-se, os inúmeros ferimentos, inchaços.... quedas, inclusive em público, todos revelaram a gana de um pastor em cumprir sua missão de estar perto de seu rebanho.
A vida de Francisco está se consumindo no exercício de seu ministério/serviço, diante de nós, fiéis da Igreja, como “uma vela que se consome diante do altar”, e ele próprio deseja que isso seja percebido, não com palavras, mas com a simples presença, seu simples estar, seu simples ser. Ser papa está a uma distância diametralmente oposta de estar vestido de papa.
Nas proximidades da Semana Maior, este gesto despretensioso do papa me inspiraram a reflexão destas duas questões que partilho aqui, acompanhadas pelo refrão de uma famosa canção quaresmal: “Prova de amor maior não há que doar a vida pelo irmão...”